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Quadrilátero
João Felinto Neto

Resumo:
Não é questão de vangloriar talento, mas de destacar a inegável disposição de um poeta em absorver-se no mundo dos versos e transporta-lo ao de cada leitor através de linhas tracejadas entre quatro paredes em ângulos retos deste Quadrilátero. O poeta norte-riograndense, João Felinto Neto, desvencilha-se mais uma vez da subserviência ao esnobismo e volta-se ao prosaico em versos ecléticos que redundam à páginas neste Quadrilátero. Quadrilátero enaltece os versos como a forma geométrica, os cantos. São poemas despojados de limítrofes, apesar dos ângulos que definem o Quadrilátero. Ao buscar a verdade, o poeta submerge em infinitas divagações e obtém sucesso nas palavras certas que caberiam como um encaixe de tábuas a formarem um belo caixão. Quadrilátero nos faz entender que poesia é um misto de razão e loucura, de amor e ódio, de tristeza e alegria, de belo e feio, é uma dualidade oposta, um paradoxo de si mesma, uma antítese, um eterno vão por onde passam as almas. As páginas de Quadrilátero são como becos estreitos dos quais dá para observar a imensidão de um edifício, o mar à distância, uma praça, e ao mesmo tempo, os mendigos, os bêbados que neles se encontram. Encante-se com os versos espalhados pelas páginas como folhas que despencam dessa enorme árvore que é a poesia; caminhando com seus olhos por esse mundo quadrado que é o livro de título Quadrilátero.

QUADRILÁTERO

As cartas
são entregues em silêncio.
A mesa
com seus lados desiguais.
Pela janela,
o dia sopra o vento.
A sala
com seus cantos casuais.
E pela porta
vê-se a mesma forma
na cama
e no espelho emoldurado.
Na capa
de um livro folheado,
lê-se
quadrilátero.





TERRA BATIDA

Os meus ombros,
sob minha sede.
O meu riso,
em cima da parede.
Não há nomes, falas e porvir.
Não há nada
além do meu sentir.
Meus segredos,
dentro de um baú.
Os meus braços abertos,
Norte e Sul.
São muitas passadas.
São léguas seladas
sobre ti.
Não procuro mais você aqui.
Um pote de lama.
Esqueleto sobre a cama.
Sob ela,
um prato de costela
pra servir.
Não se come à mesa.
Sobre o chão
a velha esteira.
Sem razão,
eu canto pra ouvir.
O meu canto é pra ferir
vocês.
Uma rede na estaca.
Uma cabra no quintal.
Conto estrelas mais uma vez.
Temporal
de lágrimas,
de varas,
de pó,
de porém.





DUAS METADES

Não sou todo alegria,
mas sou sempre pensamento.
Nem sempre venho de dentro,
de fora nunca viria.

Mas de onde então viria
o que vem me completar.
Talvez venha do lugar
de onde vem a poesia.

Não sou eu apenas dia,
nem só noites eu seria,
mesmo sendo um só querer.

Além de mim eu veria:
Uma que eu mesmo seria;
outra que eu não posso ser.





GORJEIO

Pousa ao acaso
ou talvez escolha.
Movimenta o galho
à toa.
Canta com o vento
a soprar-lhe as penas,
um breve momento,
apenas.
Um eterno silêncio,
faz a natureza.
Se entrega por inteiro.
Agradece ao tempo,
estático,
com um poético
gorjeio.
Abre as suas asas
numa despedida.
Lança-se na vida
para um outro galho.





ABSOLUTO

Minha face
parece estarrecida
com o que vejo.
Fecho
os olhos que lacrimejam
minha vida.
Tantos becos,
portas, janelas e venezianas
sem saída.
Planejo dias
em que realizo sonhos.
Não me deixo morrer
sem correr atrás,
nunca me deixo.
Se você não reage,
reajo pelos demais.
Ser prisioneiro
é o que mais fere.
E o que fere
se torna absoluto
e nos priva
da realidade.





PANO DE FUNDO

Acordei entre tanto barulho,
era o mundo
que me despertava.
Minha vida
é meu pano de fundo.
Meus brinquedos,
uma imagem gravada.

Levantei-me
com o claro do dia.
Caminhões e tratores na estante.
Miniaturas de minha alegria,
que aos meus olhos
se tornam gigantes.

Rabisquei
minhas primeiras letras
nas revistas que meu pai me dava.
Quantas vezes olhei as estrelas,
de pé
na sólida calçada.

Eu me calo
diante da vida.
comovida
uma mão me abençoa.
Não pra ver
o seu filho à toa,
mas por vê-lo
no mundo.

Não sou símbolo,
nem bandeira hasteada.
Sou menino
sem farda, nem glória.
Minha história,
a única arma.
Minha honra,
a minha memória.





HOSTIL

Meus dedos tocarem,
é descrença.
Não acredito em milagres,
sem ofensa.
Não penso em demasia,
apenas deliro
em cada poema.
Não desanimo entre verbos,
nem entre versos de amor.
Não me jogue tão rápido,
mesmo que queira.
Pois não estou à beira
de um precipício.
Talvez não tenha motivo
para envelhecer.
Apodreço
sobre meu próprio cadáver.
E mesmo assim
renego
o seu eterno céu.





CANÇÃO DE ADEUS

Todos os teus beijos
eram meus,
e só por mim
tu derramaste tantas lágrimas.
Toda a tua saudade
era por minha falta.
Assim todo meu mundo
era teu.
E o teu silêncio foi maior,
foi bem maior que a solidão.
Enquanto eu mudava a voz,
tu mudavas o coração.
E sobre nós
nada mais restou
além dessa triste canção
de adeus.





FRUTO DE UM SONHO

Achava que o mundo em que vivo
era só sonhos;
que cada um tinha um amigo;
que ninguém passava fome;
que era respeitado o sobrenome
independente da cor;
que todo jardim
tinha flor
e que a vida não tinha fim;
que o homem sentia dor
diante dos atos seus;
que adeus,
era apenas espere por mim.

