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Um homem na contramão
(R.I.P Philip Roth)
Roberto Queiroz

Eu me pergunto o quanto a sociedade americana elogiaria ainda mais o escritor Philip Roth se ele escrevesse o que a sociedade americana quer ouvir, ler, assistir, acreditar. Não estou dizendo que ele não tenha atingido o auge de sua carreira. Pelo contrário. Seus fãs o defendem com unhas e dentes ao redor do mundo, alardeando aos quatro ventos ser ele, Roth, o maior escritor made in USA da atualidade. E ele merece a honraria. Conquistou com todo o mérito esse status. Mas por um momento imagine, apenas imagine, se ele fosse um escritor na linha J.K. Rowling ou Dan Brown. Uau! Certamente teria virado um mito eterno.

Pois bem: isso infelizmente não acontecerá, pois Roth nos deixou na última terça-feira. Ele não publicava nada novo desde 2009 (dizia-se cansado do mercado editorial, defendendo que não havia mais nada - da parte dele - a ser dito ao público). Pena. Contudo, escreveu mais de 30 livros e gerou um legado literário de proporções astronômicas. Digo mais: sua obra compõe um registro visceral do lado B que o seu próprio país natal sempre fez questão de esconder. Que bom para nós, leitores de mão cheia e avessos a best-sellers vazios!

Roth não era um autor fácil. Longe disso. Infelizmente (para a América que adora uma festinha e uma celebração, não para nós, leitores que adoramos quem mete o dedo na ferida e expõe mazelas e preconceitos) ele esmiuçou de forma dura, porém realista, as distorções e incongruências de um país que adora se vender como "a maior nação do planeta" e, no entanto, esconde mal, embaixo do tapete sujo, suas hipocrisias constantes. E muitas vezes foi perseguido por isso (que o digam os puritanos de carteirinha e as feministas!).

Roth narrou o amargo, expõs as decepções da classe artística, as ilusões amorosas, falou francamente (de maneira às vezes vista como incômoda) sobre sexo, expurgou a eterna mania dos americanos em rotular os estrangeiros como inimigos (comunistas, antissemitas, terroristas, etc), delineou a chegada da velhice e da morte na vida humana como poucos. Em suma: desenhou a América que a própria América não queria ver exposta, pois prefere as versões chapa-branca dos filmes hollywoodianos e da programação televisiva insossa.

Em meio a tantos bons exemplares que o autor (premiadíssimo, diga-se de passagem) escreveu, recomendo três em especial: Pastoral Americana - que junto com Casei com um comunista e A marca humana compõem uma trilogia sobre o desespero de se viver num país tão falacioso quanto os EUA -, Complexo de portnoy (certamente sua obra mais famosa e polêmica) e O animal agonizante (que virou longametragem nas mãos da diretora Isabel Coixet, trazendo no elenco os atores Ben Kingsley e Penelope Cruz). E se puder, nas horas vagas, dar uma fuçada em Os fatos, sua autobiografia, para entender um pouco da mente Rothiana por trás dos livros, fique à vontade!

É difícil explicitar o que o autor não criou ou denunciou. Só para se ter uma rápida ideia, em Operação Shylock ele cria como protagonista um sósia que se apropria do nome e da biografia de outrem (história essa inspirada na sua própria vida, quando um fã tentou tornar-se famoso apropriando-se da sua identidade). Já em Nêmesis ele expõe um professor dividido entre salvar a si próprio ou os alunos, vítimas da poliomielite em plena segunda guerra mundial. Isso fora a coragem avassaladora de narrar a decadência física do próprio pai, vítima de um tumor cerebral, em Patrimônio.

Os críticos de sua obra pontuam dois deslizes: o primeiro, o fato de nunca ter sido adaptado para a sétima arte à altura de seus livros e eu concordo. Sempre achei que um autor do seu garbo e excelência merecia diretores mais arrojados e recriações mais sofisticadas. Em outras palavras: sempre tive a sensação de que as adaptações de seus livros flertavam com o superficial, o óbvio (e Roth não tem nada de óbvio). E segundo, o fato do escritor ter morrido sem o reconhecimento de levar um Nobel de Literatura para casa. Enfim... Não dá para acertar sempre e todos os grandes do mercado editorial já passaram por isso.

De certeza mesmo, apenas uma: um autor como Philip Roth fará muita falta num mercado literário cada vez mais carente de grandes vozes e opiniões. Espero que os responsáveis pelo espólio de sua obra não sigam a demanda usual e façam de seu legado narrativo uma batalha judicial sem precedentes, pois isso só prejudica de fato os leitores, maiores interessados no seu trabalho. No mais, fica o registro de um grande homem cujo maior mérito em seu trabalho foi o de andar na contramão do sistema (e só por isso já vale uma espiada em sua bibliografia).

(Nota: será que se não tivesse acontecido o escândalo na Academia Sueca que escolhe o vencedor do nobel de literatura Philip Roth teria enfim sido reconhecido? Fica a eterna dúvida).


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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