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Sopro poético
João Felinto Neto

Resumo:
Escrever entre pensamentos cotidianos e usado pelo autor. Assim distingue-se seu perfil e sua estética, dando ênfase a diversas vertentes de seu pensamento inevitavelmente estranho. João Felinto Neto é contemporâneo, porém, os seus pés ainda tocam, muitas vezes, o solo sagrado dos poemas antigos. Sua paixão pelos poetas que elevaram a humanidade com suas obras-primas impulsiona-o nessa transcendência de época e estilo. Consolidar razão e emoção em versos “toscos” , como diz ele mesmo, é a única maneira de ressuscitar os mortos e eternizar os vivos. Sopro poético é uma obra que viaja por um vento brando, com versos suaves; atravessa uma forte ventania e finalmente, numa brisa, paira no mesmo lugar do qual partiu, o intrincado esboço do poeta, uma forma caricata do ancião que lhe habita. O poeta não diz: eu quero ser reconhecido. Porém, só se sente feliz, com os olhos em brilho, quando diz: eu estou sendo lido. A poesia é para João Felinto Neto, uma forma de pensar resumo, ou seja, toda a amplidão do universo físico e intelectual pode ser sintetizada em versos. Através de seus versos, o autor manipula as impressões cotidianas estabelecendo deformidades no que parece perfeito e enaltecendo poeticamente a imperfeição.

SOPRO POÉTICO

Quando o vento
sopra a areia fria
na manhã que se inicia,
é sopro poético.

Quando o vento
sopra a chuva fina
sobre a casa vazia,
sem ter notado ainda,
sopra as dobradiças,
é sopro poético.

Quando o vento
sopra as flores no jardim,
sopra também para mim
os versos soltos na estrada,
sopra as árvores desfolhadas
pelas folhas que caíram sem ter fim,
é sopro poético.

Quando eu
enlouqueço pensamentos
com o sopro que vem de dentro,
o sopro poético é meu.
Conselhos da lua

Era uma lua que nascia,
que me olhava e dizia:
- Caminhe só.
Iluminava o meu caminho.
O tempo todo insistia:
- Vá sozinho,
é bem melhor.
Na verdade a lua mentia.
A solidão e a saudade
que eu sentia,
dava dó.
A cada passo,
eu consumia
a luz da lua,
e à meia-noite,
no meio da rua,
tornei-me pó.





SOPRO DO MAR

Do mar,
à noite toda,
o vento trazia o teu perfume.
E na manhã ensolarada,
como de costume,
caminho na areia molhada.
Enquanto o mar me toca
com gotículas frias de água salgada,
o meu silêncio me consome
por estar só.
O mar se torna violento,
parece um pouco ciumento.
Se enfurece em ondas que me alcançam,
e cada vez mais se lançam,
tentando me arrastar.
Então escuto o mar
em plena luz do dia,
recitar uma poesia,
e me ponho a decorar.
Não sei qual de nós dois
seria o poeta,
o mar não foi,
na certa
fui eu, tentando me afogar.
Apesar da paixão

As frases vazias,
evasivas
de um inexperiente amante.
O olhar distante,
à procura de uma cena do passado.
O coração ilhado
por dois lustrosos diamantes,
o mais belo par de olhos
por mim já fitado.
A paixão inibe a fala
e deixa atoleimado o pensamento.
Mesmo sem um único compromisso,
o jovem coração ciumento
torna-se arisco.
Eis que o ardor
compulsivo do querer,
faz o homem crer
que tem posse do que preza.
Mas a bela fera
é mais forte,
e mesmo conquistada,
é presa enclausurada
que reage.





COMO POSSO?

Como posso meditar
sob o telhado do templo,
quando sobre ele
não há razão, nem sentido?

Como posso acreditar
em meu próprio pensamento,
quando o meu coração
o mantém esquecido?

Como posso deixar
de escutar o que dizem,
quando a minha vaidade
abre meus ouvidos?

Como posso aceitar
e ser obediente,
quando tudo que quero
é ser diferente?

Eu não posso resolver
esse caso perdido,
se pelo acaso,
sou desconhecido.





ESTRANHA CRIATURA

Os detalhes de seu corpo,
não é possível compô-los,
apenas admirá-los,
misturados a areia,
petrificados,
uma estatueta grega
da glória do passado.

A perfeição de teu rosto,
besuntado com argila,
uma deusa negra,
representada numa forma
indefinida.

Seu pedestal é sagrado,
feito de pedra polida.
Um ancestral,
num mundo ilhado,
moldou uma eterna figura,
a mais estranha
criatura.





AMOR DE GAROTO

O garoto amava
platonicamente,
e ficava
à janela
olhando a bela
garota de tranças.
O ciúme tomava conta de si mesmo.
O garoto em silêncio
se atrapalhava nos primeiros passos
da dança.
Quando perto,
um imenso temor.
Na distância,
uma vaga lembrança
como fora
o seu primeiro amor.





CONQUISTA

Apenas o olhar tocou meus lábios,
meu peito,
e voltou aos meus olhos num disfarce malicioso,
notei que ali nascia um namoro.
Não havia jeito,
era despir-se do embaraço
e jogar-se n’aqueles braços
que abriam-se para mim.
Colhi a nobre flor
do humilde jardim,
com pétalas disfarçadas de pudor.
Um ato de juventude
que a própria atitude
confirmou.
Os dias arrastados pelo vento,
sem que eu tivesse tempo
de perceber.
Sou um velho jardineiro,
que sem saber
estava absorvido por inteiro
pelo mais singelo cheiro,
o cheiro do amor.





NA BIBLIOTECA

Não me encontro
enquadrado em moldura
na biblioteca.
Estou nas finas páginas
folheadas por entre velhas estantes
empoeiradas pelo tempo.
A minha voz eclode
no enorme silêncio
dentro da cabeça de quem lê meus versos.
Não é a minha face,
o reconhecimento,
e sim as impressões diversas
que minha loucura causa
em mentes alheias.
Eis que sou eterno
na poesia,
quando mania
dos que sempre lêem.





EM CENA

Num intricado sistema
há apenas um simples curador
para sanar todos os problemas.
Perdoar àqueles que mantêm na dor,
eis um problema.
Quão pequena,
a chance de um desertor,
mesmo por amor,
outro problema.
No teatro,
crucificaram o ator.
Não há problema,
não tenha dó,
num ato só,
roubaram a cena.





