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EXTREMO
Conrad Rose

Resumo:
Um retirante descobre o sexo pelas mãos de uma meretriz da Vila Mimosa. Encantado, contrai matrimônio e a leva para seu bangalô no Borel...

EXTREMO
Conrad Rose




     
     Mazelas tantas. Terra rachada, animais seqüelados, crianças diminutas, sol a pino, assistência alguma. Josivaldo podia contar nos dedos as chuvas que presenciara, já os irmãos que perdera não. No interior do Piauí crescera tendo a desgraça como maior predadora. Sem televisão, apenas ouvia os vizinhos se gabarem dos seus que - cansados de martírio - migravam a um eldorado distante com bica dentro de casa, trabalho remunerado, escola e medicina para os filhos. Ouvia, porém desacreditava.
     Maioridade. Exausto de pedir aos céus que chorassem por ele, o agreste conjeturou sua peregrinação. Panela, caneca, trapos, chinelos, certidão de nascimento, terço da avó, paletó do avô, imagem de São Francisco de Assis, enxada(!?), peixeira, mapa do Brasil, carta de apresentação de um usineiro e certificado de meio-fundamental - no qual não alfabetizara deveras.
     Da mãe acamada, levou consigo a metade das economias: vinte reais; de uma caixa velha, um envelope com o endereço do tio em Belford Roxo.

     Três estáticos dias a salgar a boca com as lágrimas, que a congênita sequidão o impedia de derramar, até saltar na rodoviária carioca.
     Despendeu cinco para se locomover à vila do parente e outros cinco em parati para afogar as mágoas ao ser notificado que o tio há muito descera até São Paulo e não deixara rastro qualquer.
     Pelas tantas no botequim, Josivaldo conheceu Zé Mário, alto funcionário da Microsoft. Ao menos era como se apresentava o mais astuto vendedor de discos piratas da Saens Peña.
     O retirante arrumara o que fazer. Dinheiro nem um pouco fácil, porque além de dividir o lucro com o acionista de Bill Gates, também havia os papas-capim da prefeitura e os bandidos. O que lhe sobrava era partilhado entre o quarto úmido no Borel, as quentinhas e o supletivo.
     Assim fechou primeiro e segundo graus, enquanto Zé Mário engrossava o cordão dezoito quilates, via seu Botafogo de cadeira branca e nutria duas na Praça da Bandeira.
     O convite não tardou:
     - Tá na hora d´eu te mostrar a melhor paisagem do Rio. As bundas.
     Josivaldo conheceu enfim a Vila Mimosa e - imaculado que era - amou no primeiro coito aquela que o desfrutou. Tudo em contados trinta minutos.
     Tífanny, uma dádiva de alcunha, sobrava no argumento de Zé Mário. O restante, um festival de maus tratos: cabelos descoloridos a partir do terceiro centímetro; unhas vermelhas descascadas; solas de andarilho; dentes ao léu; peças íntimas puídas; bijuterias excêntricas; meias desfiadas; pêlos no sovaco; e corrimento contínuo a feder. Apesar da míngua, a meretriz transformou a vida do ambulante a ponto de contrair-lhe o nome:
     - Valdo, eu te amo. - e o infeliz acreditou sem pestanejar, logo no segundo programa. - De todos que já me deitei, tu é o melhor. Casa comigo?
     O nordestino descobria o sexo por letradas mãos. Meteu anel no dedo e desandou a dobrar turno no intuito de melindrar seu único e soberano desejo. Tífanny jurou-lhe fidelidade e prometeu-lhe uma novena pela benção recebida. Óbvio que nunca adentrou em uma igreja.
     Passava as tardes perambulando pela Zona Sul. Alisou e pintou os cabelos; desenhou mãos e pés; tatuou-se; depilou buço, virilha, pernas e axilas; perfumou-se; hidratou-se; habilitou celular; e insistiu nas semi-jóias cafonas. Uma pestanejada e revigorou sua imagem por conta dos aplicativos falsificados.
     Valdo bem que lamentou o custo, mas o que haveria de fazer? Como viveria sem os favores da dita? Tinha mais de satisfazê-la em tudo e decidiu ter carta de motorista.
     A mulher em nada lembrava o traste de outrora, o que pausava o bater da laje no Borel para vê-la requebrar suas salientes nádegas até o barraco que o cônjuge financiara - no bigode e em um mar de promissórias. Se antes ela só servia de bruços à meia-luz, agora todos os ângulos lhe valiam.
     