Mas vi a vida chorar
e descobri que para crer
era preciso enxergar.
Enfim eu pude notar
que a vida ficava velha;
que havia fome e miséria;
que o homem fazia guerra
e destruía seu lar;
que nunca mais,
era adeus;
que o amor
era fruto de um sonho
que a mãe chamava de Deus.





O PEDIDO

- Eu vou pedir-lhe uma coisa,
disse-me, um dia, um amigo,
deixe a poesia de lado,
ela atrapalha o trabalho,
você não ganha com isso.

Eis um terrível conselho,
alguém pedir para viver
metade e não por inteiro.
Não me peça para parar de escrever,
eu preciso copiar o que vejo.

Você vive só de ganhar.
Já eu vivo só de perder.
Perco a vontade de ser
o que um dia você será.

Cada qual será mais feliz
limpando seu próprio nariz.
Poesia é para mim,
vontade de respirar.

Mesmo que eu perca os cabelos,
o emprego ou a minha esperança,
não me peça jamais para tirar,
a poesia da minha lembrança.





GÊNERO FEMININO

Uma de cada vez
a natureza fez,
na ponta das unhas,
as três:
a vida,
a mulher
e a lucidez.
A vida, a primeira das três,
ela fez para se aproveitar.
A mulher, a segunda da vez,
ela fez para se amar.
E a terceira, ela fez
para as duas saber contornar.





SENHORA

Há de ser, senhora,
minha honra.
Um homem não sonha,
sem mulher.
O pouco da força
que o acompanha,
vem de sua fé.

Há de ser, senhora,
minha dona.
Na batalha, tomba,
o homem só.
A sua fraqueza, a distância.
Um laço sem nó.

Há de ser, senhora,
minha sombra.
A história conta
o que a vida é.
Quando o sol desponta,
um homem sem sombra
não sabe quem é.





UM ENIGMA

Égide do coração,
Soma e subtração.

Temo não poder te dar
Uma única definição.

Mulher,
Um enigma, talvez.
Liberdade ou prisão?
Hoje és dúvida,
E amanhã,
Resposta ou indagação.





SENHORA DO MUNDO

Uma bela forma.
Uma compleição humana.
Dama de beijo ardente.
Mãe de eterna compaixão.
Em teus olhos, sedução.
Em teu útero, a vida.
Tua condição erguida
com a força do querer.
Não se sabe o porquê
dessa insinuante flor
que exala o amor
sobre um pobre jardim
que o homem quer por fim
o domínio e o poder.





CONFLITO

Vejo um homem
em conflito
sob os dogmas da fé.

A razão,
não duvido,
a mulher.

Quando pensa,
não a quer.
Quando a quer,
não a aceita.
Mas à força do amor,
se sujeita.

Vejo um homem
perdido
a procura de si mesmo.

Os seus passos seguir
uma ponte estreita.
O seu corpo
eu vejo cair
sob os pés da mulher que o rejeita.





ELA

Ela me leva,
me engana
e ainda me desafia.

Levou meu corpo
para a cama,
enquanto me distraia.

Deu-me o fruto do pecado,
enquanto Eva,
e compensou com redenção,
quando Maria.

Em Joana Darc
foi Vitória,
também rainha.
Já foi de todos
e só minha.

Ela é pouco e é demais.
Como Helena,
ela foi guerra.
Como Tereza,
ela foi paz.





MULHER

A beleza
muitas vezes é embaraço.
A inteligência,
de fato,
impõe medo.
A extrema humanidade
soa frágil
numa força
que mantém em segredo.

A vontade de ser mãe
é verdadeira.
A fidelidade
é mais do que respeito.
Na última hora
é sempre a primeira,
onde cada um
reclama o seu direito.

A sedução
em sua mão
vira conquista.
Dona da vida
e de todo coração.
Tem o poder de conquistar
tudo que quer.
Eis a razão
de sempre ser
mulher.





SONETO À MULHER

Não há definição que seja exata.
Não há palavra que possa dizer
o quanto a mulher é necessária
para que um homem suporte viver.

E mesmo aquele que é cego pode ver
o quanto é feliz uma mulher amada.
O homem é um colibri a perecer,
sem a mulher, que é a flor encantada.

Antes que seja tarde para rever
os erros de uma vida solitária,
deixe passar a luz do bem-querer.

Encontre uma mulher para manter
a porta do amor escancarada.
Que belo ser, uma mulher iluminada.





O ACÓLITO

Surpreendente o acólito
em sua sepultura.
Em noites obscuras,
andou por entre lápides.
Seus mestres eram padres.
O seu gibi,
a bíblia.
Não era de amigos,
neles via víboras
que seguiam Satanás.
O que diziam os pais,
para ele não valia.
Seus passos só seguiam
a cruz do redentor.
Seus laços de amor
era com gente que morria.
A sua alegria,
era na maioria,
tristeza de alguém.
Pois se sentia bem
quando Deus não atendia
ao pedido de outrem.
Um dia encontrado,
com o dobrar do sino,
seu corpo pequenino
na corda pendurado.
Talvez tenha achado
a graça do destino
e ver lá das alturas
o mundo aqui embaixo.





O MUNDO À LUZ DO DIA

O poeta senta calado
e observa ao seu lado
o que passa na TV.
O que vê?
Apenas o tédio.
E não vê nenhum remédio
para o mundo que ele vê.
O poeta
só pensa em se esconder
desse mundo imaginário,
tantas peças e cenários
na mesmice do viver.
O poeta
jamais pensou em morrer,
mas morre em seus excessos
de sonhos por tanto escrever.
O poeta tira os olhos da TV;
olha o mundo que há lá fora,
nada mudou desde outrora,
mesmo assim, quer viver.
E viver, para ele, é poesia;
é aceitar à luz do dia,
esse mundo que ele vê.





H2O

Meus pés, sob a água
que escorre pelas pedras,
se consomem me levando
em lágrimas, sangue e suor,
por eu ser predominantemente H2O.
E no mais profundo do que sou,
mergulho em mim.
Agora sou moléculas de água.
Integralizo-me à fonte,
desço do monte
e reflito a imagem da ponte
que sobre mim, estática,
sustenta as pessoas que me olham
e não me percebem.
Não sou outro.
Não sou morto.
Não me encontro só.
Sou universalmente
H2O.