DECRÉPITO POETA

Enquanto o sol
se põe ao entardecer,
meus olhos podem ver
o que não viam.
Meus pés descalços
pisam a areia fria,
enquanto o mar
parece me dizer:
- Bom dia.
A lua, à noite,
na distância se perde,
como os meus versos
pelo tempo,
dia-a-dia.
Entre meus dedos
sinto aflorar a minha poesia,
apesar de meu sorriso
já não parecer o mesmo.
Minhas palavras
na garganta enrouquecida,
mostram mais sabedoria
e menos segredos.
Decrepitude,
que aos poucos me limita.
Minha última atitude
é olhar à janela
e ver o mesmo sol
que continua a se pôr
no fim do dia.





ONDE ME CABE?

Onde me cabe
no golpe do cutelo?
Onde me cabe
na batida do martelo?
Onde me cabe
no inferno da caldeira?
Onde me cabe
no batear da peneira?
Onde me cabe
no praguejar do coveiro?
Onde me cabe
no atraso do ponteiro?
Onde me cabe
nas treliças do confessionário?
Onde me cabe
nas mudanças do cenário?
Onde me cabe
nas verbetes do Aurélio?
Onde me cabe
na lâmina do bisturi estéril?
Se não me cabe
nas palavras do profeta,
enfim me cabe
na caneta do poeta.





O GATO

Sobre as patas,
não há falas que incomode.
Na areia,
deixa o molde.
Não se importa
se o mundo não tem paz.
Sua paz
é o pé da porta.
Entre pernas
não se deixa iludir.
O telhado
é a sua cobertura.
Não se importa com a altura
a subir.
Sua presa,
quando presa, lhe apraz.
Não tem hora.
Os carinhos da senhora,
pede mais.
Não lhe impõe questões, a vida.
O seu beco-sem-saída
é apenas sua morada,
sua casa escancarada
para a rua.





MALUCO

Uma tristeza estampada
por trás de um tolo sorriso.
Minha fala
não diz nada.
Não assumo compromisso.
Para mim
a morte é fruto
de uma árvore desgalhada.
No silêncio
não sou luto,
sou um maluco que se cala.





DIDILHAR

Dedilhei na vida
cifras de boa conduta,
porém a melodia
não soou tão bem.

Não peço a ninguém:
- Por favor, ajuda!
E quem me acusa
sabe muito bem.

Não conto vantagem.
Nem canto em praça,
meus dotes.
Não guardo em potes
de mel,
meus erros.

Embaixo de arcos,
meu medo
é ser descoberto.
Não sou tão esperto,
nem tão preguiçoso.

Nos versos da vida,
sou letra difícil de se traduzir.
O som que abriga
o meu coração,
sonata que não
consigo ouvir.





GOLPE

O meu golpe
de mão,
fortuito,
suas lágrimas.
O meu mundo
sem chão,
minhas lágrimas.
A procuro
sobre o colchão,
entre meus dedos.
Perco a fala
e o coração.
O meu medo
é que a ilusão
perca a alma,
e que me sepulte
em vida.
A minha esperança,
o seu perdão.
Assim, eu serei
entre os cadáveres
o mais feliz.





UMA VOZ

Teme sua alma,
atirada em chamas,
queimar até a raiz.
Por ser radical
quer ser imortal.
Quando alguém o chama,
uma voz lhe diz:
- Percorri todas as distâncias
que o mundo quis.
Encontrei-me só,
e o nó
na minha garganta
desfez-se no riso
de um homem infeliz.





IMPUNE

Chego a acreditar
em sonhos.
Mas minha alma
só me leva
à realidade de meus passos,
que pelo acaso
não são frutos de minha vontade.
Meus impulsos
são argueiros
nos olhos alheios.
Mantenho meus pulsos
acorrentados à natureza humana
em delírio.
Sou tão frágil
ante meus erros
quanto ante meus desenganos.
Sou tão falho
como os atos
que me deixam
impune.





GENTE

Ah! Mundo quente.
O poeta está triste.
Será que por aí existe
um lugar que não tenha flor?
Eis que um mundo
sem amor,
não seria diferente.
Quanto mais conheço gente,
mais descrente
e triste
sou.





QUADRO DE NÓS

Entre as páginas
do livro vida,
flagra e perfídia,
pranto e pudor.
Enquanto colhe
tão sutil flor,
expõe-se a um corte,
abre ferida,
espinho de rubra cor.
Talvez as lágrimas
superem a dor sentida.
Quem sabe, às mágoas,
perdoe o amor.





ÚLTIMO ATO

Pelos flancos
direito e esquerdo,
foi encurralado
à sombra do muro da prisão.
Teve apenas
o longo pescoço
destacado,
com o resto do corpo
pendurado
na árvore do pátio
da prisão.
Sua mão
mal tocava na vida.
Os seus pés
não tocavam o chão.
Não sabia
se era inocente.
Se culpado,
mais uma condenação.
Talvez fosse
um ato ensaiado
de um ator
em sua última
encenação.





O MURO

Os tijolos
a amostra,
onde havia uma pintura.
Colorida criatura
que ainda hoje, separa
a minha casa
da sua.
Pelas frestas
se repara
que os anos se passaram.
Nos tijolos que restaram,
já não tem a mesma altura.
Esquisita estrutura
que espia o telhado.
No quintal abandonado
mantém a mesma postura.
Eis o muro,
que mistura
o concreto ao abstrato.





O CULTIVO

Não cultive flores
no jardim alheio.
De braços abertos,
muitos já morreram.
E quem deixou de desejar?

As mudas transplantadas com carinho
na poeira do caminho,
sem ninguém para regar,
murcharam entre o trânsito escasso,
retrato de uma luta desigual,
enquanto o bem e o mal
não param de sorrir.

As queixas que não consigo ouvir,
intensificam-se
na distante e sedutora noite.
Nos barcos, os braços lutam contra o vento.
Em cada cabeça, o pensamento:
Será que amanhã irei voltar?

Então desponta o sol por trás do mar.
Bem-vindo ao novo dia, diz o sol.
Não sei se de tristeza ou de alegria,
se a dura realidade ou se o sonho.
Estou nascendo pra testemunhar,
que a vida é a razão deste planeta.
Só peço ao mundo que nunca esqueça,
está em suas mãos, basta cuidar.

