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Inércia
Flora Fernweh

Todo corpo em repouso tende a permanecer em repouso, e todo corpo em movimento tende a permanecer em movimento, a menos que uma força atue sobre ele. O mesmo é válido para o modo como o ser humano costuma a despender sua existência: tudo tende a permanecer exatamente como se está, até que algum acontecimento que se apresente como modo de recordar a brevidade da vida se faça presente e nos tire do destino vicioso que impede a escolha genuína do ser que reluta em se firmar de fato existente. Uma grande perda ou um pequeno susto, apesar do extenso abismo entre a natureza de seus efeitos, guardam a mesma motivação, em igual valor no desvio do Homem de sua retilínea destruição, violenta, silenciosa e invisível. Não se trata de exagero ou de discurso cataclísmico e passageiro de quem está usufruindo da brilhantina de uma vida, a crueldade que se abate sobre aqueles que se deixam levar pelos ares da indiferença é real, porém imperceptível. É aí que reside o perigo do desencontro consigo, e da perda de si que se elabora no contato construtivo com o outro. É difícil romper as correntes das amarras de uma tão bem acolchoada zona de conforto. Não há explicações físicas que possam explicar a magnitude a ambivalência de que somos formados, posto que não nos resumimos a um pedaço de matéria ocupando lugar no espaço, temos a nosso favor, um elemento que nenhum outro objeto tem: o inconformismo com o fluxo das consequências que germinam a partir de nossos atos. Temos portanto, a possibilidade de negar o alienamento diante da aparente naturalidade do caminhar da vida, porém é errado supor que o modus operandi é sempre, inevitavelmente, o culpado. Somos condicionados, como espécie, a buscar uma estabilidade de nossas ações, em prol da sobrevivência, e a realizar as mesmas tarefas repetidamente, tendo um dia após o outro como um cronômetro. Se está na natureza humana e se contribui para o futuro da espécie, então por que seria tão nocivo assim viver em inércia? Porque já nos basta a inércia de viver de forma acostumada, com a ideia de que nossa essência primordial persistirá intocada apesar de tudo, porém a racionalidade, com seu devincilhável incômodo que nos insere a semente da ciência sobre os fatos, nos obriga como prova de relativa superioridade perante os demais seres, a agir decididamente. Quer dizer que ao viver como uma folha levada pelas correntezas de um rio, estaríamos desonrando o tempo de evolução que nos foi tão caro, no sentido mais bioquímico do termo? Talvez, porém a certeza não combina com pressa nem com a generalização. Além disso, a construção de um filtro capaz de bloquear os resquícios nos impostos inconscientemente, demanda um esforço significativo. Mas é importante estabelecer uma distinção nítida entre uma circunstância estável e livre de oscilações desgastantes, e um estado de doente ataraxia que remonta o estado de natureza selvagem, transposto no caso, não pela ausência de leis, mas pela inexistência de sensibilidade. Parece que a partir do momento em que se nasce, momento esse que que se repete em metáfora com o clarão de cada aurora, a reiteração do viver perde a noção de efemeridade à qual todos, sem exceção, estamos curvados, pensemos ou não em nosso fim. Por outro lado, o esquecimento e o viver inerte oferecem um livramento sobre o pensamento da morte, pois morre-se muitas vezes em pensamento antes da morte em vida, e em cada vã memória, um sofrimento hipotético e abstrato, tal qual a ideia de morte que a vida nos limita a ter antes do momento derradeiro. A regalia da inércia está aí, presenteando através da negação de um amanhã, que já recalca o hoje em função de um não-saber, sendo quase um palco de transcendência, um local de culto e em última análise, uma ânsia por algo que nunca chega, e encerra-se em si, cessa e segue sem rumo, sem freio, em um movimento uniforme na dimensão exata, sem coragem e sem medo: o ardor em condenação perpétua.


Biografia:
Sobre minha pessoa, pouco sei, mas posso dizer que sou aquela que na vida anda só, que faz da escrita sua amante, que desvenda as veredas mais profundas do deserto que nela existe, que transborda suas paixões do modo mais feroz, que nunca está em lugar algum, mas que jamais deixará de ser um mistério a ser desvendado pelas ventanias. 
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