O FRUTO

Observo o fruto podre;
nele ainda há vida,
uma lagarta escondida
no seu interior.
Desde quando era flor,
sempre a vida se sustenta,
no vôo do beija-flor,
na ave que se alimenta.
O fruto cai, esquecido,
até que uma mão o pega,
um olho o observa
e lembra a vida que o cercou.





OS PÁSSAROS

Os pássaros,
inquietos entre as telas do viveiro,
deixam-me indignado.
Mas o que tenho eu
com os pássaros presos.
Que estejam presos ou soltos,
são apenas pássaros.
Mas os pássaros estão vivos
e querem voar,
e seu vôo é sua liberdade,
e sua liberdade é de meu interesse,
posto que sou
subjetivamente livre.





AFLIÇÃO II

Eu parei no tempo,
todo o tempo
do que o tempo todo
eu seria.
Eu voei nos ares
por todos os lugares
junto à ventania
e chorei saudades
pelo que não sei.
Mastiguei sorrisos
na boca doente e vazia,
e menti verdades
que eram na verdade
enormes mentiras.
Eu cuspi palavras
que se misturavam
à minha saliva.
Quem sou no momento?
Não escuto o vento.
Não importa o tempo,
eu sei que jamais
escutar-te-ei.





ESPELHO OCULAR

O olho alheio
é o pior espelho,
exigente com a forma que não vejo.
Sua imagem reflete uma opinião,
na maioria das vezes, falsa.

Não importa a imagem espelhada.
No reflexo alheio,
seja belo ou seja feio,
o modelo é uma figura embaçada.

A imagem muitas vezes invertida,
tão perfeita toma a forma desbotada.
Pois quem vê são os olhos do desejo,
um espelho que inveja
a imagem espelhada.

Mas talvez o meu espelho me engane
e eu veja uma forma irreal.
Se eu não sou o que eu vejo,
talvez seja o meu desejo
tudo aquilo que eu vejo
no espelho que é real.

Talvez o pior espelho
seja mesmo o próprio eu.
Engano-me, fascino-me e tenho medo
que tudo aquilo que vejo
seja na verdade eu.





GUERRA ILUSÓRIA

As atitudes humanas
não me surpreendem mais,
mas não sou alheio a elas.
Não sou alheio às dores desse mundo.
Não sou imundo
para só chorar por fora.
Triste história,
a que estamos escrevendo.
Gente morrendo
numa guerra ilusória.
Que as linhas sejam retas e/ou tortas,
o que importa
é o que nelas escrevemos.
Nossa mesa de acordos é quadrada.
Nossa pacificação é guerra.
Qual será o nosso céu,
se essa é a nossa terra?





NO VÃO DA PORTA

Eu não sabia
se entrava em casa ou saía
para a rua.
Minha percepção nua e crua
fazia-me sentir tal qual a porta.
Então viro as costas
para a sala.
Agora, a porta em meu lugar,
ou seja, em seu lugar,
percebe meus anseios
que no vão deixei.
Saio à rua
e pelas calçadas vagueio.
Olho as casas fechadas.
As portas resguardando os lares,
e em seus lugares
quantas pessoas ficam
por um instante
de indecisão;
por uma decisão
que mudaria suas vidas.
Não me coloco entre elas,
porque vivo só.
E ao voltar para casa
passarei pela porta
que não se importa
se eu saio ou entro.
E lá dentro
não há tradições
e nem lições,
apenas emoções ilusórias.





OCULTO

Há muito que não me percebia.
Talvez por que cresci.
No meu tempo passado,
eu não via
que meu pai, ao meu lado,
queria
que eu estivesse ali;
uma criança que acreditava
no que ele dizia.
Então meu pai
gritou, um dia:
- Filho, onde estás?
Percebendo o meu fim,
com a voz a sumir,
respondi:
- Estou aqui,
ainda dentro de mim.





DIA SANTO

É dentro dos jardins,
onde há flores pequenas,
que aprendem, serenas,
a dizer não ou sim.

É bem perto de mim
que se passam as coisas,
que se matam pessoas.
Não percebo meu fim.

Hoje é um dia
como qualquer outro.
Hoje, eu preciso ensinar alguém.

Um dia de cão.
Um dia de louco.
O que faço é pouco,
por isso faça também.

E é assim
que desarmo revólveres.
E hoje
é um dia santo.





MORCEGOS

À noite
espanto morcegos
na escuridão de meu quarto
mal iluminado.
E no dia seguinte
meus sonhos foram desfeitos.
No chão,
não há marcas de sangue,
nem vestígios de luta.
E com os olhos vermelhos
do pouco que dormi,
vejo no espelho
olheiras de uma noite de vigília.
Não tenho companhia.
Minha amante, nunca a conheci.
Talvez por isso mesmo,
os meus pesadelos sejam tão reais.
Somos animais
e não sonhamos sós.
E na escuridão
espantamos a esmo
nossos próprios morcegos
que se tornam pó
ao amanhecer.





PRETÉRITO

Ajo
como se nada houvesse,
como se tudo fosse.
E ao mesmo tempo
eu me surpreendo.
De tudo que conheço,
nada sei.
Se nada sei
de tudo que inexiste,
nada me surpreenderia mais,
se tudo houvesse
e nada fosse.





PRIMATA

O que quero com o meu grito?
Sou apenas um primata esquecido
pelo homem do futuro.
Eu dormia no escuro.
Minha fala era um grunhido.
Hoje falo até demais.
Sou um louco convencido.
Os meus gestos
eram de sobrevivência.
Os meus atos
são agora, violência.
Eu seguia os passos de meus ancestrais,
que para os meus filhos,
são ferozes animais.





OS SENTIDOS

Um mundo cheio de careta,
na escola,
na tv,
nos desenhos de caneta
que risca tudo que vê.

Um mundo cheio de barulho,
no entulho,
no bueiro,
nos velozes motoqueiros
que atropelam sem querer.