A lâmina que corta sem parar,
pra separar as flores e as pessoas,
se torna cega,
tão cega
quanto quem jamais enxerga
que as flores cultivadas no jardim
são para um fim.
No fim,
um campo aberto pra pisar.

As mãos já começaram a cavar
a mesma terra que um dia há de comê-las,
não há como detê-las.
Não sou suporte para levantar bandeira,
falar asneira
é outra forma de falar.

Talvez seja melhor eu me calar.
Talvez, não é certeza,
e com certeza ainda tenho o que dizer.
O homem não escolhe seu poder.
Mas pode escolher o que plantar?
Alguns hão de voltar,
outros jamais iremos esquecer.
De volta, ainda sozinho,
diante das mesmas flores no jardim de seu [vizinho,
notou que mesmo de braços abertos
não há ninguém por perto
para abraçar.

Correr do mundo
e no fundo
se entregar a timidez,
e matar de uma vez,
aquele que talvez
possa sonhar.

Cultive cada um, o seu jardim.
Quem sabe com as flores
possam enfim,
unidos pelas cores,
o mundo, replantar.





VIOLAÇÃO

Entre calos,
o dia, rápido amanhece;
quando empalidece,
ainda estamos lá
com as mãos fechadas.

Nada nos aborrece
dentro do cercado,
mesmo estando cansados
de tanto plantar,
e não termos o poder
de poder colher.

Somos recolhidos
em um caminhão.
Ao olharmos o chão,
vemos então passar
veloz como o vento,
toda a nossa vida.

O pior do mundo
é não ter medida.
Poucos têm de tudo.
Tantos sem comida.





ENCAIXE

O seu corpo
delimita minha vida.
Suas curvas
desinibem minha alma.
Sou um anjo
que percorre o inferno.
Sou eterno
num desejo que se acaba.

Em sua luva
se encaixam os meus dedos.
Nosso medo
talvez seja nossa falha.
Sinto a fúria transformada em gemidos.
Nos seus gritos,
um demônio que se acalma.

Um espinho
encravado em uma flor.
Nossa dor
aliviada em prazer.
Eu, você,
duas formas de se ver
o amor.





SEGUIDORES

Talvez a multidão me siga
em silêncio,
ou simplesmente me apedreje
em algazarra.
Um passo firme
nessa antiga estrada,
pode ser a minha glória.
Um passo em falso,
como conta a história,
talvez seja o meu fim.
Quem sabe, eu serei levado a sério,
ou enfim,
farão com que eu seja uma piada.
A minha cara
talvez seja engraçada,
mas minhas dúvidas
são como flores murchas
que permanecem no jardim.





A DAMA EM CHAMAS

Soberba dama,
que triste, clama,
que arde em chamas,
que me faz amar.

Vou adorar
morrer em braços quentes,
dama de alma ardente,
não quero me afastar.

Empalideço
tal qual a própria lua
que incendeia a rua
em meio a solidão.

Um coração
que minha mão apalpa,
e queima como brasa
por dentro do roupão.

Dama,
em chamas amanhece,
da noite enfim esquece
e continua a me queimar.





ILHADO

Numa ilha deserta,
em minhas mãos um livro.
Não sei como houvera
de estar ali comigo.

À sombra de uma palmeira,
começo a folhear.
Sentado na areia,
eu leio devagar.

Um poema me intriga,
talvez por minha situação.
O ronco na barriga,
sem ter um simples pão .

Eis que o poeta diz:
“Aqui neste lugar
estou muito feliz,
este é o meu lar.

Quando amanhece o dia,
café a esquentar,
tem queijo na vasilha,
tem pão pra se cortar.
No almoço, feijão verde,
uma bela melancia,
depois, sono na rede
e uma casa vazia.

À tarde adiantada,
como cuzcuz com leite,
carne-de-sol assada,
de volta para a rede.

Durante a noite fria,
debaixo do lençol,
uma doce companhia
que esquenta como o sol”

Eu fico indignado
com essa diferença.
Na mão, livro fechado.
Na cabeça, impaciência.

Não acho que é certo.
Que poeta cruel,
enquanto está no céu,
estou nesse inferno.





AFLIÇÃO

Não faço emenda
em um verso errado.
Não quero paga
pelo poema.
Não vejo cores
em seu jardim ceifado,
com suas flores de encomenda.
Aceno a mão
para um adeus negado.
Doce ilusão,
querer que me entenda.
Extensa ponte.
Você do outro lado.
Talvez não me encontre
e se arrependa.
A sua dor
será por ter pulado,
por um amor
que sempre foi
uma lenda.





ENTRE O BEM E O MAL

O bem que me quer.
O mal que me perturba.
Entre o inferno e o céu,
a fé.
Sob as tábuas de Iavé,
a dúvida.
Pelas ruas,
sem saber quem é.
Entre linhas e gráficos,
a curva.
Sob a claridade do sol,
a sombra,
como à noite,
em face da lua.
O mal que me quer.
O bem que me culpa.





OBSERVO À MINHA VOLTA

O poeta passeia pelas ruas
numa velha cidade
que assombra,
por debaixo das árvores
que ele sonha
ter um dia plantado.

O poeta observa calado,
em cada face
que leva seu mistério,
uma expressão de loucura, de remorso,
de sofrimento e de tédio.

O poeta é apenas um anônimo,
que sentado
nos degraus de um sobrado,
é apenas um homem assombrado
com os dias de hoje.

O poeta cumprimenta as pessoas
que transitam numa pressa corriqueira
e assim descem a vida numa ladeira
de tempo perdido.

O poeta percebe o colorido
de um mundo rabiscado em preto e branco,
onde as dores
são feitas de pranto
e os amores
são flores sem jardim.

O poeta assim
desaparece,
um alguém que dobra a mesma esquina.
Simplesmente o assimétrico lhe fascina.
Todo fim é apenas o reflexo,
no espelho, de um começo .





O MISTO

Aponta para mim,
na distância sem fim,
a poeira no caminho.
-Lá vem Raimundinho,
que enfrenta sozinho
o chão dessa estrada.

Pela madrugada,
a lua ajudava o velho farol.
O misto seguia
e me espremia
dentro do lençol.

