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o fim de lene
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juliana de Araujo

Resumo:
a história de do feim da vida de uma moça com o virus hiv

Passava das nove da noite quando eles foram chamados para socorrer a Lene. Há três dias acamada, entre uma vida e uma morte ,das duas não sabia direito discernir, e uma febre de muitos graus beirando mais uma convulsão do que um desfecho de final feliz; eles rasgaram o beco e munidos de mochilas “salva-vidas” avançaram em direção ao cubículo indigno em que a Lene vive metida-mais por falta de opção que por vontade própria-. A sorte dela é que sempre ri de si mesma, mesmo quando o sacolão atrasa e a pensão não sai. A Lene é uma sobrevivente da noite que acordou para o dia pela dor e ainda assim se espreguiça quando ele nasce e chora por não poder dormir, a vida miserável que leva a deixa perplexa para ter outro tipo de reação que não o choro convulso ou o sorriso volátil.
       Chega meio dia a Lene –como sonâmbula –se estira sob o sol,sentada ao pé do poste de luz. Acende um cigarro quando tem e um baseado também porque o beco da felicidade é um lugar à parte e por aqui anda gente que nasceu em outro mundo, gente comum e gente sem noção de realidade. Aqui vivem anjos pecadores, pescadores e desertores que o cansaço abateu ;sonhadores que inventam todos os dias a mesma canção de esperança que sabe Deus onde os levará.
    O caso é que eles chegaram naquela espécie de ambulância-pronto-socorro com ares de resgate, em seus corações de certo, a ansiedade de encontrar sabe-se lá quem ou o quê e em quê condições .Ouviu-se que ficaram chocados, com a situação calamitosa e precária da Lene.A Lene que tantas vezes procurou um Deus vazio no calçadão da praia, que tantas vezes viveu em sacrifício profanando a lei dos homens e deste mesmo Deus conhecido por ela como o deus do amor, rigorosamente punitivo e que a deixa sujeita ao castigo do fogo do inferno , dependendo do tamanho do pecado e é claro, do auto respeito decisivo na hora de se submeter a esse deus; coisa que a Lene não teve por que não ouve quem desse à respeito, palavra ou exemplo que ela tomasse para si como lei irrefutável.
    O trabalho do SAMU no translado da Lene até o hospital ficou com a maior cara de seriado de tv a cabo. Eles deram a impressão de eficiência e até heroísmo porque nessas horas só mesmo a valentia do corpo de bombeiros. Havia uma mulher morrendo na casa ao lado e ninguém que soubesse do fato. O vírus que ela carrega mete medo em quem nunca visitou a ala de aidéticos do hospital Marieta ou qualquer outro, com suas salas de isolamento e suas enfermeiras lésbicas comandando bravamente a condução da rotina dos pacientes. Depois de um mês de clínica São Gabriel , você descobre se tem ou não a grandeza de uma enfermeira lésbica.
     Enquanto tentavam reanimar a Lene, aquela ambulância móvel teve as portas escancaradas para recebê-la, como um abraço de mãe. Duas figuras genuinamente masculinas à espera e a espreita, das duas, uma delas se movimentava dentro da ambulância agindo com a segurança de um veterano de guerra,com a presteza de um doutor que esperasse o paciente à mesa de cirurgia, uma figura que no contorno da noite foi se adaptando à luz em plena claridade de mercúrio, e então eu percebi aquela criatura ,primor que encantou meus olhos, provocando um estranho sentimento de posse e de perda. E eu pensei que bom se desmaiasse aqui agora mesmo enquanto esse vento tão morno reconhece a voz e desmistifica a masculinidade contundente na porta da ambulância estática.E mais uma vez pensei, ai ,preciso ter um desmaio ou uma síncope, ai, preciso cair abruptamente ao chão para ser prontamente socorrida,recolhida e às pressas ser levada por aquela criatura ali, tão perfeitamente capaz de cuidados extremos com o mal do mundo, aquela criatura ali que com certeza não me conhece e que no entanto teima em provocar arrepios pelo corpo,calafrios, como rastro de incêndio deixando no ar um calor sem nome.
    De repente conseguem adaptar a paciente dentro do pronto-socorro móvel. De repente foi o próprio carro que se adaptou a ela, como uma segunda pele, a fim de que fosse levada ao hospital e salva quem sabe de si mesma. Até onde eu saiba ,o diagnóstico oficial foi de pneumonia dupla_ sinal de que a Lene anda muito triste_ e aqui de coração, espero eu que ela se recupere com o raiar dos próximos sóis até que possamos- e por quê não? Continuar conversando banalidades em frente ao portão.
                                                                             

