Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Às moscas
Até onde vai a piedade humana?
Carlos Rogério Lima da Mota

Resumo:
Seria aquele homem marido das três? Algum amigo querido ao ponto delas esquecerem a própria vida, para ficarem ao seu lado, dando-lhe a paz almejada para atravessar a barreira que separa a vida da morte, o sonho da realidade, o prazer da angústia?

Eram as únicas naquela sala enorme. As três juntas, todas de meia idade, cada uma com um véu de uma cor, pareciam representar a torcida são-paulina em um estádio de futebol vazio, dominado pelo clima sombrio da madrugada.

A primeira das velhotas, a mais magra e também a mais alta, roía as unhas como se quisesse conter a ansiedade, um fogo intenso que lhe remexia o interior, fazendo-a tremelicar de quando em quando, como se estivesse entrando e saindo de um transe espiritual. Sob seu colo havia uma manta negra que lhe aquecia as pernas tortas. Seu nariz era de uma deformidade que causava medo; há quem diga que ela era o centro daquele evento. Quanto exagero!

A do meio, uma gordinha caliente, de estatura mediana, esfregava o olho demonstrando uma comoção que não havia; se houvesse, não seria chamada a atenção a todo o tempo pelas amigas, porque volta e meia, ao invés de chorar, ela contava piadas e davas umas gargalhadas cuja sonoridade assemelhava-se a de uma bruxa. Tinha um testão... E que testão! As línguas afiadas a apelidavam de a musa do Frankenstein. Já a última, com o lenço entre as mãos, corria-o pelos olhos e chorava... as lágrimas escorriam desatinadas! Nossa! Estava mesmo emocionada! Que dó! Das três era a menos feia. Tinha as orelhas do Dumbo e a boca parcialmente desdentada... Quando sorria, lembrava o Tião Macalé, aquele personagem desengonçado do extinto programa “Os Trapalhões”, da Rede Globo, que dizia, sempre ao final de cada participação: "Ih, nojento!!!! Tchan!!!!”. Esta última, nem gorda, nem magra demais, tinha algo de líder, porque às vezes, quando alguma delas parava de chorar, levava uma beliscadela bem no meio da barriga para que não se esquecessem de que ali, infelizmente, deveriam ser “profissionais”.

No meio da sala havia um tapete vermelho e sobre ele uma urna funerária de causar inveja a qualquer defunto. Era tão linda que político nenhum a recusaria como brinde pelas mazelas que fizera em vida. Sua madeira, de um a pau-brasil raro, polida com um verniz que custava o olho da cara, chamava a atenção de quem circulava por um corredor paralelo à sala. Acima da urna, como manda o figurino, uma cruz de metal irradiava aquele deserto de gente, e sobre ela, uma coroa de flores insistia em convencer aos poucos que ali compareciam: “Aqui jaz um homem bom. Deus o tenha!”

Um ventilador, ligado no último, espantava as moscas que persistiam pousar sobre o véu que encobria a face do morto. E que morto! Um homem de uns cinqüenta anos, rosto marcado por profundas rugas – resultados de uma vida sofrida, atormentada pela dor e desespero. O coitado talvez fosse o dublê do personagem atormentado de “O grito”, obra-prima do norueguês Edvard Munch. Apesar daquela cara horrenda, algo chamava a atenção: suas mãos. Uma sobre a outra, contrastava todo aquele sofrimento, tal a delicadeza. Era como se ele tivesse penado em vida, mas jamais houvesse pegado no batente, trabalhado, se é que me entende!

A noite corria... E lá permaneciam as três mulheres chorando, as únicas a velarem o pobre, que de pobre mesmo, só tinha o espírito... E olhe lá! O engraçado é que, vez ou outra, as “belas” garotas compartilhavam o lenço... e quanto mais o esfregavam sobre os olhos, mais eles avermelhavam, escorrendo lágrimas por todos os cantos. Continuaram nessa lengalenga a noite toda e todo o dia seguinte, até a hora do enterro.

Seria aquele homem marido das três? Algum amigo querido ao ponto delas esquecerem a própria vida, para ficarem ao seu lado, dando-lhe a paz almejada para atravessar a barreira que separa a vida da morte, o sonho da realidade, o prazer da angústia?

O caixão foi lacrado na metade da tarde e o cortejo – umas oito pessoas ao todo, incluindo as velhotas - seguiu para o cemitério. Antes de o corpo ser alçado ao buraco eterno como um “verme” qualquer, um padre surgiu do nada e lhe arremessou algumas bênçãos. Com as mãos dadas, as mulheres vozeavam de dor, formando um coral, mas daqueles bem desafinados, assemelhado aos uivos da cadelada em noite de lua cheia... Perplexo com aquele verdadeiro show à parte, o padre, com a bíblia em mãos, não conseguia encontrar um versículo que representasse, na íntegra, toda a dor daquela mulherada, por isso, disse duas ou três palavras sem nexo e foi se embora com a mesma velocidade com que chegara. O coveiro, sem dó, jogou a bela urna com tudo no buraco... Houve um estouro e a tampa rachou com o impacto. Era visível, a sete palmos acima, os dentes do cadáver, em cuja boca encontrava-se, devido à queda, entalada uma das rosas da decoração mortuária.

