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Quartas
Europa Sanzio

Naquela quarta-feira — que seria a primeira de muitas — minha bicicleta ficou colocada junto à mureta de pedras enfestadas de musgo e trepadeiras, enquanto que com um canto rouco eu terminava de empurrar o portão cinza já entreaberto pela metade. À porta, tive que batê-la. A mulher de G. a abriu e olhou-me como se eu fosse um saltimbanco a pedir por esmola, dando-me como palavra única a informação de que ele estava terminando o banho, voltando a enclausurar-se na casa logo depois, deixando-me do lado de fora. Sem convite para entrar na casa recoberta por um amarelo sem graça — que devia ser a quinta demão de tinta —, aprumei-me nos batentinhos de ardósia em frente ao limiar da porta, enquanto ficava a escutar os sons e a sentir a brisa daquela rua ladeada por ipês que voavam até mim com suas pétalas caindo em meus pés. G. não demorou, apareceu-me com uma exclamação de oh!, como numa surpresa indiferente, comigo recebendo, enfim, o convite para adentrar a casa.

O chão da sala era de cimento batido, as janelas eram todas guarnecidas de cortinas de chita. No canto, sentada de costas para a entrada, a mulher de G. debruçava-se sobre uma mesa repleta de retalhos, linhas e rolos de tecido. Era uma costureira, como eu viria a saber depois. Tinha as maçãs do rosto tisnadas pelo sol, o tronco era corpulento, os braços meio inchados, como se tivesse retenção de líquido. Baixinha e calada, beirando a antipatia, hoje ela parece-me mais comigo do que eu poderia prever naquela época, onde eu ainda era moça e sabia que haveria o dia em que eu revelar-me-ia mais ousada, mais bonita e divertida. Por hora eu era uma carcaça que obedecia às instruções que G. ia me dando sobre o caminho correto a seguir. Chegamos pois à cozinha devastada pelo cheiro de comida excessivamente temperada pós-almoço. G. abriu a porta dos fundos, deixando entrar a visão e o som do cão-caramelo preso a latir para o dono.

“Logo, logo ela para”, garantiu, o cão transformando-se em cadela.

Juntou tudo que havia na mesa — o saco de pão, as vasilhas, os potes de polvilho — e empurrou para o canto, oferecendo-me a cadeira. Tinha a pele recém lavada, branca, como lençóis claros recém engomados e dobrados. As manchas da testa sentavam com as migalhas em cima da toalha da mesa, onde agora eu punha meus braços e escutava a G. fazendo sua introdução do que era nossa primeira aula, enquanto que eu olhava as migalhas, pensava nas manchas de sua testa tão amareladas quanto os fiapos do pão; eu nunca pensava no que estava a encarar.

“Entendeu?”, foi sua pergunta. Assenti.

Os fins de tarde se seguiram dessa forma, G. recebendo-me sempre após sair de um banho, sua pele fresca vindo acolher gradualmente o fúlgido do suor pelo calor absorvido durante a tarde. Os lábios ressequidos, ocos, iam contando-me lições somente em alemão. Explicava em um alemão menos exaltado, mais pousado, mas sempre em alemão, e com o mesmo tom respondia. Dizia que eu precisava absorver o idioma, que o ouvir ensinar-me-ia mais que qualquer outra coisa que pudesse fazer. E eu lhe dizia wiederhole, bitte, repita, por favor — a primeira coisa que aprendi noutro idioma —, ou às vezes o Portugiesisch, bitte que ele tanto detestava quando eu soltava. Às cinco e meia ascendia a luz da cozinha escurecida pelo passar das horas, era o preludio de seu momento preferido. Os trinta últimos minutos da aula eram dedicados à música, pois gostava dela, amava Marlene Dietrich, apreciava Richard Tauber — dizia ser feio confessar amar a um homem. E quando levantava o interruptor era também hora de tirar seu acordeão da caixa, afastar a cadeira da mesa, sentar-se nela de modo preguiçoso; com o aparelho no colo tocava a canções de fundo melancólico enquanto me ensinava a cantar junto.

