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I - Conversa de Botas Batidas
Europa Sanzio

Resumo:
[Esse texto faz parte de um conto]
Mini-sinopse:
Conrado está morto. Ele cria que apenas o nada viria após a sua morte, mas a sua mente continuar a vagar entre os vivos, sentenciando-o a encarar o mundo sem ele.

I

Vejamos, tinha eu um conceito muito limitado do que era a morte. Ah, não, nunca fui religioso e nunca cri no depois que as pessoas gostam de pregar, aquele suposto, que viria logo após o último respirar. Para mim, somente o fim existia. É bem verdade também que eu nunca pensava muito no assunto, pois para mim tudo estava claro, não precisava de mais reviramentos na cabeça; sabia que não encontraria o tal depois. Mas peguemos as pessoas como exemplo. Aquelas que acreditam no tal depois. Bem, nenhuma delas aguarda pelo que agora vejo. Por um momento estas até creriam que realmente haviam encontrado o depois do qual sempre pregaram, mas não demoraria muito para perceberem que não se tratava exatamente daquilo.

Estou morto. Sei bem disso. Mas minha consciência vaga pelas vielas dos que ainda respiram. Quase como se houvesse mesmo um depois. Acontece que essa mesma consciência me garante que já não há o que antes existia em carne; não há olhos, ainda que eu veja, nem sequer ouvidos, ainda que eu pareça ouvir. Já nem sei mais o que me tornei! Será que poderia ainda eu vir a ser algo? Basta! Pouco importa. Se as coisas me valiam menos em vida, que dirá agora, quando sei que já sou defunto.

Comecemos do princípio do meu fim, foi ele que me levou até aqui. Quando despertei do suicídio havia apenas essa livre consciência vagante a qual agora uso. Não é um sonho, eu tinha certeza. Havia os sonhos realistas, mas isso é palpável demais para classificar como um. Mas tudo isso ainda é irreal em demasia, pela sua substância elementar. É como naqueles momentos da vida que mais parecemos ter caído em algum outro universo, apesar das coisas ainda serem tão iguais a antes.

Porém, repito, isso não é um sonho nem uma viagem a outro mundo. Recordo-me com clareza do estrondo que rachou meus ouvidos. Fiz, tratando tudo com naturalidade e confiança. Pois eu conhecia que depois era só a inexistência. Sabia que seria somente nada, nem ao menos dor, somente minha perda da consciência. Conhecia aquilo como o meu fim. Tanto sabia que por minha vontade própria, unicamente minha, acionei o gatilho frio em minhas mãos naquela noite. A noite depois desse despertar esquisito.

Ah, aquele segundo fracionado! Nunca me senti tão dono de mim quanto naquele desprezível instante. Minha vida de nada tinha valido, eu sabia, mas aquele momento único.... Ah! Ele fez aquela tragédia grega ter tido um pouco de graça.

Nem pensei muito na morte antes de fazê-la, pois mortos comprometidos em verdade com a morte não fazem isso! Pouco perdi alguns minutos da minha vida a pensar no que os outros diriam sobre quem eu tinha sido. Eu já conhecia bem! Que falassem. Dissessem na segunda de manhã que o Conrado enlouqueceu e tirou a própria vida. Manada burra! De nada me foi tirado. Eu me presenteei! Não me igualei a esses que assim me escarnarão após minha ida. Estes são fúteis, fiéis a suas medíocres vidas. Agarram-se tanto a elas! Mas tanto! Um nó apertado demais para notar sua insignificância perante ao mundo.

Percebi minha desprezível existência, por isso mesmo sou diferente. Sou uma das únicas pobres almas que agem com a vontade própria, que não deixam cegar por essa superestimação boba da vida que os outros têm!
Ah, de que vale tanto furdunço sobre o viver? Creio somente na preguiça confortável que é se submeter à ilusão de que tu valas algo! Se essas miseráveis coisas que te prendem nesse mundo te são suficientes, se tens consciência da tua insignificância e mesmo assim decide por viver ao redor dela, que ótimo! Siga tua vontade; é o que sempre preguei. Tome o caminho contrário ao que fiz. Mas não me julgues. Nem tu nem eles poderão dizer-me qualquer coisa com clareza sobre mim.

Diferente desses conformados que por aí existem, o riso nunca me entorpeceu. Sonhos nunca me fizeram crer que era importante que eu estivesse aqui. Dane-se! Nada disso nunca me enganou. Pouco ria e menos ainda fazia planos. Por esse mesmo motivo que eu enxerguei. Eu via a verdade toda hora. Não havia risada que me distraísse. A miséria se apresentava a mim de uma forma tão lúcida, era a primeira e última visão que tinha nos meus dias. Eu sou um miserável!

Com gosto, fiz o que sempre me foi tentador! Sem cartas de despedida, sem explicação; não era preciso, eu não tinha de me explicar para ninguém em vida, isso seria uma traição à morte, ao meu ato! Quem morre não tem de deixar palavras, estas são parte da vida, não da morte.

Deixem que pensem que fui somente um insano, um porco maldito que agora está sendo mandado para o purgatório, esperar pela sentença divina. Sou tudo isso que dizes. Vossas palavras vãs pouco me afetam! Estou distante, logo estarão também. Não demorará para que os tempos mudem, gerações apareçam, tudo se torne algo que jamais aquelas faladeiras pessoas pensaram que seria! Ai, então, não sobrará mais ninguém para lembrar de coisa alguma. Por isso mesmo, dane-se!

Sou dono de mim mesmo. Eu sei dessas coisas. Basta que eu saiba. É-me suficiente conhecer que foi por mim mesmo que vim para aqui.
Mas onde estou eu, afinal? Devem perguntar-se. Respondo-lhes: em lugar algum, em todos os lugares! Não sei! Sou consciência, apenas. Sei o que fui, as memórias recentes ainda estão claras em minha mente. Olho à minha volta e sei exatamente onde estou.

