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Agir ou reagir?
(Dear white people e as cicatrizes não discutidas)
Roberto Queiroz

Eu me lembro, tempos atrás, de quando terminei de ler o romance Eu sou Charlotte Simmons, do pai do new journalism, Tom Wolfe (que faleceu recentemente para minha tristeza e a de muitos leitores carentes de boa literatura hoje em dia) e de quais foram minhas primeiras palavras ao encerrar a última página: "Uau! E tem gente que reclama de bullying nas escolas brasileiras!".

Sim, meus caros leitores! Não é fácil a vida de quem estuda nas famigeradas universidades norte-americanas. E mais: não se trata apenas do discurso de ódio da classe dominante, da indústria da opressão produzida em torno das fraternidades - tem quem as chame de epicentros da covardia -, da eterna cultura da popularidade a qual nossos brothers da terra do tio Sam não conseguem viver sem. Não, não e não. O período universitário é aquele momento absurdo, atroz, covarde, impositivo, que antecede a vida. E precisa ser vivido com extrema cautela, sabendo onde se está pisando a todo momento.

Por que estou escrevendo tudo isso nesses dois primeiros parágrafos? Porque acabei de assistir as duas primeiras temporadas de Dear white people, série da Netflix criada pelo jovem produtor negro Justin Simien, e fiquei perplexo (no bom sentido) com seu conteúdo arrojado, feroz, direto na veia, étnico até a medula.

As vidas de Samantha White (Logan Browning), Troy Fairbanks (Brandon P. Bell), Lionel Higgins (DeRon Horton), Colandrea 'Coco' Conners (Antoinette Robertson), Joelle Brooks (Ashley Blaine Featherson) e Reggie Green (Marque Richardson) poderiam ser muito mais fáceis e divertidas se eles não pertencem a comunidade negra de sua respectiva universidade. Mas, infelizmente, nem sempre nossas orações (no caso, as deles) podem ser atendidas. Pelo contrário, eles estão no olho do furacão contra séculos de tirania branca e doadores generosos (leiam-se: famílias tradicionais) delimitando o terreno para suas proles futuras. Mesmo o reitor do campus pertencendo a mesma etnia não é sinônimo de grandes avanços.

Resultado: o jeito é apelar para grupos acadêmicos, programas de rádio que acusam a disparidade entre classes e gêneros, colunas jornalísticas em diários independentes (infelizmente, também patrocinados pelos mesmos opressores) e o velho e "nem sempre recomendável" corpo a corpo. O maior problema de todo esse enfrentamento é que o outro lado da trincheira, apela de maneira suja. Seja ao revistar apenas a quem interessa, sejam nos policiais brancos e racistas que rodeiam o campus, seja nas falsas caras e bocas de falsos amigos que tentam se aproximar, posando de solidários, quando na verdade estão querendo é extrair algum ponto fraco das minorias.

Romances interraciais, homossexuais, mesmo efêmeros e gratuitos (e nesse ponto Troy é um obra-prima concorrida entre as mulheres de ambas as etnias, seja por sua beleza, seja por ser filho do reitor) não estão descartados. A própria comunidade negra tem seus deslizes. Em muitos momentos seus membros parecem não falar a mesma língua e guerreiam entre si. E isso é um dos grandes legados da série que, eu espero, retorne para mais temporadas.

Pequena brecha necessária para que eu desenvolva meu raciocínio: nunca acreditei naquela máxima do cantor Cazuza quando ele defendia "ideologia, eu quero uma pra viver", da canção de título homônimo. Não acredito, nunca acreditei que o ser humano se envolve em causas. Ela, a espécie humana, só advoga de fato em causa própria.

Dito isto, é preciso lembrar (e admirar) a postura do criador da série ao desconstruir a ideia de grupo social ou de representatividade (tema que expus no meu último artigo), mostrando os outros quinhentos desse debate. Os discursos dessa comunidade - principalmente os de Samantha e os de Troy - apresentam suas falhas à medidas que novas cartas são postas na mesa. Não existe, meu caro amigo que dedica seu escasso tempo a ler minhas colunas e confissões, discurso político ou mesmo popularidade que resista e uma triste realidade: somos vaidosos, insensatos e adoramos ser paparicados pelos demais (mesmo que neguemos à primeira vista). Todos queremos, guardadas as devidas proporções, nossos próprios holofotes.

Assim são os políticos de Brasília, assim são as mega celebridades hollywoodianas, assim são os escritores best-sellers, assim é a juventude em seu apogeu e hormônios exaltados. E assim são os estudantes de tão renomada universidade. Teorias conspiratórias à parte sobre fundadores, revisionismo histórico ou aquele velho discurso caduco do "ah como era bom antigamente! não era desse jeito!", na prática o buraco é sempre mais embaixo.

Em suma: uma série que tinha tudo para permanecer na sua zona de conforto, demonizando um lado em favor do outro, se abre para discutir as intenções reais de quem adora se vender como engajado ou solidário à dor do outro. Palmas para Justin Simien por sua coragem ao decidir por um caminho mais turbulento, é bem verdade (os modinhas adoram atacar, já o contrário...), porém mais fidedigno a realidade dos fatos e do mundo.

Dear white people encerra sua segunda temporada fazendo de um discussão racial uma grande catarse. Catarse essa que precisa também ser discutida no final das contas. Quem, afinal, é o injusto, o racista, o agressor e quem é a vítima? E por que olhar de cima é tão complicado? Por que tememos a versão "olhar caso a caso"? A expressão negão ofende mais do branquelo desde quando, até quando? Precisamos revisitar e rediscutir velhos preconceitos. E a Netflix acerta mais uma vez ao mostrar que está disposta a apontar as lacunas dessa discussão. E mais uma vez prova porque é a produtora de conteúdo cultural mais relevante da atualidade.

E uma última consideração (à série e à vida em geral): estamos de fato agindo ou apenas reagindo a tudo que vem de fora, pensado de forma obscura, irrefletidamente? Pensem a respeito.


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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