Conforme o coveiro lacrava o túmulo, as mulheres se afastavam... Após cruzarem o portão de entrada do cemitério, a orelhuda sacou-se de um celular e fez a seguinte ligação:

_O presunto está sendo degustado pelos vermes. Cumpra sua parte – disse, sem a comoção de outrora.

Alguns minutos depois, uma limusine parou em frente ao cemitério. O motorista abriu a porta e dela saiu uma bela mulher, de uns vinte e poucos anos, que foi logo se dirigindo à desdentada:

_Foi mesmo enterrado?

_Deve estar sendo devorado pelos ratos a esta hora – respondeu, com as outras amigas às costas.

_Ainda bem! Tomem o que lhes devo e sumam da minha frente, assim como fez aquele velho sovina, qual maldade em vida me levara a comer o pão que o diabo amassou...

Virou-se de costas e entrou no carro, sumindo no horizonte. As três dividiram o dinheiro e sorriram de felicidade, deixando para trás todo aquele sofrimento de há pouco.

_O que faço com o lenço? – perguntou a nariguda.

_Tire a cebola e o guarde... Amanhã temos outro desgraçado para velar. Vida de carpideira é como a de político: a encenação e os apetrechos fazem parte do pacote!


Biografia:
Formado em Letras e em Educomunicação. Casado, 34 anos, 3 filhos. Colaborador de diversos órgãos midiáticos, sendo eles: YesMarília - (www.yesmarilia.com.br), parceiro da Globo.Com na cidade de Marília, interior de São Paulo, Jornal da Manhã de Marília e Revista Eletrônica Alô Ibiúna, de Ibiúna/SP. Pertence ao quadro de autores da Editora Virtual Usina de Letras (www.contosjuvenis.cjb.net), mantido pelo Sindicato de Escritores de Brasília, que conta, até o momento, com mais de 99 obras publicadas de sua autoria, em sua maioria, artigos e contos de suspense. Seu sonho é ser apenas FELIZ em vida, afinal, que autor consegue ser feliz ao ser incomodado o tempo todo por sua visão perspicaz e sensível de um mundo já torpe feito o atual? * Sites para os quais escreve: http://recantodasletras.uol.com.br/autores/carlosmota http://twitter.com/autorcarlosmota http://www.artigonal.com/find-articles.php?q=carlos+rogerio+lima+da+mota www.brasilwiki.com.br www.etextos.com.br www.contosjuvenis.cjb.net http://carlosmota.dihitt.com.br/ www.autores.com.br/carlosmota http://www.jornaldamanhamarilia.com.br/site/ver_noticia.aspx?CodNoticia=8298 http://www.diariodesorocaba.com.br/noticias/not.php?id=21168 http://www.talentos.wiki.br/post.php?id=14206 http://autorcarlosmota.blogs.sapo.pt http://contosjuvenis.weblog.com.pt/ http://literaturaperiferica.ning.com/profile/carlosmota
Número de vezes que este texto foi lido: 52872


Outros títulos do mesmo autor

Contos Redenção Carlos Rogério Lima da Mota
Crônicas Deus não existe! Carlos Rogério Lima da Mota
Crônicas Às moscas Carlos Rogério Lima da Mota
Artigos Como construir leitores capazes de autoria? Carlos Rogério Lima da Mota
Artigos A telenovela retrata o cotidiano Carlos Rogério Lima da Mota
Artigos Colunista social português assassinado por suposto namorado Carlos Rogério Lima da Mota
Artigos PORTUGAL À BEIRA DA BANCARROTA Carlos Rogério Lima da Mota
Artigos AS ARMADILHAS DA LÍNGUA PORTUGUESA EUROPEIA Carlos Rogério Lima da Mota
Artigos Alunos de escola de Cotia lançam livro coletivo Carlos Rogério Lima da Mota
Romance "OBSESSÃO..." - CAPÍTULO II Carlos Rogério Lima da Mota

Páginas: Próxima Última

Publicações de número 1 até 10 de um total de 21.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
JASMIM - evandro baptista de araujo 68972 Visitas
ANOITECIMENTOS - Edmir Carvalho 57894 Visitas
Contraportada de la novela Obscuro sueño de Jesús - udonge 56715 Visitas
Camden: O Avivamento Que Mudou O Movimento Evangélico - Eliel dos santos silva 55790 Visitas
URBE - Darwin Ferraretto 55042 Visitas
Entrevista com Larissa Gomes – autora de Cidadolls - Caliel Alves dos Santos 54941 Visitas
Sobrenatural: A Vida de William Branham - Owen Jorgensen 54838 Visitas
Caçando demónios por aí - Caliel Alves dos Santos 54816 Visitas
ENCONTRO DE ALMAS GENTIS - Eliana da Silva 54725 Visitas
O TEMPO QUE MOVE A ALMA - Leonardo de Souza Dutra 54712 Visitas

Páginas: Próxima Última