Um mundo com hálito podre,
nos esgotos,
nos açougues,
nos botecos da avenida
onde o povo vai beber.

Um mundo cheio de trombadas,
nas esquinas,
nas ruínas,
nas favelas bem armadas
que tentam sobreviver.

Esse mundo colorido,
com barulho, adormecido,
e com cheiro esquecido,
não faz sentido entender.





INDECENTE

Não sou um cavaleiro imaginário,
apenas um vassalo
que caminha.
Pela realidade,
um escravo
que tem a ilusão
que é livre ainda.
Não sou nenhum beato,
nem um cão.
Eu não uso sermão
e nem batina.
Meu rosto
é palidez,
enquanto expiro.
Meu sexo
sem estilo,
estupidez.





SOB O PESO DO CANSAÇO

Meus olhos
escondem-se sob as pálpebras.
Talvez já seja hora de dormir.
Meu sono
não esconde minhas mágoas.
Eu falo
e movimento-me sem sentir.
Tentando do meu sonho,
ressurgir,
procuro me acordar do pesadelo.
Ainda sob o peso do cansaço,
no mais vazio espaço,
eu adormeço.





LIÇÕES

I

Não comemoro datas expressivas,
odores de carnaval,
luzes de natal, fogos de fim de ano;
em tudo passo um pano
que apaga os letreiros coloridos.

Um velho homem
em um mundo enlouquecido.
Sobre os fatos que me alvejaram a vida,
nada me comove.
Não movo um único dedo
para mudar o meu medo do novo.

A minha conversa
entre versos rebuscados na memória
se tornou obsoleta
entre as mesas dos meninos que me ouviam.

Nada é mais lúdico que a diferença de idade,
desde que se respeitem mutuamente.
Eis que o velho muro
não se oculta diante da casa nova.
II

Nem todas as caldeiras
estão em brasa.
São contadas as casas com lareira,
mas todos os papais-noéis são velhos
e o livro mais lido
é bem mais antigo que nossos avós.

O velho não da ponto sem nó,
ele sempre tem algo a dizer
a mim, a você, a todos nós.

E mesmo assim,
a maneira de dizer adeus,
adeus meu rosto sem rugas,
minhas costas sem dores,
meu excesso de amores,
minha garra na luta.

Eu me despeço,
enfim despenco
numa cadeira de balanço infinita
numa vida finita,
sonho.


III

Por mais que o vento curve a vara,
ela reage,
volta ao lugar de origem.
Eis que o exemplo é louvável.
Um homem idoso
tem uma vasta sabedoria
e resistência ao tempo e aos temporais.

Exercitar meus membros,
prolongar a vida e não a velhice.
Esquisitice,
ler meu nome nos jornais.
Apesar de sua idade,
superou os seus limites.

O dedo do homem
é bem mais forte
quando aponta suas virtudes.
Uma bela atitude por poucos tomada.
Tomara que apesar do curto tempo,
eu ainda tenha tempo
de sorrir.



IV

O velho inútil
ainda pensa, ainda faz versos.
E de madrugada
em vez de está dormindo,
escrevo sem parar.

À tarde, o vento faz bater as janelas.
Os cabelos brancos não indicam fragilidade,
mas astúcia e experiência.
O mundo à minha volta,
é um velho conhecido
e não me surpreende mais.

As árvores lá fora
acompanham minha jornada,
a cada caminhada matinal.
O antigo jornal,
novinho em folha,
me dá notícias atuais.

Nas minhas mãos, a força de um gigante,
que muito antes de mim, já era eu;
o eu de agora,
o eu de hoje,
o velho eu de ontem.

V

O relógio antigo
marca as mesmas horas
que o mais moderno.
Essas sim,
são para mim passadas e repassadas,
mas são também as mesmas.

O silêncio não mudou no tempo.
As casas ainda se amontoam na rua.
A lua ainda espelha no luto da noite,
sua tarja amarela e clara.
Você ainda é a mesma,
embora sua face queira assim negar.

VI

Talvez aprendamos com os ossos enterrados sob a argila,
ossos calcinados.
Seres vertebrados que dominaram a terra
e apesar de sua imponência,
pereceram.



Minhas pegadas vão estar entre eles.
Peço que meus ossos não sejam cremados.
O que seria da arqueologia e paleontologia
sem nossos míseros ossos.

E se um cão resolve comê-los.
Subam em seus camelos,
vamos afugentá-los.
Apesar do frio que fez à noite,
o deserto está extremamente quente.
Lembre-se dos pequenos detalhes,
das entrelinhas,
das nuances.

VII

Apesar do amor
e de tanta companhia,
o poeta em sua agonia
ainda se sente só.
O que fazer para ocupar esse vazio?
Aceitar
e só.

Não procuro em demasia o que perdi.
Quando menos esperar, eu encontro.
O acaso é surpreendente,
e o resultado final
é o destino.

A espera é mais cansativa que a luta.
Não importam as armas,
o seu desejo e sua força de vontade
superam as barreiras.
Não me vejo como um lutador,
sou mais um pensador de mundo.

VIII

Os lábios se preparam para mais um beijo,
assim o sol se despede mais uma vez da lua,
o dia da noite,
e eu de você.

Olhe à sua volta,
veja quanta coisa,
tente sentir no ar que tudo transpira poesia.
Nós estamos à toa,
por isso mesmo
a nossa decisão não deve ser irrevogável.

Em cada despedida, o beija-flor se afasta
enquanto a flor se castra
do seu intenso perfume.
As andorinhas se debatem no teto da igreja,
em uma prece
para viverem em paz com os pardais.

Imaginar é mais que antever futuros,
é delirar em sonhos
a essência do mundo racional,
é perfazer no tempo
os desenhos que contornam a ilusão,
e em meio a tudo
está o poder de acreditar.

IX

Não digo que seja minha
a tarefa de ensinar.
Não faço
por uma questão de reconhecimento.
Apenas preciso elucidar meus pensamentos
e para isso
preciso de sua ajuda.