     Estupidez extrema levou Valdo a providenciar o reencontro entre Zé Mário e Tífanny. O vivaldino não a reconhecera de pronto, e quando sim, viu diante de si a própria galinha dos ovos de ouro. Seduziu Tífanny e habituou-se a desfrutá-la com veemência.
     Tarde de folga atípica, o celular da bonitona acusou: Zé Mário chamando. Valdo testemunhou e mais que depressa a adúltera se defendeu:
     - Atende aí. Deve querer algo contigo. - solicitou.
     O esperto distribuidor inventou um compromisso para o subordinado mandando-o a Duque de Caxias e abalou-se para a Tijuca. Valdo encarou a Avenida Brasil encasquetado com a memória falha, pois não lembrava o momento em que número da mulher ao patrão. Julgou ser coisa da bebida, por fim.
     O enlace durou meses até o estopim. Valdo acordou no meio da noite e Tífanny não estava. Ferveu água, coou café, postou sua peixeira à mesa e aguardou. Sem muita demora a mulher apareceu.
     - Com quem que tu tava? - questionou o marido.
     A infiel despencou aos prantos. Valdo observou a cena por minutos, então pegou a faca, aproximou-se, suspendeu-a pelos cabelos, roçou-lhe o pescoço com a lâmina e pronunciou:
     - Tim-tim por tim-tim! Ou tu vai morrer é agora!
     - Calma, Valdo. eu explico. - trêmula. - Zé Mário. Ele me ameaça todo santo dia. Diz que s´eu não me deitar com ele, tu tá frito. Ele vai injuriar teu nome na organização e eles vêm atrás da gente. O qu´eu podia fazer, Valdo?
     - Pode deixar, Tífanny. Vou resolver. Vou capar o safado.
     - Não Valdo! Tu pega dez anos.
     - Não me acham. Voltamos prá minha terra. Tenho minhas economias.
     - Por favor, meu homem. Deita comigo e sossega. Só tu me dá prazer.
     Beijos, roupas dispensadas, frenesi até a exaustão. Mais calmo, Valdo definiu que iria largar o ofício e se mudariam dali sem dar pista. Em dois dias já residiam em Queimados.
     
     Sem emprego e com o ônus da troca de morada, a poupança findou e não demorou o desespero. O nordestino saía todas as madrugadas atrás de trabalho e só voltava tarde da noite, sem grandes novidades. Uma luta e tanto.
     Cansada de esperar e ainda aprumada, Tífanny resolveu literalmente se virar. Novamente de bruços, estabelecia uma outra fase em sua vida, na qual Valdo não cabia. Primeiro, por compaixão, enganou-o dizendo que arrumara serviço de babá.
     Com o que restou dos investimentos da Zona Sul, conseguiu triplicar o cachê e logo despertou o interesse de um cafetão, que passou a administrar seu ponto, seu turno e sua freguesia. Meio a meio e sem violência - um bom trato, no ramo. E o agenciador ainda lhe proporcionava prazer oral.
     O coitado do Valdo de nada desconfiava. Além do precário discernimento, estava muito ocupado procurando serviço e driblando a concebida vingança de Zé Mário.
     Dizem que mentira tem perna curta(!); e o dito nunca fora tão apropriado. O desempregado flagrou Tífanny de mãos dadas com um anão na Praça Tiradentes, em plena tarde. Teve que olhar três vezes para se certificar de que não se tratava de uma criança, tampouco a esposa estava trajada como babá.
     Não teve reação imediata. Ao invés disso, encaminhou-se a Queimados e interrompeu o trajeto duas vezes, na Central e na vila, em botequins.
     No casebre, repetiu a cena da peixeira e esperou. Nada de café(!); uma garrafa plástica de aguardente fazia companhia ao facão.
     Logo que a infiel rompeu a porta, ele avançou. Grudou-a e esmurrou-a, proclamando:
     - Babá, é? Vagabunda dos infernos.
     - Pára, Valdo.
     Mais dois socos e um chute nas costelas. Sem uma única palavra, ele pegou a pinga, abriu a bolsa dela, retirou todo o dinheiro e saiu.
     Passou no bar somente para saber onde ficava o prostíbulo mais próximo, e lá gastou até o último centavo. De ventre esfolado, trançando as pernas e soluçando, voltou para casa.
     Mais uma pausa em uma encruzilhada, onde vomitou sobre despacho, execrou Deus, flagelou-se de remorso e chorou à vera.
     No lar, encontrou Tífanny na mesma posição torcida que ele a colocara. Nariz com sangue coagulado, hematomas e respiração dolorida. Valdo a carregou para a cama, despiu-a e lavou os machucados. Daí deitou ao seu lado e dormiu, abraçado a ela, infestando o cômodo com suor alcoólico.
     No dia seguinte, cuidou de Tífanny com o maior zelo e preparou arroz com ovo para alimentá-la. Pediu-lhe desculpas e jurou amor eterno. A mulher prometeu-lhe regeneração.
     O cafetão sentiu no bolso a ausência da loura e o celular estrilou de novo, dessa feita interrompendo o ato do casal. Valdo vasculhou:
     - É ele? - prostrando o aparelho à frente da mulher.
     - É. - disse ela após observar o visor.
     Ele atendeu:
     - Olha aqui seu cabra maldito. Tu deixa minha mulher em paz senão eu capo teus bagos, filho d´uma égua.
     - Aí corno. Pergunta prá vadia com´é que ela vai se arrumar sem a minha língua. Ela bem me falou que tu é fraco, mané.
     O sertanejo mirou Tífanny e perguntou:
     - Tu te deitou com ele também?
     - Ele me obrigava.
     De volta ao telefone:
     - Pois saiba que ela tava aqui gemendo feito doida e que ela ama é a mim. É comigo que ela tem prazer. Vai de retro, sete pele.
     Desligou.
     Franziu testa, resmungou, pensou, encarou a cônjuge e esmoreceu; tratou de lambê-la inteira antes de retomar o coito.