Quando amanhecia,
até parecia
que o mato era feito
d’aquela poeira.

A estrada, uma esteira,
que às vezes, estreita,
espremia o misto.

Na chapada, o risco.
Diante do abismo,
meu peito apertava.
Quando é inverno,
dizia um velho,
o mesmo inferno,
de cara mudada.

O misto atolava,
eu me divertia.
Tudo parecia
uma grande aventura.

Da minha estatura,
eu observava
a estranha figura
no meio da estrada.
Então eu pensava:
Eis a criatura
que sempre me leva
de volta pra casa.





SEU FUTURO

Seria eterno
em sua má conduta,
em sua intensa luta.
Seu mundo
seria um sorriso discreto,
disfarçado de preconceito.
Seria o pior dos homens,
ou poderia ser o eleito
e tornar-se uma lenda.
Sem saber
faria parte de um poema
que não citaria seu nome
em nenhum verso,
somente seu universo
de atitudes e maquiavelismo.
Seria bem lembrado
pelos seus maus feitos,
ou pelos seus estreitos laços
com a humanidade.





AMOR URGENTE

Qual flor
que desabrocha no inverno,
amor eterno,
reflete nas retinas,
um brilho sedutor.

À noite,
teu perfume,
como de costume,
permanece junto a mim.

A intensa cor
que vejo no jardim
transborda em teus lábios,
no batom,
num belo tom,
vermelho carmim.

É mágica
tua imagem no espelho.
Reflete por inteiro
e sem pudor,
teu corpo
que deixou
as roupas que a cobriam moralmente,
caírem lentamente,
tal qual as pétalas
d’aquela mesma flor,
tornando assim,
urgente o nosso amor.





AOS OLHOS DA FOME

Ontem,
a fome fitou-me com seus olhos esbugalhados,
através de uma criança.
Pedia-me que eu a saciasse.
O que eu poderia fazer,
se ela estava em todos os lugares?
Aos olhos da fome
sentia-me culpado.
Achava-me tão inocente
que não percebia que estava enganado.
A fome fala todas as línguas,
se expressa através das retinas,
não manda recado,
não pede perdão.
A fome é uma guerra vazia,
um monte de vítimas,
nenhuma explosão.
A fome,
em seu eterno silêncio,
nos fere por dentro
se ousarmos fitá-la.
Diante de nossa frieza,
a fome é prosaica,
se torna banal.
Diante de tanta fartura
a fome é loucura,
é irracional.





CONFESSO

Tocar teu rosto
e sentir a tua falta,
é engraçado;
já que estás aqui, ao lado.

Meu corpo sente
a aflição de tua alma,
e minha alma
o arfar do corpo ardente.

O teu sorriso
tem pureza e malícia.
Doce magia,
quando eu a vejo sorrir.

Tenho uma promessa a cumprir
em minha vida,
viver somente para ti,
minha querida.

Nas poucas horas
que estamos separados,
com outras atividades,
eu te confesso, sinto saudades.
Por mais que o tempo
enfraqueça o coração,
desde o primeiro momento
é intensa essa paixão.





PERDIÇÃO

Eu abro a velha porta
de uma noite perdida.
Urino em uma bacia
no chão de terra batida.
Deito-me em frios braços.
Ainda sinto o mormaço
da terra mal aguada.
De manhã volto pra casa,
ainda há cheiro de amor
no suor de uma ressaca
causado pelo calor.
Grudada em minha roupa
está a minha perdição.
Numa noite meio louca
depredei meu coração.





NÃO ABRO MÃO

Não me peça
para ir a guerra
e perder em um só dia
o que a vida me daria
para viver
uma eternidade.
Não é essa,
a minha guerra fria.
Não abro mão
de minha liberdade.
Quem diria
que na minha idade
eu prezasse tanto a vida,
que na certa
morreria de saudade.





ILUSÃO II

Frases soltas,
onde elas estão?
Procuro na resposta
uma razão.
Sem dúvida,
com certeza eu preciso pensar mais.
Além do mais,
posso assim,
encontrar parte de mim
que mais parece ilusão.





MUNDO PARALELO

Minha mão estendida a pedir esmola.
Seu filho na escola,
à espera de um mundo mais humano.
As nossas chances são poucas.
As nossas vozes estão roucas.

Eu deitado sob um velho banco,
sob o efeito do álcool,
um alucinado sono de uma mísera escolha
pelo dedo indicador de um deus que me [acusa por ser racional.

Uma criança chora de fome,
enquanto os tolos momentos são festejados
[com brindes e músicas teatrais.
Para nós,
pobres animais
que labutam por toda a sua vida por um futuro melhor
e acabam como um parasita intestinal
que à procura de comida
se digladia em víceras alheias,
saúde!
A nossa plenitude
acaba no céu da boca de um herbívoro
que mastiga indefinidas vezes a nossa nova forma.

Nada é tão rude quanto o desenvolvimento [tecnológico,
que sobre a égide do pensamento humano
comercializa as imagens da miséria [planetária.
Somos internacionalmente conhecidos,
seriamos reconhecidos por nossos trapos
e nossos olhos de ressaca,
em qualquer lugar do mundo moderno.

Em rede, não tiramos mais um cochilo,
ao contrário, nos mantemos acordados.
E sob nossa vigília
estão nossos momentos de glória,
a nossa história é reprisada em rápidas cenas do cotidiano.
Talvez estejam nos assistindo agora,
enquanto muda a sua roupa
ou mesmo quando ainda está no banho.

Somos ambíguos,
planejamos uma viajem de férias à lua
e nos matamos na rua
por uma simples dose de ódio.
Quando queremos ver, acendemos as luzes,
quando não,
fechamos os olhos.

Gostamos de marcar nossas covas com [cruzes,
elas representam o nosso remorso.
Os nossos bustos são para ativar nossa [memória,
não são para aparar dejetos de pombos,
embora pareça o contrário.
Criar canário em gaiola é coisa do passado,
eles agora são empalhados.

Eu ou você
poderíamos correr em volta do planeta,
descalços, semi-nus, sem comer ou beber;
seriamos manchetes nos jornais,
e além do mais,
teríamos os nossos nomes no livro dos [recordes.

Há quem viva em função de uma causa,
e que nada,
nada mesmo, mudaria seu caráter,
a não ser a cadeira do poder.
Eu não quero ouvir dizer,
basta os que sabem que são tolos
e que sábios querem ser.