Ainda não sou lápide entre os mortos,
pois sinto dor nas costas.
Quem sabe essas tábuas
sejam grossas o suficiente para me segurar.
Cabelos e unhas permanecem a crescer,
talvez na insistência de viver.

Porque contornar o jardim
se posso pisar a grama,
mas posso machucar alguma flor.
Temeridade
é um ato explícito de bom senso.
Amor e tempo,
duas coisas que não tenho.

Temo surpreender as pessoas
por não temer a Deus e nem ao Diabo.
As pessoas, essas sim, eu temo,
elas podem ferir minha carne.
Nunca é tarde para falar de amor.
Eis o meu conselho:
Ame.

X

Não se curve
pois nenhum rei merece seu suplício.
O que os tornam diferentes
não é o poder,
o poder apenas os distanciam.

As verdades muitas vezes
não estão à vista.
Uma maneira simplista
pode ser a melhor saída para viver.
Se acaso ao mundo não entende,
deixa pra lá,
o mundo não entende você.

Em minha porta
bate um anjo desalmado
e me pede um óbolo.
O que devo fazer,
acostumar uma criança no pecado
ou não dá-la o que comer.

Uma só cruz
é o suficiente para marcar seu túmulo.
Não se preocupe com o monte de areia,
nem com a profundidade da cova.
Não haverá degraus para sair da mesma.
Não há lugar
sob o solo sagrado.
Apenas rama vai brotar
para alimentar o gado.

XI

Vi muito,
aprendi pouco.
Pois todo dia a algo novo para se aprender.
Essas lições
dadas pelo dia-a-dia,
dá-nos tristeza de dia
e alegria ao anoitecer.

Não é difícil
cuspir palavras sobre a cabeça alheia.
Mas é diferente
quando se trata de conscientizar-se de sua
[condição.
Um grão de gente
que não sabe quase nada,
perdido numa pêra que flutua no espaço,
girando
como gira nossas vidas.
Um ancião pensa.
Quando criança, brincava.
Quando adolescente, excedia-se.
Quando adulto, corria.
As lições de casa,
as lições do mundo,
as lições da vida
são lições perdidas,
são lições achadas,
são doces e amargas,
mas são lições.





ÉBRIO POR AMOR

Amo
imensuradamente.
Ela,
proibida de me ver.
Para mim,
nada parece tão ilógico.
Não luto para esquecê-la
quando estou sóbrio,
por isso tenho que beber.

Amargo a minha vida,
sem a ter.
Nos braços de outrem,
o amor é mórbido.
Não luto para esquecê-la
quando estou sóbrio,
por isso tenho que beber.

Sofrendo
ainda em pranto,
por perder.
O meu amor,
para todos tornou-se óbvio.
Não luto para esquecê-la
quando estou sóbrio,
por isso tenho que beber.

No chão
que um dia há de me comer,
em pouco tempo
serei apenas ossos.
Não luto para esquecê-la
quando estou sóbrio,
por isso tenho que beber.





CORRIDA CONTRA O TEMPO

Ah, vida!
Que corre diante de meus passos.
Por mais que eu corra,
não te alcanço.
Não queres que eu morra,
por enquanto.
Enquanto eu corro,
o que faço?

Ah, tempo!
Que corre diante dessa vida.
Apenas espera o momento
para eu perder a corrida.
Correr contra o tempo,
correr contra a vida
é perda de tempo,
é meta perdida.
Isso se chama
viver.





ENTRELAÇADO

Como o gato de Erwin
estou preso na caixa,
entre a vida e a morte,
só dependo que olhem
para mim.
Minha caixa é no fim,
esse mundo de mágica.
Sou enfim um fantasma
numa dança ritual,
entrelaçado no espaço
com uma cópia de mim.





POEMA SÓLIDO

Palavras escritas
sobre um papel em branco,
tão significativas
e misteriosamente silenciosas.
Argumentos sólidos
sobre a aquosidade da vida
na sua relação infinita
com as horas.
Poemas estóicos
em contrapartida, o lamento.
Dores no tempo,
trazidas de volta.
Concisão na escrita
de um dúbio pensamento:
descrever por dentro
o que se vê
por fora.





COISAS PERDIDAS

Abstração,
eis o significado
dos bons resultados
de seus pensamentos.
Idéias criativas
são como coisas perdidas
dentro de casa,
quando não as procuramos
elas nos iluminam
com a sua presença.
Eis o que o poeta faz,
ele se abstrai
e os versos vêm aos borbotões.
Sua esferográfica
corre apressada
procurando acompanhar a sua atuação.
Tudo aparece tão claro
que ele chega a acreditar
em inspiração.





CONVENCIONAIS

Estamos em constante sofrimento
por querermos ser
normais.
Enquanto estampamos nossos traumas,
nossas caras de dementes,
nas colunas sociais.
Há para cada um dos convidados
um pouco de tabaco
e de alcoolismo.
São belos artifícios
as drogas aprovadas e legais.
Estamos entre corpos,
florescendo,
são húmus emergentes
da miséria.
As traduções alheias
deturpam nossas mentes,
desejam nossas almas por demais.
As tradições
são seguidas friamente.
Os pais estão ausentes,
os filhos são escravos
de normas convencionais.





A VOLTA

Meu medo
é esquecer que estou de volta
e me surpreender morrendo.
Sobre a inércia da alcova,
a pálida figura
assemelha-se a mim.
Eu continuo ali,
olhando para o meu retrato
que é mais real
que eu.
E de repente
vejo entre rostos que circundam,
a me perscrutarem,
o seu,
que parece não acreditar
que estou de volta.
Mas jamais eu partiria
sem vê-la outra vez.





COBAIA

As nuvens
desmancharam-se em lágrimas
e a terra encharcada
fez meu corpo afundar.
Sob a lama,
os destroços da cabana
não me davam mais abrigo.
O sol
que surgia inibido,
torna o solo endurecido
e me prende no escuro.
Sou pisado e repisado.
O solo é escavado.
Eis que um homem
do passado
é cobaia no futuro.





