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  Texto selecionado
Por minhas mãos
João Felinto Neto

Resumo:
O pensamento racional e comedido, criterioso e definitivo, faz da maioria das pessoas meros espectros de homens. Amnésicos, esquecemos nossos sonhos. Explorados, marginalizados, saqueados, esquecidos, seguimos a multidão. Nossos sentidos figadais, anestesiados pela própria cisão com o mundo, não nos faz perceber os detalhes que o tempo transformou. Em sua poesia, João Felinto nos mostra a lucidez de ser louco, e envergar a patética normalidade hipócrita que nos interna no manicômio do mundo moderno. O sentido sinestésico de ler o ambiente, de sentir seus segredos, de inundar os corações com sentimentos sublimes, mas perceber o limite claro dos paradoxos de uma existência que nos sufoca e nos expande, nos liberta e nos clausura, nos eterniza e nos dizima. Retrata-nos a saga do dia, que o tempo dispôs a seu gosto. As mudanças que agrisalham os cabelos e nos nutre a alma de experiências voláteis. Vai do ácido ao aquoso, do nascer ao morrer, sem entrelinhas. Não reveste de púrpuras o vaso de plantas sequiosas. Não verá no relógio a hora do almoço sem sentir o tilintar dos ponteiros, poetizar o tempo sem respostas. Não abrirá os olhos sem perceber réstias de sol irresoluto, lhe alertar as retinas. Não calará segredos de ouvidos magoados - reclamará a dor. Suas tardes opacas, se não forem suas, transluzir-se-ão aos olhos radiantes do poeta louco. E por suas mãos, reescreve a história de um cotidiano, realmente humano. E nos dá um ponto final, " microscópico, impertinente, a incomodar o macrocosmo indiferente das convenções gerais".

POR MINHAS MÃOS

Muitas vezes quando estou criando um poema, a mente pára por alguns instantes, mas as mãos continuam a escrever ou a digitar. E alguns desses versos são calejados e rudes, enquanto outros são extremamente macios e carinhosos. O resultado é um poema composto por minhas mãos.





O VASO

Vaso sem rosas,
vazio de nossas
lembranças.
Já não se encontra,
onde o havia deixado
em nossa última dança.
Ainda a vejo,
tão cheia de esperança,
sorrindo como criança,
encher o vaso de sonhos
e colocá-lo à janela.
Rosa bela,
o nosso vaso encantado,
agora todo quebrado,
é simplesmente um vaso,
um vaso de porcelana.





A COMPOSITORA

Frondosa,
de imenso verde,
que de improviso
compõe em seus galhos
versos de folhas ao vento.
Em harmonia com a melodia
da perfeita sinfonia da natureza,
em companhia da floresta inteira,
por todo o dia.
E à noite,
soturna,
se reserva no silêncio da imensa sombra
que assombra
parte da orquestra que lhe acompanha.
E continua,
no clarão da lua,
a composição.





JORNADA

Poder quedar-se
numa cachoeira,
com um barulho que não tem descanso.
E derramar-se toda,
como um pranto,
morrendo ao leito,
sentindo o remanso.
Voltar ao sal numa nova onda.
Subir ao céu toda evaporada.
Tão encharcada
numa outra nuvem,
voltar a terra
em forma de chuva,
recomeçando a sua jornada.





O ÚLTIMO

Apenas os chinelos
sobre o tapete
aguardam minha saída.
Mande-os entrar,
querida,
estou preso nesta casa
pela tua fidelidade.
O verdadeiro amor
não é o primeiro,
apesar da saudade,
é o último,
se último for.
Concordo com a frase inteira,
em memórias, de Almeida.





AMARRAS

Um céu sem astro.
Um verso sem poesia.
Um chão sem rastro.
Um homem sem companhia.

Surgiu no céu um astro,
uma estrela que me guia.
Segui no chão seu rastro,
minha eterna companhia.

És meu suporte, meu lastro,
sem o qual afundaria.
Qual pedra de alabastro,
que a atravessa a luz do dia.

Qual vela presa ao mastro,
estou amarrado na vida.
Tal qual o Castro,
por um simples laço de fita.





HERÓIS DE LETRA

Não saberia eu, forjar
cadeia para ninguém.
Mas bem
que eu poderia ser o rei Arthur,
ou talvez um ferreiro,
para forjar a minha própria Escalibur
e defender o meu reino;
confeccionar as ferraduras
e sair na cavalgadura
em companhia do amigo Sancho Pança.
Seria eu o Dom Quixote
De la Mancha,
De la Vega,
eu seria Dom Diego.
Como zorro, seu segredo,
usaria capa, espada, máscara e um chicote.
Sempre ao lado do mais fraco
frente ao mais forte.
E com capa e espada
eu seria um mosqueteiro,
para gritar ao mundo inteiro
"Um por todos e todos por um".
Mas, eu prefiro ser poeta
e usar uma caneta,
para poder criar em versos,
novos heróis de letra.





O LIVRO

Passas por mãos que manuseiam tuas páginas,
e por olhos que vasculham tua alma;
extraindo do teu texto,
todo o teu contexto,
toda idéia abstrata.
Extasiando-se com tua fantasia,
absorvendo o teu conhecimento.
És o maior invento
na escrita que habita em ti, de todas as formas.
A ação do tempo, teu corpo não suporta.
Mas em tua essência,
permaneces vivo.
Sempre tão presente,
sempre certo,
livro aberto.