A Loja de Penhores Conrado. Era o seu nome, eu lhe dei, também a mim nada valia a originalidade. Caindo aos pedaços, espremida entre outras lojas, repletas de tranqueiras. Já não podia mais respirar o pó acumulado de anos, mas só de vislumbrar as prateleiras empoeiradas meu nariz inexistente se irritava em imaginário.

Mas que movimento seria aquele em minha loja? O assoalho rangia com tantas pisadas apressadas. Desde que havia a aberto, cinco anos antes, jamais havia eu de ter presenciado tamanho movimento. Estariam aquelas pessoas indo ao encontro do meu eu morto?

Edgar, meu jovem ajudante de poucas palavras, estava por detrás do balcão, parecendo transtornado com tanta gente. Acolhi Edgar quando ele tinha quinze anos, era desnutrido e de olhar fundo. É certo que o olhar de doente nunca perdeu, mas bons quilos ganhou às minhas custas. Pouco falava, mas eu o tinha como fiel. Baixava a cabeça para as minhas ordens e era habilidoso.

Mas em contraste a sua quase inexpressão de sempre, naquele dia havia sorriso em seus lábios, quase sádico. A satisfação do teu rosto eu podia sentir dali, do outro plano.

O que diabos ele estava fazendo? Não era possível de crer!
Com o ardor e energia que um jovem deve ter, procurava os objetos penhorados dos senhores e senhoras que esperavam debruçados pelo balcão. Achava-os, devolvia-os e dinheiro nenhum recebia em troca! Todas as ninharias que eu, como bom agiota que fui, tratei de adquirir em nome de um bom negócio para mim, estavam-se indo embora! Ora, o que aquele moleque pensa que faz?

Veja só, agora apresenta-se com esse sorriso sádico! Feliz por me apunhalar pelas costas! Tolo! Deveria ter pegado essa maldita loja para ti! Mas claro que isso não te daria o prazer que tens agora, ao ver meu pequeno império, a única coisa que ainda carrega meu nome, se indo!

Por que fazes isso? Aposto que me queres mal pelos baldes d'aguas que te dei um dia! As poucas vezes que falava, só vinha aquelas tuas palavras imbecis, típicas de um sonhador idiota! Adorava dissertar sobre sonhos comunistas ou sei lá mais o que. Acha-te o Robin Woody fazendo isso que fazes agora? Devolvendo a esses senhores o que paguei para ter?

Se é assim, dou a ti meu último balde d'água fria, bem congelante: és tolo! Burro por crer que essa satisfação que sentes agora fara de ti algo!
Ah, esse sorriso que esbanja! Ri alegre assim porque já não estou mais aí? Por que me achavas um agiota burguês, símbolo de tudo que tu odiavas e prometia destruir no teu íntimo, que agora jaz morto? Minha ausência te faz feliz? Que seja! És insignificante como aqueles outros. Tolo também fui eu por esperar algo a mais de ti, um ninguém que nunca ocupou o tempo com algumas páginas de livros.

Não duvido que durante todo esse tempo que te tive debaixo das minhas asas tu resmungavas palavras de ódio em minha direção, enquanto eu estava distraído com algo. Agora sei bem que seria capaz disso. Agora vejo as prateleiras se esvaziando, todas tomadas pelo êxtase das pessoas felizes em terem se livrado do agiota Conrado!

Quer saber? Admito que isso me aborrece um pouco. Não por saber que me tinham como tirano, disso eu já sabia e volto a repetir, pouco me vale. O que me desagrada e saber que fiz algo de feliz para tu, Edgar, e também para essa gente! Que imbecilidade da minha parte deixar alguns sorrisos estampados nessas boquinhas infames. Tolo fui! Deveria ter ido e deixado desgraças. Dívidas, desolação, lágrimas, até, quem sabe, mortes. Gostaria de ter estragado com a tua felicidade, bem como dessas pessoas felizes por pegar seus miseráveis objetos de volta! Fúteis, fúteis todos eles!

Estou em um plano elevado, sou ainda mais superior que todos eles, que tu. Vejo tudo! Estou vendo também esse seu sorriso. Sei que ele é efêmero, bem como tudo na vida. Sabe que sei disso porque sou um ser elevado. Sempre fui. Doía-me misturar-me com essa gente.
Meu alento é saber que logo esses sorrisos se vão, não demorará para essa alegria porca passar, dando lugar de volta às dores! Estas são duradouras, meu filho. Sem a mim protegendo-te, logo estará perdido nelas.

Por isso mesmo, vou deixar-lhe. Aproveite esses instantes em que a alegria ainda te habita. Basta! Não adianta que eu fale isso. Muito porque, Edgar, já não pode me escutar, mas muito também porque minhas palavras não servem para seres medíocres. O que tu entendes por aproveitar é vão, passageiro como a própria alegria. Então, de que vale? Falo do aproveitamento real, quando o segundo te é guardado não na memória, mas em ti, no teu existir, no que tu entendes por sentir! Vamos deixar isso de lado, nunca irá entender Edgar, muito menos executar. Isso lhe gastaria tempo, temos pressa! Eu mesmo a tenho.

Fartei-me de ver essas pessoas. Se eu pudesse, fecharia meus olhos. Mas não posso. Sou apenas consciência. Nela, não há espaços para apagões. Minha sentença é essa: enxergar!

(continua)


Biografia:
Leio desde criança, quando comecei a achar o mundo enfadonho em demasia. Escrevo desde a adolescência, quando senti a necessidade de dissertar sobre aquele mundo tão tedioso. Prazer, sou Europa!
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