NUNCA MORRE

O amor que é puro
nunca morre.
O ingênuo choro,
o rompante do sorriso
são megalitos
que sustentam a minha vida.
Outras formas de amor
são conhecidas.
Outros versos mais bonitos,
declamados.
Mas nenhuma boca
gritou tão forte:
- O amor que é puro
nunca morre.





LÚBRICO

Foi o meu peso
retirado com brandura.
Sob o vão da sepultura,
meus desejos
enterrados.

Se havia alma,
libertou-se no momento.
Entre rogos e lamentos
tive a mesma condenada.

Pelos amores
que eu tive quando em vida
(tantas roupas coloridas
espalhadas pelo chão)
meu coração
insensível e bandoleiro
pôs na mão de um barqueiro
minha alma sem perdão.





OUVIR O MUNDO

À noite
olho pela janela
a escuridão lá fora.
Minha percepção do mundo
é aquela.
Um vazio
no qual há sons estranhos;
criaturas minúsculas
que se comunicam
para se reproduzirem.
Formas bizarras,
insetos nocivos
além do silêncio profundo.
Não é tão bom assim
ouvir o mundo.





NO ALTAR

E sob estatuetas,
morta estava a borboleta.
A flor que alimentava
sua glória
murchou sobre as hóstias.
O líquido vermelho
derramado
por falta de cuidado,
manchou a toalha branca.
A borboleta tonta,
tentou assim voar,
morreu envenenada
no altar.





O SOBRADO

Mosaicos
estampados na parede
de uma antigüidade desmedida.
No teto o telhado em si confirma
que ambos devem ter a mesma idade.
Traços espalhados pelo velho sobrado
(Características de artistas
que revelam a beleza do passado).
Janelas com sacadas
onde outrora
a bela moça, hoje senhora,
retribuía à galanteios
com sorriso embaraçado.
A porta de entrada do sobrado
tinha entalhes destacados na madeira.
No abre e fecha de uma vida inteira
guardou em si história;
agora,
um patrimônio que é lembrado
por ter ficado registrado
na memória.





SOBRE ÁRVORES

Minha mão se diverte
ao acompanhar a esferográfica
que corre atrás do pensamento
em linhas horizontais,
soltando versos,
criados e relidos por meus olhos.

A composição poética,
verticalmente
vai se tornando um poema
que em sua forma
assemelha-se a uma enorme árvore
que me faz olhar pro céu
numa pretensão de alçar vôo.

Mas a realidade me arrebata
e me põe de volta ao chão.
O poema tal como a árvore
é a ilusão
de que não me encontro
só.





FOTOGRAFIAS

São árvores mortas.
Putrefação noturna.
Na água, submersos,
galhos e folhas.

Rio caudaloso.
As margens se alargaram,
alcançaram a curva.
A inundação invade os canteiros
e ainda chove o dia todo.

Uma beleza avassaladora,
nada controla a sua fúria.
Corpos de animais que bóiam.
As estacas na cerca, mal se vê.
Tudo registrado na lente de uma
[observadora.

Fotografias espalhadas nas paredes
deixam transparecer
o sentimento estampado dos olhos de quem as revelou.
Na galeria, o tema Água e sede.





FINADO

Eu,
primeiro pediria muito
e por último
não quereria nada.
Nem as flores no meu túmulo ,
nem seu luto,
nem meus olhos no escuro
ou o tumulto
em minha sala.
Eu,
primeiro pediria tudo
e por último...nada.





INSÍGNIAS

Se eu
desacato a minha própria lei,
qual de vocês
cumpriria a minha pena?
Entre emblemas
e insígnias pessoais,
quem manda mais,
manda que tema.
Corro perigo
em meio a oficiais.
Matar é vicio.
Dependente, é quem ordena.
Nossos moleques
chacinados nos quintais,
habituais
pontos-de-venda.
A minha cara
estampada nos jornais
em preto e branco,
eis a chave do problema.





SÍNDROME

O que me fez
a bela natureza?
Um erro
que me custaria caro.
Na sua perfeição
mostrou-se leiga,
na cega devoção
ao torpe acaso.

Na capa,
o mais fino acabamento.
No conteúdo,
linhas mal traçadas.
As letras
arrastadas pelo vento
como pétalas
espalhadas.

A síndrome
é um fato.
Um vencedor vencido.
Diante de uma doce ingenuidade
nada impede o meu sorriso.





BACTÉRIA

Abriga-se
nas profundezas da terra
e pacientemente
procura a superfície.
Ao sair
arrasta-se lentamente pelo chão.
Aprende a andar de quatro
e com esforço,
passo a passo, caminha.
Começa a correr
em direção a um lugar mais alto.
De lá
dá um salto
e voa em direção às nuvens,
atravessa o céu
e orbita o meu planeta azul.
À velocidade da luz,
viaja pelo universo comigo.
Um microorganismo
com o mesmo propósito:
perpetuação.





CARTAS ALHEIAS

As belas palavras são raras,
as raras palavras
são minhas.
Assim escrevo
cartas de amor alheias.
Entre flores desenhadas,
retocadas em silêncio,
escuto vozes além do pensamento.
Encontro gente calada,
outros que falam demais.
Na minha mão,
o equilíbrio.
No coração,
um sentimento de paz.
O amor viaja em letras,
carregado pelo vento.
Eu deixei o meu talento
aberto em cartas alheias.





OS ANJOS

Os anjos
estão no poder.
No céu
é bem melhor de se ver
o que há no inferno:
criança que morre de fome
sem ter tempo para crer.
Os demônios não têm nome,
se abrigam em cavernas.
Olhem os anjos,
não são donos dessa terra,
nem da vida de ninguém.
Os anjos
estão no poder.
Todos têm que obedecer
quando os anjos
dizem amém.





GIRA-SOL

Uma nuvem
que tende a enganar,
por trás, a lua apagada.
Uma flor
que fechou-se ao luar,
permanece parada,
gira em busca do sol
quando largo o lençol
a caminho da sala.
É manhã.





INTIMIDADE

O dia está amanhecendo,
enquanto nós
dormimos.

Entre as delícias do café,
sorrimos.

A cama ainda por fazer.
Tua voz, do quarto, diz querer,
estou indo.