Abotoem as braguilhas,
dizem os homens de fé,
com a fé em pé de guerra.
Atrasaram meu relógio,
com a bela desculpa de que eu chegaria muito cedo.

Nossa bandeira tremula no palácio.
É alvorada!
Gritava toda a gente.
E na bandeira eu enxugava minhas [lágrimas,
descrente.

Algemam crianças em trabalhos forçados.
Aliciam suas pequenas bonecas.
Se digladiam no plenário,
como piranhas em sangue fresco.
E apesar de tudo isso,
ainda querem ridicularizar meu ópio.





MOMENTO

Nosso momento,
preso à tela do cinema,
tornou-se tema
de uma antiga canção.

Toque de mão,
beijo de boca ciumenta,
bala de menta,
somos luz na escuridão.

Nossa paixão
retratada em uma cena,
um toureiro na arena,
uma flor em sua mão.

Na multidão,
uma dama que acena,
uma pele tão morena,
uma tarde de emoção.

Na distração,
o homem perde a contenda;
numa pancada violenta,
a força vence a razão.
Não foi em vão,
o nosso amor tornou-se lenda.
Não há no mundo quem entenda
as coisas de um coração.





A ESTRADA

Em minhas mãos,
um círculo que giro.
Com o pé instigo
a aceleração.
Numa das mãos
mantenho a marcha.
Um carro passa
na contra-mão.

No negro chão,
há duas faixas,
paralelas e contínuas,
que parecem não ter fim.

Passam por mim
números, símbolos e letras,
que dizem: Obedeça,
é bom me escutar.

E de repente,
eu vejo à frente
uma curva sinuosa;
a cem quilômetros por hora,
reduzo para contornar.
Em uma reta,
ligo a seta
na intenção de ultrapassar.
A família ao meu lado:
- Tenha calma.
- Mais cuidado.
- Dá pra ir mais devagar?

Continuo a olhar
através de cada placa,
procurando escutar
essa voz que vem da estrada.

Paro um pouco pra escrever
um ou outro verso,
e descubro, sem querer,
na viagem de regresso,
o que a estrada enfim queria,
como tudo no universo,
só falar de poesia.





O ESCULÁPIO E O POETA

-Não importa quem eu sou.
Antes de falar meu nome,
não esqueça “o doutor”.
Estudei na capital,
não foi no interior.

-Eu não quero ser o tal,
sou apenas um poeta,
me orgulho de quem sou,
minha alma não se aquieta
se em casa não estou.

-Sou jovem e bem sucedido.
Salvarei seu coração
se ficar comprometido.
Controlo a emoção.
Salvo vidas, como médico.

-O poeta é mais modesto.
Só me lembro de um poema
que evitou um suicídio.
De coração não entendo,
só quando muda o sentido.


-Isso sim, não faz sentido,
ter tanta inspiração.
Se fosse um grande poeta,
demoraria na certa,
a fazer versos à mão.

-Orgulhoso ficaria,
se poetinha me chamasse.
Muito mais fez o Pessoa,
se o doutor mais estudasse,
desse fato, saberia.

-Não seja bobo, não ria.
Não tem nada de engraçado.
Sou um homem respeitado.
Muita gente rezaria
pela minha companhia.

-Disso eu não duvidaria.
Na hora da precisão,
todo louco tem razão ,
cada um com sua mania.

-Sou um homem preparado.
Por muitos sou procurado,
quase todo santo dia.
Estou sempre acompanhado
por gente que tem valia.

-Eu tenho por companhia,
o silêncio e a solidão,
ambos trazem poesia
e entregam à minha mão,
meu trabalho é muito pouco,
basta que eu seja louco
e escreva com emoção.

- Finalizemos enfim,
essa nossa discussão.
Como eu sou o doutor,
prova que tenho razão.

- Não digo que sim,
que não.
Digo com sinceridade,
como poeta
sou louco.
Loucos, sei, não têm razão.
Mas doutor é muito pouco,
pra ser dono da verdade.





SERENO

Não preciso te perder
para saber
que te amo.
Não consigo mais me ver
sem a tua companhia.
Não me engano,
e jamais te enganaria.

Meu amor por ti é pleno,
tão sereno
como mágoa perdoada.
Para mim
você é tudo,
tudo sem você
é nada.

Na moldura,
em silêncio,
você atrai o meu olhar.
Através do pensamento,
ponho a mão em sua cintura
e a tiro pra dançar.


Como é difícil aceitar
o que a vida me reserva.
Todo o tempo que há na terra,
para mim não valeria.
Mesmo que ela fosse eterna,
meu amor não caberia.





COISA DE CRIANÇA

Uma canção de ninar
que o meu pai sempre cantava,
fazia a minha mãe chorar
enquanto me balançava.
Chora de tristeza e dor.
Eu só a observava,
pois eu sentia o mesmo calor
de quando ele se deitava
e falava:
-Filho, aqui estou.
Com os olhos cheios de lágrimas,
aponto o meu coração
e digo com emoção:
-Mãe, papai nunca partiu.
Sempre esteve aqui.
Enfim, vejo ela sorrir
e se deitar junto a mim.
Um cheiro vem do jardim,
junto com um vento frio,
Então papai nos cobriu,
e nossas testas beijou.





BENTA

O que fazia
tão cedo na igreja,
no tempo, ou seja,
nas horas vazias.
Seus dedos
passam sobre o terço.
No quarto inteiro,
seu corpo jazia.
No escuro breu,
aprisionara Deus.
Por trás do muro
de um seminário,
numa foto de um calendário,
havia uma imagem
retratada e nítida.
Ela dizia:
- Não é uma santa,
sou apenas eu.





INDEFINIDO

Uma pequena erva.
Uma floresta inteira.
Uma cratera aberta.
Uma fogueira acesa.

Um galho desfolhado.
Um chão que só se pisa.
Um ser desmiolado.
Um beco sem saída.

Um leque só de penas.
Um canto de canário.
Um giro nas antenas.
Um péssimo cenário.

Uma fértil ciência.
Uma terra ferida.
Uma triste consciência.
Uma lição de vida.





