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Ser bom ou ser bobo, eis a questão
Heleno Reis


     Tempos atrás, conversava eu com um sujeito de meia idade, simples, negro e pobre, que aqui, para preservar-lhe o anonimato, vou apenas designá-lo sujeito. Ele era membro intransigente de uma dessas muitas seitas evangélicas que pululam pelo Brasil afora, cuja denominação, não é para menos, foge-me agora à memória.

       Falava-me o sujeito da dura vida que enfrentara quando jovem, das privações e da fome que passara junto com os seus familiares - pai aleijado e cardíaco e mãe tão desmiolada que só não rasgava dinheiro porque não tinha nenhum. Moravam todos num daqueles casebres de pau a pique com cobertura de sapé nos arredores da cidade, em cujo quintal desnudo, além da casinha da latrina, não se via nem sequer um pé de couve ou de fruta. Sofrimentos aqueles que o levaram ao alcoolismo a ponto de ele fazer da sarjeta o seu catre e de travesseiro o seu cachorro. Acordara muitas vezes sendo cutucado pelo bico do sapato de algum transeunte incomodado ou do coturno engraxado de algum policial truculento. O mais das vezes era o seu próprio cachorro, seu único amigo de fé, que o despertava, ganindo baixo e lambendo-lhe o rosto ressecado pelo sol e pela cachaça vagabunda que, ao contrário da comida, nunca ninguém lhe negava.

       Quando não estava caindo de bêbado ou não se encontrava na roça sendo espoliado por algum fazendeiro fdp, mão-de-vaca e coração de pedra, roçando pasto ou fincando mourões de cerca, o sujeito trabalhava carpindo hortas na cidade, às vezes de servente pedreiro ou, quando não, fazendo biscates aqui e acolá em troca de um prato de comida ou de algum dinheirinho para a cachaça.

       Certo dia, uma fazendeira viúva, de alma amolecida pelas ilusões e decepções da vida, pela idade avançada e pelas incontáveis rezas de terço, viu o sujeito caído na calçada ao lado do seu magro e diligente cachorro. Condoída pela situação dele, a senhora o fez levantar e o levou para trabalhar em sua fazenda mediante algumas condições, dentre elas a de deixar a má companhia da maldita cachaça.

       Além de alguns serviços domésticos - "muito maneiros", disse-me o sujeito - a sua principal tarefa era tratar dos animais domésticos e cuidar da horta que a fazendeira prezava por demais.

       Como a fazenda distava cerca de seis quilômetros da cidade, todos os dias o sujeito acordava por volta das cinco horas da manhã e seguia a pé para o trabalho, que se iniciava às sete horas terminava às quinze. O retorno do serviço era também feito a pé. Quando estava chovendo, a fazendeira encarregava um dos filhos indolentes de transportá-lo em sua Rural Willys 1970, tanto na ida quanto na volta.

       Fora o salário mínimo regulamentado e regiamente pago, contava o sujeito com alguns benefícios, tais como roupas e remédios, almoço e café da tarde fartos, que eram consumidos à mesa junto com a família da patroa.
Diariamente, a fazendeira de alma mole dava a ele um litro de leite para levar para casa, algumas hortaliças e, mensalmente, uma espécie de cesta básica composta por alimentos produzidos na fazenda.

       Mas como tudo que é bom dura pouco – lamentou o sujeito - uns três anos após ter ido trabalhar para a fazendeira de alma mole ela morreu. A fazenda foi à bancarrota e gradualmente sendo vendida aos pedaços pelos órfãos perdulários e avessos a qualquer tipo de trabalho. Com isso, o sujeito foi dispensado do serviço e, dias depois, contratado por uma outra fazenda da região, de onde, salvo os desaforos e outras filhadaputices do patrão sovina, só recebia o mísero salário frequentemente pago com atraso.

       Comovido com a atitude magnificente da finada fazendeira de alma mole, e curioso para saber a espécie de sentimento que ficou gravado no coração do sujeito - já que naquela época não era nada comum tal tipo comportamento senhorial em relação aos empregados -, perguntei a ele ao final do seu relato:

       — Diga-me uma coisa, do fundo do seu coração, o que você sente ao lembrar dessa fazendeira?

       — Saudades, uai!
       — Só saudades?
       — Só, por quê!?...

       — Responda-me mais uma coisinha, insisti. No seu entender, essa fazendeira, que Deus a tenha, foi boba ou foi boa pra você?...

       Cravando-me os olhos com sagacidade e, com um sorrisinho de mofa desenhado na fuça de ébano lustroso, denotando claramente acreditar que eu era o cara mais burro do planeta por lhe fazer uma pergunta cuja resposta era óbvia a qualquer mineirinho, por mais simplório que fosse, o sujeito respondeu-me de bate-pronto:

       - Foi boba, uai! O senhor ainda me pergunta?

       Naquele momento eu entendi, finalmente, porque em Minas Gerais, quando você abre o coração e, por caridade ou cortesia, dá alguma coisa para alguém, é comum, em vez de lhe dizer obrigado, essa pessoa agraciada menosprezar o seu gesto altruísta, mas não a coisa recebida, com a seguinte expressão:

       — "Precisa não, bobo!”

       E lá foi o sujeito esperto, de terno e gravata e queixo levantado, carregando a Bíblia ensebada na concavidade do sovaco suado pregar para os irmãos a Palavra de Deus.
                                                                                                                                                                        
                                                                              Heleno Reis
                                                        
Minduri, MG, 09-06-2018 – 21:54h.


Biografia:
Poeta, cronista e ficcionista desde os dezessete anos.
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