2

    Menos de uma semana depois de ter sido internada no hospital a Lene estava de volta. Com certeza pior do que antes. Nesse caso a culpa é um resíduo de ninguém. Nesse caso a culpa é só um vago ardor de sentimento que ninguém quer acolher.Eu a vi pela noite que caiu andando vagarosamente pelo beco, de ponta a ponta, assim como se cumprisse uma ordem dada por um general militar. O abdome distendido, a voz sumida, os olhos cujo brilho se perdiam a cada segundo.Um retrato indiscutível do mal do mundo. Mais indiscutível ainda se tornou a abrupta realidade num vai e vem de discussões exageradas e tudo levou a crer que cada um, à sua maneira ,se incumbe de fazer o seu destino.
   A mais completa falta de solidariedade nos coloca- a todos- como portadores indefinidos de monstruosos preconceitos. Contrario a isso existe uma realidade mal cheirosa que avança em nossa direção. O que fazer nesse sombrio momento do contato humano com o vírus fatal? O que fazer quando as coisas já aconteceram e nós continuamos mudos diante da situação? O que fazer, quando a própria pessoa diz sim, eu desisto dessa coisa escandalosa a que vocês chamam viver.

   Ela pede cuidados extremos. A energia que possuía parece aos poucos se esgotar. Ela parece estar se dissipando como uma brisa noturna e, desumano é o chão em que ela pisa enquanto se esvai junto ao sangue que teima em escorrer para fora do corpo. No quarto sem sol ela jaz. Entre os lençóis ensangüentados ela se esconde, é tudo muito triste quando se trata de um ser humano que há um mês ria de si para amenizar o próprio caus.

Antes de a noite cair a ambulância do SAMU foi novamente chamada. Em vão eles entraram no quarto da Lene. Ela rigorosamente se negou a voltar ao hospital. Preferiu continuar em seu estado critico-vegetativo- lacrimejante. Ela disse que fora desenganada pelo médico e agora sabe que vai morrer. Não que irá morrer um dia, mas, que irá morrer agora amanhã daqui a pouco, que tem a morte certa como companheira. É trágico demais para ser mentira. É verdadeiro demais para a expectativa inútil desse final feliz que sei, não chegará.. Hesito em vê-la, não saberia o que dizer diante da porta olhando sem querer ver a sua ruína,a quanta decadência pode alcançar uma criatura.
   Agora eu me pergunto: onde estão minhas crenças metafísicas ? E minha crença na vida após a morte? O que eu poderia dizer que significasse conforto ou qualquer outra coisa cabível em tal situação? Porque, eu me pergunto, não dizer então a ela que talvez de fato encontre o que espera quando fechar os olhos para nunca mais.
   

3

   Súbito me veio uma coragem e vontade avassaladora de fazer qualquer coisa, menos continuar a ouvir o silêncio funesto aqui, ao lado, e me encaminhei com a alma lânguida até o lugar onde ela estava. Entrei, pé ante pé, para me deparar com ela, abatida entre os lençóis. Um lugar impregnado com a cor do nada, violentamente diáfano aquele catre saturado de idéias repugnantes e carne dilacerada...
   Ela me olhava com um jeito longo, quase como se quisesse entrar através dos meus olhos, como a pedir que a socorresse ou que ao menos tivesse compaixão... Fiz com que ela recebesse minha energia imbuída nas palavras, que reagisse. respirasse enquanto a morte não forcejava por si um combate assim mais duro, corpo-a-corpo, que ainda sim, gostaria de vê-la a andar e rir das próprias mazelas naquele pedaço de chão que nos aproximava, que era o último fio de vida ultimato da vida : pegar ou largar.
Assim ela acabou optando pelo hospital.

4

     Mas foi tudo uma grande mentira porque hoje a Lene morreu.Um dia antes da primavera chegar a Lene abstraiu-se da vida para nunca mais. . Agora vejo que até eu guardava alguma esperança de sobrevida para ela. A Lene morreu no hospital, eu não sei de detalhes e não quero advinha-los. Só muito me espanta essa chuva repentina, esse dia que mudou de cor várias vezes como a reação de alguém que recebe noticia de algo não esperado e muda de sentimento a cada novo pensamento que surge até que, lentamente, se fixa num só sentimento para digerir melhor o acontecido. Só agora a Lene se libertou daquele peso.

                                                        Juliana Araújo


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Outros títulos do mesmo autor

Crônicas o fim de lene juliana de Araujo


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