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Palavreado
(uma crônica para os que desperdiçam a língua portuguesa)
Roberto Queiroz

Parece tudo errado e provavelmente seja essa a intenção desse mundo contemporâneo: nos irritar ao extremo. De certo, somente uma coisa: os seres humanos não são mais os mesmos.

Que mundo é esse em que o discurso narrativo deu lugar à fúria, ao desrespeito, a intolerância e a falta de bom senso; o bate-papo perdeu espaço para celulares de última geração atrelados à ouvidos imbecis e vaidosos, que não querem saber de nada nem de ninguém e o coletivo, aquilo que chamávamos de sociedade, perdeu relevância por conta de uma coisa chamada oportunismo?

Fiquei pensando nisso essa semana enquanto atentava para a quantidade de palavras inúteis e chulas que vem sendo proferidas nos últimos tempos, no Brasil e no mundo. Muito se diz e se contradiz, tornando qualquer conversa uma batalha por persuasão infinita. Já foi tempo em que chegar a um consenso agradava a ambas as partes. Hoje o buraco é mais embaixo.

Estamos rodeados de palavras por todos os lados e, no entanto, cada dia mais isolados do mundo, mais umbiguistas, mais desinteressados sobre tudo o que diga respeito ao outro. O que interessa mesmo é nossa vaidade, nosso desejo de grandeza, nosso direito ao status, à fama, a sermos mais do que os demais.

As palavras entraram na minha vida muito cedo, por volta dos 8, 9 anos. Falo mais especificamente dos gibis e tirinhas de jornal. Turma da Mônica, Almanaques Disney, Recruta Zero, Hagar, Zé do Boné, Superaventuras Marvel, Garfield... A lista é grande, então melhor parar por aqui. Até porque eles deram lugar aos romances policiais, Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, as histórias de espionagem, Perry Rhodan, a série vagalume da Editora Ática e... E o céu é o limite, meus caros amigos e leitores!

Em outras palavras: o meu mundo nunca mais foi o mesmo. E era tudo o que eu queria. Ser diferente dos outros garotos que achavam que o mundo era só futebol, pipa, pegar o carro dos pais emprestado e azarar garotas. O meu não era.

O tempo passou, o meu cabelo rareou, e a palavra - eu fui percebendo - não só não era a favorita da população, como veio perdendo mais e mais espaço nas últimas décadas até se tornar artigo de luxo nas conversas cotidianas.

É triste salientar este fato, mas "falamos", assim mesmo, entre aspas, um dialeto extraterrestre, que lembra em alguns momentos a língua portuguesa que um dia Machado de Assis e Fernando Pessoa honraram com seu intelecto. "E está muito bom!", dirão eles, os não-falantes da língua. "Mais pra quê? O país não merece de nós mais do que isso!". E fim de papo.

Procurem em qualquer bom livro sobre interpretação de textos que se preze e lá encontrarão que há textos em todos os lugares: do outdoor de rua à canções da MPB; do poema de Camões à campanha publicitária do meu primeiro sutiã, escrita pelo Washington Olivetto; do relatório policial até a ata de fechamento de uma seção eleitoral em dia de eleição. Tudo é texto. Tudo é palavra. Mesmo que alguns pensem (e já conheci muitos exemplares do tipo) que só se trata de palavra quando está impressa. Do contrário... Não vale.

Falamos muito e nada dizemos. Falamos tanto e nem percebemos. E falamos - versão essa contemporânea, pós Steve Jobs, Apple, Iphone - quando tampamos nossos ouvidos com headphones e enfiamos a cara em nossos telefones. Dizemos: "cai fora, não tô afim. Vê se amola outro!". E é essa fala incômoda que tem sido a tônica disso que chamamos de contemporaneidade. "Vai piorar!", diz a vovó de 91 anos sentada na sua cadeira de balanço, "o século XXI tá só começando".

É, vovó... as palavras viraram motivo de raiva, de zombaria, de perseguição, de patrulha ideológica (não aguento ouvir os politicamente corretos mais de 30 segundos), de covardia, de abuso de autoridade. Nunca se maltratou tanto as palavras e ficou por isso mesmo. Tem quem chame até de estilo. Cafajestice virou estilo, personalidade... Pois é. Melhor parar por aqui.

Como sobrevivente desse modelo arcaico, o dos (ainda) interessados na palavra, tanto que continuo escrevendo para este site, venho aqui como último aviso, último ato de sanidade: onde iremos parar quando a palavra for sepultada de vez de nossas vidas? Viveremos de mímicas, libras, gestos? E tudo por causa de divergências e gostos pessoais? Que loucura a humanidade!

P.S: se a palavra fosse um ser humano, tenho minhas dúvidas se já não teria sido crucificada como Jesus Cristo pelos "mudos e antissociais dos tempos modernos". Peraí... Modernidade é isso?


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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