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Salem
T. Richter

Resumo:
(Essa crônica foi originalmente publicada no extinto fórum do Bar do Escritor).

Em uma aula noturna da faculdade, mais ou menos uma década atrás, um de nossos professores comentou com a turma que acreditava que o mundo estava entrando em uma nova era negra. Afirmou ver, na conturbada história dos Homens, momentos quando aspectos progressistas, em termos intelectuais e sociais, estavam em voga para logo serem seguidos por momentos marcados por retrocesso e fortalecimento de ideias reacionárias. Citou como exemplo de um período progressista as décadas logo após a Segunda Guerra Mundial, em especial os anos 50 e 60.
     O comentário me marcou bastante, mesmo que eu tenha feito várias resalvas às opiniões expressadas por meu antigo professor, em especial tendo achado-as um tanto europocêntricas... fica difícil pensar as décadas de 60 e 70 no Brasil como progressistas sob os cascos ferrados da ditadura fardada.
     As palavras daquela longínqua aula vieram-me de assalto à mente esses dias, nos quais tive a impressão de ter acordado na velha Salem do século XVII. Uma mulher, acusada de bruxaria e de sequestrar crianças para sacrifícios em rituais de magia negra foi espancada até a morte em um linchamento público. E a Bíblia que carregava foi confundida com um livro satânico, provavelmente devido à cor preta da capa.
      Tornando tudo ainda mais grotesco, aparentemente crianças testemunharam o ato. Não só testemunharam, segundo alguns relatos, quanto também foram colocadas para bater na suposta bruxa. E cogitou-se queimá-la, mas tal ato purgatório não chegou a ser perpetrado devido ao providencial aparecimento da polícia, eficientemente chegando ao local cerca de duas horas depois do linchamento ter sido iniciado.
     Onde estou, afinal? Naquele provinciano porto comercial de Massachussetts? Ou em um país que se vangloria de ser a sétima economia do mundo neste ainda novo século XXI? Não... estou partindo de uma premissa errada... aspectos econômicos, apesar de supervalorizados por tecnocratas e neoliberais, não servem como parâmetro eficiente para uma época ou local ser considerado progressista... Salem, no século XVII, mantinha relações comerciais até com a China, mas o que marcou sua história foram os julgamentos de bruxaria levados a cabo pelo juiz John Hathorne, amparado pelo medo e fanatismo da população de protestantes puritanos da cidade.
     Um tempo de trevas, comentou o professor... pelo que lembro a maioria dos meus colegas de turma não levou muito em consideração... será que ainda lembram daquela aula hoje, agora, quando veem o crescimento do anti-intelectualismo, do obscurantismo, do fanatismo religioso? O recrudescimento de uma extrema direita que por muito tempo foi julgada reduzida a cinzas? O estado laico sendo questionado por seitas que se dizem cristãs, mas que se resumem a serem propagadoras de superstições e crendices enquanto crescem em tamanho e influência?
     Esse é o terreno fértil que atos como esse ocorrido na cidade balneária de Guarujá do século XXI da Idade Contemporânea encontram espaço para despontar. O terreno da ignorância, da crendice, da supertição, da omissão tanto do governo quanto da sociedade, da ausência do estudo e consciência crítica. As sombras crescem. A noite cai. O inverno chega. Exagero?
Já fui chamado de exagerado por dizer isso, mas depois de testemunharmos uma caça ás bruxas em nossos próprios dias, o que podemos esperar? A volta dos ordálios medievais, talvez? A próxima mulher acusada de bruxaria ser amarrada a pedras e lançada às águas da lagoa Rodrigo de Freitas? Se a acusada boiar, fica provado que é uma bruxa. Ou ainda a volta das fogueiras cujas chamas no passado devoraram feiticeiras, hereges e demais ameaças? Talvez utilizem o Largo da Carioca para esse fim? Ou a Praça XV, talvez?
A quem culpar? A culpa é da internet, disse o amigo de um dos agressores-justiceiros presos. Mas não é a internet um instrumento? O fogo não pode ao mesmo tempo assar sua refeição, ajudar a transformar o ferro em aço, incendiar uma casa ou supliciar uma suposta bruxa sequestradora de crianças? O fogo pode ser considerado o culpado?
A rede, que tem um potencial surpreendente para fins acadêmicos e produtivos está sendo mal utilizada. Isso é um truísmo, quase banal demais para ser expresso. É quase como anunciar ter inventado a roda ou a pólvora nos tempos de hoje. De qualquer forma, a irresponsabilidade e falta de ética dos divulgadores de informação, sejam membros da grande mídia ou não, é flagrante. Típica sociedade de espetáculo... o que importa é a manchete, a audiência, estar em foco.... as consequências e repercussões ficam para segundo plano.
Aquele que lê as mensagens e notícias deve ter capacidade crítica para separar o joio do trigo, para não ser levado na corrente da desinformação, do alarmismo, do sensacionalismo. Isso é outro truísmo, sim, eu sei. Então por que causa tanto contrariedade quando exprimo algo que defendo a tempos, que não se deve realizar uma inclusão digital sem uma inclusão cultural e educacional ter sido levado a cabo antes.
Sem isso, estaremos contribuindo, se em grande ou pequena escala não sei dizer, para alimentar as fofocas e querelas que caracterizam as redes sociais. Estaremos aumentando o palco para mídia sensacionalista. Arando o campo para que a alienação e ignorância cresçam. Para que Salem esteja em todo canto.

* Nota do autor: O fato em que se baseia a crônica ocorreu em 05/05/2014 no município de Guarujá (SP). A crônica foi escrita ainda na mesma semana do ocorrido.

** Atualmente existe uma página na wikipedia sobre o fato que inspirou a crônica: https://pt.wikipedia.org/wiki/Linchamento_de_Fabiane_Maria_de_Jesus

*** Uma das muitas reportagens da época do ocorrido: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,dona-de-casa-foi-linchada-no-guaruja-apos-oferecer-fruta-a-crianca,1163438



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