A tarde aquece ainda mais,
lá fora o mundo se distrai,
ouvimos.

O sol se esconde pra dizer
que a lua pode aparecer,
enquanto nos tornamos
íntimos.





EXAGERO

Alargaria a rua
para a tua
passagem.
Teu corpo refletido
pela lua.
A tua sombra nua,
que miragem.
Tão doce criatura,
a tua formosura
estreitaria a rua
e esconderia a lua,
a tua imagem.





O ELEITO

Eu sinto nos pulsos
a carga de um trabalho pesado.
Meu coração desolado
com o que vê:
que há gente
com as mãos abanando
do outro lado,
sabendo que há tanto
a se fazer.
O meu povo
não vê o que há de errado,
muito menos
em quem deve crer.
Dia-a-dia
está sendo enganado
por aquele que foi bem votado
e abusa
do cargo e do poder.





RETORNO

As casas
que me olham no caminho
são simplesmente
barro e estacas.
Para elas
sou apenas um estranho
e a vida, muito ingrata.

Há cercas
que separam seus quintais.
Na sombra de uma árvore,
o galinheiro.
Eu admiro os tetos desiguais
pelas falhas do palheiro.

A terra,
pela seca embrutecida,
meu velho teima
em cavar;
através da poeira,
dá para olhar
a estrada esquecida.

Vejo parte de uma vida
que eu havia enterrado.
No espelho do meu carro,
o que veria?
Emergir do chão do meu passado,
um garoto que partia.





A DÚVIDA

Com um canto lamuriento,
tal qual gemido
de quem chora,
acompanhei meu pai
à sinagoga
enquanto minha mãe
ia à mesquita.
Não quita
a sua morte,
o meu perdão.
Meu aperto de mão
não foi em vão,
na paz querida.
Na falta de memória,
a nossa história
deixou uma enorme dúvida:
Usar a força bruta
de uma forma desmedida
é página esquecida de razão
ou é a fé perdida?





A ÁRVORE

Uma enorme copa
brilha verdejante
sob a chuva fina que a molha.
A raiz suporta
o peso constante
da árvore majestosa.

Sustenta entre seus galhos
uma diversidade de vida.
Por ser um vegetal,
desconhece a força natural
que a arrasaria.

Vem a seca e o vento,
levam suas folhas.
Entre muitas outras,
solidão.

Ainda resiste ao tempo
com seus galhos secos
como dedos de uma mão
exposta em direção ao céu
a pedir perdão.





UM DIA QUALQUER

O sol emerge à minha vista;
às pedras,
acaricia com seu fulgor;
ameniza a minha dor
ante essa vida.
Sinto o fragor
das folhas aquecidas
e do dissipar do orvalho.
Fecho os meus olhos
no final do dia,
agradecendo ao belo cenário.
Meu peito ilhado
por tamanha harmonia
por ver o pôr-do-sol
se dispersar no advir
da noite fria.





DESABROCHADA

Fútil desejo
é tê-la em meus braços
outra vez.
Eis a razão que fez
a vida amarga.
Teu corpo escorregava
em meu suor,
mas nunca estávamos só,
e acompanhada
deixava-se levar por outro alguém.
Dama levada,
a tua fidelidade
é flor desabrochada
que na mais leve brisa,
como os sonhos
de um amor primeiro,
tem as pétalas
dispersadas no jardim alheio.





CORTE E COSTURA

A mão desliza
num corte em viés.
Pelo avesso,
as partes dobradas.
Tal qual uma peça ensaiada,
movimenta os pés
um pedal de ferro,
de verão a inverno.
Há um barulho constante.
O carretel se desfaz
lentamente.
Vejo o tecido de cores diferentes
mudar de forma
a todo instante.





CHE

Não era um bandido
que vivia escondido.
Mas sim,
o herói da revolta.

Observou numa volta
pelo que lutaria.
Não fazia por glória,
mas por senso de justiça.

Ao chegar a sua hora,
o doutor não sabia
que o seu nome
ficaria na história.

A cena que o povo revia,
causava um desgosto profundo.
O seu sangue jorrou na Bolívia.
O seu ideal
espalhou-se no mundo.





ALUCINAÇÃO

Pelo mesmo tamanho
eu mediria,
sem o salto
ou o degrau da catedral,
uma dama
no alto pedestal,
que eu não conhecia.

A beleza
que dela irradia,
ilumina a missa
que é campal.
E os sinos que dobram
no natal,
como um anjo
que avisa.

Não escuto o sermão,
me paralisa
a beleza pungente.
Vejo a lua crescente
se esconder por detrás
da nuvem fria.

De repente,
perde-se à minha vista.
A procuro calado.
Na capela vazia
eu a vejo num quadro,
se encontra ao seu lado,
Santa Virgem Maria.





COMUNHÃO

Eu poderia ser
o garoto atrás da bola
ou aquele com a sacola
pelas casas a mendigar.

Eu poderia andar
com o tênis mais bonito
ou ter os meus pés feridos
sem ter nada para calçar.

Eu poderia morar
num enorme condomínio
ou ser aquele menino
que se esconde na favela.

Ter o meu barco a vela
ou não saber nem nadar.

Eu poderia comer
da mais fina iguaria
ou viver na agonia,
com a fome a incomodar.


Eu poderia olhar
para os meus pais
e dizer quero,
ou apenas: - eu espero.
E jamais poder comprar.

Eu poderia ter menos
e ainda estar bem
ou ser o que nada tem
e com pouco melhorar.

Nada mais justo
igualar.
Não quero andar
sobre os outros
nem pelo chão rastejar.

Eu sou real, não sou louco.
Quero apenas um pouco
de comunhão.





PROMESSAS

Prometi aos que ditam
que me tornaria um opositor.
Ao opositor,
que discordaria de mim mesmo
e a mim,
que jamais venceria.

Prometi aos grilhões
que me tornaria escravo.
Ao escravo,
que acreditaria em liberdade
e à liberdade,
que não a encontraria.