RETROSPECTO

O que a vida me reserva?
O que me reserva a vida,
ainda?
Uma história sem memória,
de uma memória que finda.
Um espaço delimitado
por quem reconheceria
que não fui nada pro mundo,
pro mundo eu nada seria.
O meu futuro,
advinha?
Em nada acrescentaria.
Um retrospecto de tudo,
de tudo que eu nunca fui
e que jamais eu seria.





O CIRCO

De longe vejo a lona colorida.
Um aglomerado em frente à bilheteria.
O espetáculo ainda não começara.

Eu inquieto pelo tempo que esperava.
O meu sorriso ilumina
mais que as luzes da entrada.

As tábuas da velha arquibancada
movimentam-se pelos passos que me levam
a altura desejada.

O som explode em meus ouvidos,
eu me assusto de início
e de repente a voz do circo se acalma.

Junto com todos bato palma
para um rosto que parece conhecido,
com pintura e um engraçado nariz
o palhaço me faz feliz.

Na distância, olho da minha janela,
lá no fim da mesma rua,
a sombra que faz o circo
pela luz que vem da lua.

Apago a vela
e a vida continua.





INFÂNCIA

Infância.
Uma criança perdida à distância
aproxima-se de si, adulto.
Seus pequenos passos
que vêm do passado,
chegam enfim ao futuro.
Largas passadas de um homem sadio
que se apressa em busca de um sonho.
Mas sua vida se torna um vazio,
seus passos um desafio.
O tempo leva-o para perto de um velho
que no espelho é um estranho.

Infância,
uma lembrança que está no passado.
Um ancião que mantem-se acordado
para sentir-se ainda criança.
Sobrepujando o seu corpo arqueado
há uma nova esperança.
Mantem no colo um antigo retrato,
retrato da sua infância.





FELICITAÇÃO

Espero,
não por esperar,
mas por desejar
que tudo dê certo.
É certo,
não por minha certeza,
mas por meu desejo
que se realize.
Desejo
que não é prazer,
é apenas o querer,
é minha vontade.
Vontade
que dá e não passa.
Passado e presente
são vida.
Futuro,
só passos incertos.





O FEITIÇO

Foram rios de pensamentos
que inundaram minha vida.
Fortes ventos,
minha cauda em movimento,
um girino sem saída.

Foram anos de silêncio
como batráquio,
e você me despertou
com seu beijo de princesa,
meu amor.

Com ciúme da beleza,
lança o feitiço, a bruxa.
Prendendo o príncipe no rio
causa à princesa, um vazio.
Que estória mais esdrúxula.





NÃO ME LIMITO

Não me limito
ao pão de cada dia,
ao revés de uma moeda podre,
à extrema unção
do padre na igreja,
à sobremesa
dada ao gato sob a mesa,
à tristeza
nos olhos do menino pobre
que pede ao nobre
a bebida de seu pai alcoólatra.
Não me limito
a aceitar o preconceito
como remédio
à minha falta de zelo.
Não quero ser feito
e nem fazê-lo,
apenas me aborreço
com a hipocrisia.
Não me limito
à morrer de alegria
quando estou à frente
de um multimilionário.
Não me limito
aos dias riscados no calendário ,
às férias que terei no deserto,
às fotografias
em cima de um Dromedário,
à rosa preferida,
a D’ália,
mãe e rosa,
rosa mãe
e cheiro.
Não me limito
ao que compra o dinheiro.
O meu orgulho,
herança de meus pais.
O meu limite é mais
que simples gesto.
É indigesto
o meu depoimento.
Não me alimento
de rezas e defuntos.
Sou para muitos
apenas ilusão
e sem razão.
Escova os seus dentes
que não sorriem na sua artificialidade,
assim o meu avô
gravou na sua idade
um centenário de recordação.
Não me limito
a ter a pretensão
de iluminar a lua
com uma lanterna
e não almejo
a ter uma vida eterna
na altura de minha volatilidade.
Não manuseio cópias de mim mesmo
e não rateio
as contas dos aposentados.
Não me limito
ao choro dos desempregados
e não prometo
cumprir a minha jura
quando jurei com os dedos cruzados.
Não me limito
a colocar em dia
meus dias atrasados.
Não me limito
ao pó debaixo dos seus pés
ao que invés
de mim será você.
Não me limito
a individualidade existencial,
ao bem,
ao mal,
posto que sou bem mais que eu.





SAÚDE

Enquanto eu,
sozinho,
selo meu destino
e apago na areia,
meu nome;
a extensa mão da natureza
pega um antigo cálice
sobre a mesa
e brinda com sangue
à minha saúde.





MARATONA

Escuta o coração em disparada
por ter os pés
trilhando as ruas da cidade.
Alguém acena na praça.
Seus passos em velocidade.
Seu desejo de vencer.
Não pode ver direito quem a chama,
só vê a chama
que a chama pra correr.
Olha pra trás
para ver quem lhe acompanha.
Corta a faixa
com o peito de quem ama
a maratona,
uma terra conquistada.





ADEUS

Eu me distraí um pouco,
entre um gole e outro.
Revi a minha fatídica vida
desde a comemorada chegada
até a suposta partida
no dia em que morri.
As velas
queimavam minhas mãos.
No silêncio,
a ladainha de velhas senhoras
guiava-me
pelo mundo dos mortos.
Adormeci
em meu estranho sarcófago.
Uma múmia desdentada,
porém lúcida.
Eu não revelo lágrimas
pelo que choro.
Enquanto um velho galho,
seca e padece,
um novo,
na árvore, floresce.





AGORAFOBIA

Enquanto coara,
minha roupa, sob o sol,
sob o lençol,
empalidece minha cara.
Tornam-se raras,
minhas idas ao quintal.
Não há pegadas,
apagaram-nas a chuva.
Não saio à rua,
nela me persegue o mal.
A minha reclusão
à sombra do telhado,
deixou-me frágil
como a roupa que se rasga.
Todas as lágrimas derramadas,
foram poucas.
todas as outras,
foram falsas.





RECUPERAÇÃO

Acompanhei todos os seus passos,
minha criança.
Quando em meus braços,
renascia a esperança
de vê-lo livre para criar jogos e danças
e superar tantos limites.
Teu olhar triste
a resmungar indecifráveis palavras,
gemidos
de um corpo que não sente dor.
Aquela expressão estática,
que de repente,
entre risos,
desatava o nó do silêncio,
hoje, é apenas pensamento
de uma mente compenetrada.
Tua razão
superou as minhas lágrimas,
e me faz reconhecer,
que são hoje derramadas
pela alegria
de vê-lo vencer.





