De manhã, enquanto disfarça as olheiras com corrector e combina a cor das pálpebras com o vestido que escolheu, convence-se a si mesma de que é uma escritora importante. Mesmo quando descobre uma ruga que no dia anterior ficara oculta, sabe que tem motivos para se sentir em paz e realizada com o que a vida lhe permitiu alcançar.
Recorda a contribuição que deu aos movimentos de emancipação feminina, numa altura em que era na sombra que as mulheres mereciam ficar. Recorda os discursos para as massas que fez ao lado de políticos populares, e para as mentes iluminadas junto de activistas mais radicais. Recorda os convites que recebeu para se fazer ouvir na televisão e os elogios à boa imagem que tinha. Recorda os prémios literários que recebeu, decididos por um júri composto por gente culta e sofisticada e que sabia, verdadeiramente, o que era literatura.
De tarde, sai de casa sem sobressaltos, crente de que é uma escritora importante. É e sempre será, porque ser escritora significa isso, viver para a escrita. Ser aquilo que a escrita lhe impôs que fosse.
E mesmo que os leitores mais jovens, que encontra na sessão de lançamento de um livro de uma nova autora, admitiam não conhecer o seu nome, ela sabe que é uma escritora importante. Mesmo que também a autora do livro, nascida já depois dos movimentos de emancipação feminina, já depois de os políticos populares deixarem de ser populares e os iluminados deixarem de se preocupar com os movimentos mais radicais, lhe pergunte, enquanto autografa o seu exemplar, quem ela é e, depois de saciada a curiosidade, que livros escreveu e onde pode encontrar esses títulos de que a jovem autora nunca ouvira falar, ela sabe que é uma escritora importante.
De noite, novamente só no seu refúgio, quando se olha ao espelho e passa o creme pela cara, quando investiga se a raiz do cabelo não está já demasiado exposta, ela sabe que, por mais esquecido que o seu trabalho esteja, por mais distante que a façam sentir todos aqueles que ocupam agora um espaço que em tempos foi o seu, é a escritora que sempre sonhou ser.
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