     Após semanas de racionamento extremo, Valdo finalmente arrumou ocupação: motorista de van durante as madrugadas. Gávea, Saens Peña. Tudo perfeito; ou quase, já que a linha cruzava a Lapa.
     Certa madrugada, o rústico conduzia uma equipe inteira de garçons quando viu sua pior assombração: sua amada esperava para atravessar a Mem de Sá e fazia-se acompanhar de um travesti e de um estrangeiro cor de rosa - obeso e sorridente. Prenúncio de uma festa íntima de diversificados prazeres, remunerados em euros.
     Brecou o utilitário e foi de encontro ao trio:
     - Tu não presta mesmo. Entra aí que eu vou te mostrar como a vida é dura.
     Ela relutou mas o nordestino a carregou na marra para o interior do veículo. Em movimento, iniciou o discurso:
     - Eu trabalhando duro prá te dar de comer e tu na pista. Tu é muito da sem-vergonha mesmo.
     - Dar de comer e só. Com a merreca que tu ganha dá mal prá viver. - deboche etílico.
     - Cala tua boca, vadia. Eu vou te quebrar todinha em casa.
     Os passageiros, que até então riam timidamente, passaram a tentar amenizar os efeitos do flagrante:
     - Calma aí, mermão!
     - É, piloto, fica frio. Não existe mais mulher direita.
     - Tu não é exceção.
     Mas Valdo só fez exasperar mais:
     - Conversa. A mulher é minha e mulher minha não faz isso, não!
     Silêncio. Tífanny aproveitou a deixa de um semáforo e tentou fugir, mas o marido a segurou pelo braço e ali começaram um duelo a tapas.
     Os garçons intervieram e Valdo decretou:
     - Mete a mão, não! É assunto de família.
     E remendou um bofete dela com um soco no nariz, que tornou a sangrar. Foi o estopim:
     - Pára aí, piloto. Pára agora.
     - Tu quer saltar? - perguntou o tolo.
     Um garçom assentiu, Valdo freiou e desceu para abrir a porta lateral e cobrar os passageiros. Nem teve tempo: um a um, os clientes foram-lhe socando, chutando, pisoteando e tudo mais. Pouco sobrou intacto.
     Tífanny enfim se mandou dali e do mesmo celular contatou o mantenedor da Praça Tiradentes. Nunca mais se viram.
     Valdo ficou no Souza Aguiar por duas semanas, sendo medicado e atado.
     Assim que recebeu alta, o desafortunado recolheu seus pertences em Queimados e rumou para o Piauí. Mais três dias de estrada, agora sem a expectativa da fortuna e com a sombra do fracasso. Chegando lá, soube que a mãe falecera dois dias depois da sua partida.
     Desesperado, Josivaldo chorou, lamentou e expurgou Deus novamente. Secou as lágrimas, olhou fixamente a peixeira, apanhou-a e saiu da casa de barro abandonada que lhe restara. Distante, ajoelhou-se à terra e, de brusco, fincou o facão no abdome sob o sol escaldante.
     Não tardaram os urubus.


Biografia:
Conrad Rose, 35, escritor ficcionista brasileiro, mora no bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Há quatro anos trabalha com oficinas de conto e crônica. Atualmente desenvolve o projeto dentro do G.R.E.S. Império Serrano, em Madureira.
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