SOLITUDE

Quantas vezes
fiquei só,
com as rugas da idade.
Quantas noites
dormi tarde
sob as sombras
de uma lua.
Quantos passos
tem a rua
que morei.
Quantas lágrimas
chorei.
Tantas letras
sei de cor;
quantas delas
eu cantei
pelas vezes
que eu fiquei
só.





FÂMULO

Atravessada
ainda está, a palavra,
tal qual espinha
que rasga a minha
garganta.
Posto a resposta
só ser esperança
de um indivíduo
modesto e pacato.
São os meus lábios
dois reprimidos falantes
que educados
fizeram silêncio.
Por ter respeito
e não por ter medo,
só emitiram um sim de desprezo,
naqueles tristes instantes.





ESCOLHA

Soprei o pó
de minha própria cinza,
pus a fé divina
sob a razão.
Do meu coração,
foi a alma extinta.
Minha parte humana
é larva no chão.

Uma dor antiga
que era visceral.
Um imenso mal
que ofusca a retina.
Uma doença crônica
que enfim termina
num hálito
de uma boca sepulcral.

Pus o bem e o mal
sob minha ética.
Minha forma estética
é de um ser real.
Minha escolha é lúcida.
Na mão da ciência,
seguem meus princípios,
meu valor moral.





POEMA AMARGO

O mundo me intriga.
O que significa
essa luz que brilha
lá no céu,
e esse carrossel,
a vida,
que gira
e me deixa enjoado?

Como será que vejo a vida,
sendo um poeta calejado
por esse clima,
tal comida,
temperado
pelo sol
que frita
meus miolos
como o peixe que eu tiro
do anzol?

O arrebol
é um louco desolado
que ateia fogo no paiol
molhado.
Eu observo a chuva
que respinga do telhado
e vejo na miséria
o meu pecado,
e indago
o que significa
esse mundo que me intriga,
que me deixa
escrever as minhas queixas
num poema tão amargo?





OS MACACOS

Tapa os olhos
para que eu não possa ver.
Os ouvidos
para nada eu ouvir.
Tapa a boca
para eu não poder falar.
O meu coração,
tapo para não
sentir.
São macacos que retratam minha dor.
Sou o quarto,
o alvejado por amor.
Sou macaco em extinção,
e em cada mão
tapo o que sou.





TRINCHEIRA II

A noite
foi desumanamente quente.
Como dormir
sob os auspícios dessa gente?
Meu sono,
um cochilo tão somente.
Meus sonhos,
pesadelos que não surpreendem mais.
Numa lápide,
leio os nomes de meus pais.
O coveiro
observa-me em silêncio.
Desperto,
em meio a um calor intenso,
passo a mão no rosto,
percebo que pareço com os demais;
um soldado,
que acima de seu posto,
sente o gosto
de uma remota paz.





NA PONTA DOS DEDOS

Toda história
é feita da memória
de um passado.
Cada fato,
em conjunto ou isolado,
é o destino
pontilhando cada hora,
tudo aquilo
que outrora
foi acaso.





JUIZ OU RÉU

Não me atire a primeira pedra,
ela pode lhe ferir
ao atingir
a sua consciência.
Não me deve obediência,
paciência,
mas como semelhante
eu mereço o seu respeito.
Sob o mesmo céu,
juiz ou réu,
é só mais um papel a se cumprir.
É o mesmo ar
que nós devemos respirar.
Entre o bem e o mal,
somos livres para escolher.
Não julgo você
para não me julgar.
Sobre nossos túmulos,
rosas secarão
e jamais
entre nós, mortais,
alguém saberá
quem tinha razão.





SOBRE O MURO

Fui sangue derramado na caneta,
numa letra
com fundo musical.
Fui notícia
estampada na primeira
página de um jornal.
Fui um pouco,
do pouco o necessário.
O bastante
para não saber quem sou.
Sou um louco
sobre o muro do asilo
indeciso
sem saber se fico
ou vou.





CANOA

Defini meu vazio
sobre a canoa.
Eu à toa,
ela solitária na praia.
Somos parte
de uma paisagem natural.
Uma arte
que é feita de sol,
de água e de sal.
Da canoa observo a areia.
Já cansado de tanto esperar
eu mergulho no mar.
A canoa continua alheia,
sem ninguém
para levar.





A TERRA

Não vejo
vida além de mim,
em nenhum outro planeta.
Eu continuo só
num universo cheio de estrelas.
O meu retrato diz
que sou feliz
com um mundo assim.
Procuro uma razão
para essa solidão
que há em minha volta.
Procuro enfim
ainda ser feliz
sem saber qual a raiz
que me sustenta.





SOB AS ÁRVORES

O sol espia
por entre as árvores
e assim invade
a sombra em vão;
pois cada folha
tem seu próprio verde
como as pessoas
que sob as árvores passearam,
têm suas verdades,
e nunca notaram
qual a razão.
A luz transcende por entre caules.
O vento sopra na solidão,
e diz:- Quem sabe,
tantos detalhes
de uma bela paisagem,
possam tocar
algum coração.





QUEDA DÁGUA

Como as águas
pelas pedras
a caminho do seu fim,
são meus olhos no jardim
à procura de uma flor.
Sou o único colibri
que no cheiro e na cor
encontra seu bem querer,
em sua pele o prazer,
em seus olhos
o amor.





ENTRE O CÉU E A TERRA

Não me venha vilipendiar o nome
qual abutre que minha carne come
e expõe as minhas víceras.
Quando exposto eu me torno frágil,
quando frágil, torno-me fecundo.
O meu ódio se torna volátil.
A minha criação, dantesca.
Minha alma, da porta do céu
desce ao inferno profundo.
Os meus olhos são ferro em brasa,
pelas costas eu vejo você.
Em meu peito eu conservo a mágoa,
na vingança o prazer.
Não me venha pedir pra esquecer
uma queixa que agora é eterna;
nunca houve inimigo maior
entre o céu e a terra.





CARIDADE

Vesti ao avesso,
meu calção listrado.
Esquerdo ou direito?
Sapatos trocados.
Alguém ao meu lado
me dá uma mão,
destroca os sapatos,
ajeita o calção.
Num gesto, num ato,
numa lágrima contida,
uma nobre lição,
um enorme passo
nos degraus da vida.