Mostrava-me novas palavras em alemão ao mesmo tempo em que narrava sua viagem pela Europa, suas loucuras que aprontara por lá. Tinha ido para lá muito antes, em 1910, para a Alemanha estudar filologia clássica e alemã na Universidade de Frankfurt. Nunca tivera condições de arcar com a viagem, ainda não tinha, apenas, explicava, passava fome e frio para se empreitar nas suas ideias. Poderia ter juntado posses se quisesse, poderia estar rico, ter se transformado num pequeno burguês com os trocados que juntou ao longo da vida. Mas gastara tudo em seu desejo de conhecer o mundo, ser autodidata sobre ele, como gostava de colocar; escolhera então ser um miserável. Tinha impulsos epifânicos que seguia sem desistência; quis aprender grego antigo, aprendeu com um único livro escavado duma biblioteca; quis latim, pediu lições a um padre de sua paróquia; quis ir a Europa, foi e a pulso aprendeu alemão, depois francês e até arranhava em italiano. Nesses mesmos impulsos resolvera, numa madrugada, conhecer a Rússia. Pegou um trem, faltou a aulas, simplesmente atravessou a Polônia e em um dia e meio estava em São Petersburgo sob um ar glacial. Dormiu em um banco às margens do Neva, no dia seguinte deambulou por horas até se cansar e pegar um trem de volta, na mesma noite. Assim voltou e acordou no apartamento de estudante que dividia com dois colegas, como se tivesse despertado de um sonho turbulento. Brincava que se não fosse a clareza com que lembrava ter sentido a neve o tocando ou o cheiro único do rio o cobrindo ou ainda as impressões tão límpidas que tivera das lascas últimas do czarismo, diria que a viagem à Rússia fora apenas um sonho e sua volta nada mais que um despertar de um sono inquieto de três dias. Sua segunda estadia — da qual voltara naquele ano de 1929 — tinha sido mais longa e também mais calma, sem muitas estripulias. Aumentara seu título na área da filologia, agora tinha especializações na França, Suíça e Itália, aguardava para que o chamassem para lecionar português em alguma Universidade no exterior, de preferência alemã. Dizia que era bom ensinar alemão a brasileiros curiosos, mas era impagável ensinar sua língua mãe a alemães que se achavam espertos. Parecia-me um homem inteligente, talvez importante, e ao desviar de suas histórias por um instante e dar com os olhos na simpleza com que se vestia, no entorno de sua casa, na sua esposa, eu ficava incrédula por ser ele esse homem que nada tinha de altivez. Mas não queria imiscuir-me em nada e guardava as observações para mim.

Quando completava seis horas da tarde, um som de sino chegava abafado até nós. Sua voz gutural se calava e seus dedos paravam sobre as teclas do acordeão. Era minha hora de partir.

G. sempre me acompanhava até a saída pois minha ida também significava seu início de noite, onde sentava-se por debaixo do alpendre em frente à porta para tocar seu acordeão. Eu lhe deixava com um aceno breve enquanto subia na bicicleta embaixo do poste atacado por besouros atraídos por luz. O roxo cortava cerne o céu escuro chispado por estrelas, eu dava a minha primeira pedala e junto vinha o som do que era a primeira nota noturna; pela aleia de ipês recrudescia em mim o infeliz pensamento de não morar naquela rua e portanto não poder ouvir aquelas músicas tocadas pelas mãos ásperas e hirsutas do homem que, num sonho, viajara à Rússia.

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Esse trecho é extraído do livro "Rua dos Aimorés, Nº 16", que pode ser lido completo através desse link:

https://www.wattpad.com/story/129068916-rua-dos-aimor%C3%A9s-n%C2%BA16


Biografia:
Leio desde criança, quando comecei a achar o mundo enfadonho em demasia. Escrevo desde a adolescência, quando senti a necessidade de dissertar sobre aquele mundo tão tedioso. Prazer, sou Europa!
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