Prometi à suástica
que me tornaria um plebeu.
Ao plebeu,
que acreditaria em Deus
e a Deus
que me mataria.

Prometi aos sonhos
que seria real
e à realidade,
que acreditaria na razão
e à razão,
que não seria poeta.

Prometi a você
que não andaríamos de braços dados;
que debaixo de meu braço,
o amor não caberia.

Prometi,
mas foram promessas
vazias.





HÁ DE SER EM CASA

Há se ser em casa,
que eu morra.
Na velha masmorra
na qual me prendi.

Há de ser em casa.
Nem que eu corra
numa disparada
pra morrer em casa
feliz.

Há de ser em casa.
A rua
nada mais me diz.

Há de ser à noite.
Há de ser em casa.
A lua,
vista lá de casa,
é mais bela e clara
como nunca vi.

Há de ser em casa.
Não vai ser em vão.
Entre os braços dela,
numa mão a vela
noutra o coração.





QUEM É, VOCÊ OU EU?

Você, quem é?
Eu te conheço?
É você,
é você mesmo.
Você que lê
estes meus versos.
É você,
ou é o inverso?

Eu sei quem é.
Eu o conheço.
É você,
você que escreve
estes versos
que agora leio.
É você,
ou sou eu mesmo?

Você leitor,
você poeta,
vocês extremos de uma reta.
Um põe amor,
o outro aproveita,
lê sem pressa.
Você, quem sou?
Sou quem, você?
Eu sou alguém
que em mim se vê.
Eu sou você
que vê-se em mim.

Eu sou assim.
Não levo a vida,
ela me leva.
Eu não sou nada que interessa.
Do universo,
uma peça
que se completa com você
quando se vê
em cada verso
que sou eu.





VI

Vi a favela.
Vi a herança
que eu deixei.
Eu vi a cela.
Vi um menino alucinado.
Vi o intelecto
ser torturado
e lutei.

Eu vi novela.
Vi o mau gosto.
Então pensei:
que triste tela.
Vi o talento assassinado;
a mesma cena,
outro cenário,
lamentei.

Eu vi a relva.
Vi no solo,
o que plantei.
Vi a floresta;
vi o fogo ser ateado.
Já sufocado,
num desabafo
eu gritei.

Vi a América.
Eu vi a linha,
não vi a lei.
Eu vi a guerra;
vi inocente ser condenado,
virei meu rosto
pro outro lado,
mas o voltei.

Vi a Inglaterra.
Vi a rainha,
não vi o rei.
Eu vi a terra;
vi meu planeta ser acabado,
fechei meus olhos,
e desolado
chorei.





NÃO SERIA

O que seria de mim
sem ter você?
Seria um livro sem a página do fim;
uma janela sem um belo jardim;
uma jangada sem vela pra rumar.

Seria eu, uma lágrima sem chorar;
um dia inteiro sem ter pra onde ir;
uma criança que teima em não sorrir;
um sonhador que não sabe mais sonhar.

O que seria de mim
sem ter você?
Seria um bravo impedido de lutar;
um grosso espinho sem ponta pra furar;
um narcisista que não se vê.

Seria eu, uma causa sem porquê?
Uma espera por quem jamais viria.
O que seria de mim?
Um triste fim.
Sem ter você,
nada seria.





ONANISMO

Eu sou uma pessoa incerta.
Ando numa via exata,
com uma mão fechada
e a outra aberta.

Eu meu punho cerrado
levo a dor do pecado.
E na mão estendida
recebo o dom da vida.

Entre os corvos sou apenas o grão
decomposto em dejetos morais.
Entre os mortos, quero ser o afã.
Mas pertenço a um clã
de doentes mentais.

Acomodo o meu falo à razão;
minha mão ignora o lugar,
não discerne se é certo ou não
ao meu vício
se entregar.





SEDUTOR

Descobri
que fui demais,
muito além do que devia.
Nos teus lábios
minha mão tocou.
Tua força os contraía;
mas no ápice da agonia
relaxavas no pudor.
Por favor...
O teu olhar me pedia,
e na força do amor
em meus braços
cederia.
Mais um pouco.
Esse pouco muito será.
Devaneio é querer que esse louco
possa aprender a amar.





COMPULSIVO

Todas as horas
são devassas;
na praça,
no elevador,
no corrimão da escada.
Todos os amores
não foram suficientes
para contornar a solidão.
Tudo em sua mão
foi apenas passatempo.
Todo o sofrimento
não passou no tempo.
Dor na compunção.
O seu coração
tornou-se vazio
e nesse vazio,
viu que o que era muito,
era muito pouco.
Sentiu-se um louco,
quando percebeu
que foi tudo em vão.





VENTANIA

Um dia,
murmurei ao vento:
- Traga-me a dona
do meu pensamento.
Atravesse fronteiras,
mares e cidades.
Não importa o tempo,
digressões inteiras
ou pela metade,
nem a minha idade.

O vento em resposta
gira e assovia.
Sai às minhas costas
empurrando velas
no mar agitado.
Carregando pipas
dos guris levados.

Às vezes, mansinho,
não passa de brisa,
às águas alisa.
Faz um burburinho
quando cai um ninho
de cima de casa.
Apressa o tempo
quando agitado,
passando as finas folhas
do meu calendário.

Todos os meus dias
vou a beira mar,
olho o horizonte,
sinto ele voltar.
Sempre sem notícias,
numa leve brisa
tenta confortar.

Mas houvera um dia
em que olhava o céu ,
já velho e cansado,
quando o vento agitado
arrebata o meu chapéu .
Acompanho-o com o olhar,
aproximo-me do lugar
onde o deixou, o vento.
Vejo uma bela senhora,
reconheço nessa hora
a dona do meu pensamento.





SOLITÁRIO CORAÇÃO

Eu não quero ser passivo
ante a vida que me deram.
Meu amor me desespero
à procura de saída.
Sou um lobo sem comida.
Um camelo sem deserto.
Não é certo a solidão
quando ainda existe mão
estendida.
Uma flor colhida em vão
murcha no vaso da mesa.
Solitário coração
que por falta de uma mão
pára a vida
por tristeza.





Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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