MEU XARÁ

Amigo,
poderia chamar-se José, Carlos, Joaquim,
mas não,
seu nome é João.
A vida é assim,
nos traz dores-de-cabeça.
As dores-de-cabeça
não deviam nos levar os amigos,
sem motivo,
sem razão.
Nos meus olhos há tristeza,
lágrimas, não.
O poeta não chora diante da morte,
apesar do pesar.
O poeta só sabe chorar
por amor, por amar.
O seu nome não será esquecido,
será acrescido
do verbo lembrar.
E se alguém, sem saber a razão,
perguntar:
-De quem fala?
Eu respondo na lata:
-Do amigo João.





ATEU

Não me sinto contrito.
Os meus atos
não são benevolência.
Meu sarcasmo
não é revide a insultos.
Não há cicatrizes
em meus pulsos.
A falange
no alto observa.
Não vê céu,
não vê terra,
vê o mundo
na glória do absurdo.





MITOLÓGICO

O céu fecunda a terra,
nasce o tempo
e com sua queda,
um titã sustenta o mundo.

Vem o amor e a beleza
das espumas do oceano.

Aquele que é feio e manco,
apaixona-se pela deusa.

A melhor das divindades
aos lares traz alegria.

A deusa da sabedoria
é a maior dentre as cidades.

Deixa o mundo passar fome.
Sua filha traz consigo a primavera.

Vive em função da guerra.
Além da bela, ama o sangue.

Do alto do monte, governa.
Sua esposa é um incesto.
Acorrentado a um rochedo,
o seu fígado se regenera.

Pai e filho voam em fuga
com suas asas de cera.
Seus olhos o sol espelha
e o moço perde altura.

Sua flecha incendeia
o amor que chega inteiro.
Cai aos pés de uma princesa.
Feitiço no feiticeiro.

Ao monte, declaram guerra.
Um semi-deus os combate.

Com um só olho na testa,
forjam o raio que ao céu parte.

Um depravado persegue
as jovens que habitam as águas.
Aos pastores ele protege,
com a sua forma de cabra.

Somos nove, pela arte.
Somos filhas da memória.

É mortal apenas parte.
Da embriaguez, faz história.

Em suas mãos, um tridente.
Pelos mares tem um caso.
Os cabelos de serpente,
em seus braços.

Seu reflexo nas águas
consome a sua vida.

Ela é divindade da caça.
O seu gêmeo, da harmonia.

Sua astúcia e trapaça
fizeram-no, dos deuses, mensageiro.

Com a ajuda da amada
resgata a pele de um supercarneiro.

Perseguido pelos mares
volta para sua amada.

As botas o suspende pelos ares
enquanto uma cabeça é decepada.


O príncipe penetra o labirinto
e mata o homem que parece touro.

Já outro tem de homem, o coração
e de cavalo tem o corpo.

O cão que guarda as portas do inferno
é pelo grande herói, derrotado.

Um outro herói é morto ao cair
de seu cavalo alado.

O músico busca a jovem delicada
das grades do inferno.
Ao dar as costas, olha para trás,
e o destino da amada, é certo.

Depois de raptada
pra região do inferno,
tornou-se de seu dono,
rainha e amada.

A pedra que empurra
sempre volta cume abaixo.

Pra não chorar à margem,
pague, da barca, o pedágio.





LOUCA

O que fez a loucura
à sua mente.
Tantos gritos
emitidos sem razão.
Ainda ferem
meus ouvidos.
Ainda magoam
o coração.

Seus gemidos
talvez chamassem a gente.
Os seus olhos
revelavam sofrimento.
E em meio ao estranho esquecimento,
uma lembrança
parecia ser urgente,
a de uma oração.




O MATEMÁTICO

Nas margens de meu caderno,
anotei,
não tenho tempo.
O meu fim estava perto.
Adiantado,
o pensamento.
Entre números,
meu silêncio.
Na política,
entusiasmo.
A platônica paixão
entre o destino e o acaso.
Eu rabisco a estupidez
pelo fim que era trágico.
Só escuto o estampido.
Morre um gênio matemático.





TERRA E LUA

É a lua
que orbita meu querer.
Sem você
sou um planeta solitário.
As estrelas
têm ciúme de seu brilho,
no sistema planetário.

Toda noite
em meu céu posso lhe ver.
De manhã
parece desaparecer,
mas ainda está lá.
Dessa forma
não consigo esquecer
a beleza do luar.

Muitas vezes,
você quer se aproximar.
Mas o mar
nessas horas se revolta.
Nossas vidas
são seladas pelas voltas
que nós dois temos que dá.
E um dia
quando a gente se unir
e esse mundo
por acaso se acabar,
Terra e Lua vão estar
no vazio do existir.





CONSELHO

Se você ainda crê,
não duvide.
Se você tem dúvida,
é melhor acreditar.
Se não acredita mais,
continue a duvidar.
Pode ser na fé.
Pode ser no amor.
Pode ser na dor
em seu coração.
Na realidade
ou na ilusão.
Pode ser no ser.
No não existir.
Pode ser em mim.
Pode ser em si.
Pode ser no além.
Pode ser aqui.
Pode até não ser,
detesto dizer,
este é o fim.





ALÉM

Abri meus olhos,
vi
um rosto especial.
Em um jardim real,
uma bela flor-de-lis.
Mas ver além,
eu quis.
E muito além do mar,
havia um lugar
no qual
nunca pisei.
A casa que morei,
a sua porta
abri.
O quarto ia além
do que eu podia ver.
Além de mim,
você.
Além de nós,
ninguém.





CUSTÓDIA

Ainda há tempo
para o perdão
ao meu silêncio.
Posto que és
apenas uma doce criança.
Mesmo que eu seja
tua mais triste lembrança,
sempre estarei por perto.
Contaste as horas
para ver o meu regresso.
Eu vigiava
o teu rosto na janela,
enquanto tinha a minha vista embaçada
pelas lágrimas.
Não sei se escutas
os meus passos na calçada
quando a rua está deserta.
Não sei na certa,
se ainda existe nós.
Talvez eu perca a tua infância,
mas jamais a esperança
de ouvir a tua voz
chamar-me pai.


Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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