VAZIO

Se eu morrer,
a vida continua.
Se você morrer,
a vida continua.
Se a vida for dizimada,
a terra continua.
Se a terra explodir,
as estrelas continuam.
Se as estrelas extinguirem-se,
o universo continua.
Se o próprio universo aniquilar-se,
sem luz e sem escuridão,
o vazio continua onde sempre esteve;
no entanto está preenchido
com a escuridão,
a luz,
o universo,
as estrelas,
a terra,
a vida,
você e
eu.





VISIONÁRIO

É preciso lucidez
para um homem descobrir-se louco.
Na fronteira do desconhecido
não há barreiras,
apenas um grão de racionalidade
num punhado de incertezas,
lançado nos olhos
que vêem a vida do topo do mundo,
cegando-os.
E mesmo de olhos fechados,
este homem dá para ir mais longe,
tão longe
quanto queira ir.





CORPO E ALMA

Talvez na minha calça
já não caiba minha vasta idade.
Em meus cabelos ralos e grisalhos,
o tempo sente falta do que via.
No espelho embaçado de saudade,
minha camisa já não me abraça.
As alpercatas me arrastam dia-a-dia.
Minhalma ainda conserva a mocidade
num corpo que é imprescindível companhia.
Os laços que nos unem são tão fortes,
que nem mesmo a morte
nos separaria.





ABANDONO

Um banheiro sem cortina,
de uma casa abandonada.
Nada de portas e janelas,
nas portadas o que resta
são dobradiças quebradas.
Quantas cenas relembradas.
Um telhado que faz medo.
Um livro com páginas arrancadas,
um romance sem começo.
A madeira apodrecida.
Uma pia esquecida,
há tanto tempo sem ver água.
Grande fenda que me cabe,
na parede lateral.
Uma flor que ainda se abre
entre a erva do quintal.





GRATIDÃO

Desejei
morrer em braços,
num eterno abraço
que me dissesse adeus.
E nessa despedida,
devolvesse-me a vida
e levasse a morte.
Agradecido,
escreveria na sua lápide,
em forma de verso,
a seguinte estrofe:
"Deste-me a vida
na troca de um abraço,
o mesmo abraço
que levas-te à morte".





VERSOS E CINZAS

As cinzas no cinzeiro,
foram os cigarros a espera de um verso,
um verso fumado,
um verso tragado por outros versos
que escapam de minhas mãos
na fumaça que se esvai entre meus dedos,
assim como meus dias.

No meu vício exorcizo meus medos
enfrentando a morte de perto.
Construído sobre suas cinzas
um castelo que é feito de versos,
uma torre que guarda segredos
num poema que nunca termina.

O meu vício finda
em mim mesmo,
no suspiro do último verso.
Há uma chama que queima ainda,
consciente de que não há regresso.

Sopro cada verso que habita
as infinitas horas de espera,
enquanto em meu vício se dissipa
a ilusão de ser o que não era.

Uma triste companhia.
Um cigarro que me inspira.
Um poema inacabado.

Um cinzeiro ao meu lado,
que transborda em poesia.

Versos e cinzas me mantêm acordado.





BOCAS

Bocas são perguntas tão desencontradas,
que suas respostas não nos dizem nada.
Bocas dizem não,
quase sempre não,
quando dizem sim.
Cheirando a jasmim,
boca de paixão.
Dentes são sorrisos de bocas contentes.
Boca geniosa morde a própria mão.
Lábios em silêncio,
boca sem razão.





BELA

Maldade,
dizer-te apenas parte de nós.
Costelas,
costas belas,
és mais em riso e coragem.
Adorada imagem.
Fonte de vida.
Ponte que nos leva longe,
na estrada que nos traz de volta.
Sem revolta,
tens consciência
de que somos conseqüência do mundo.
Em resumo,
sabes da importância que é ser
mulher.





SUPERFICIAL

Se teu corpo carregasse marcas,
e teus olhos se lavassem em lágrimas,
quem serias tu, se não a mesma,
a mesma figura,
figura pregressa,
reverso da vida, é o que serias.

O que somos,
além da superfície de nossos sentimentos,
apenas o que nos permitimos ser.

Não deverias tu,
olhar lá mais no fundo do outro,
que sou eu,
que também não a vê?

Somos iguais.
Somos normais.
Cegos por querer.





EXTREMO

A tua boca
é a única fonte em que eu bebo o amor.
No poder do movimento,
sinto por dentro,
uma dor aguda e constante,
que traz à minha mente
um desejo ardente de possuir tua alma,
num egoísmo extremo de ser teu próprio deus
a beijar-te a face,
ou invadir-te as entranhas
em forma de um demônio insaciável,
se entregando ao pecado de sentir-se humano.
Saciado,
sou apenas a metade de um prazer insano,
de amantes ilhados num breve momento
eternizado no tempo
por nós.





REGISTRAR

Deixei escrito
na folha de areia,
saudade é sangue
que corre nas veias,
é noite à espera
do dia nascer,
sentir o vento
que tocou você.
Como as barreiras
de uma geleira,
o meu sorriso se desfaz
em ti.
Em minha guerra você é a paz;
tez de cor branca,
és minha bandeira;
doce sereia
no mar que morri.





MEDO

A escuridão
que tanto temia na minha inocência,
por medo de monstros
que me perseguiam numa fantasia,
já não mais a temo.
A maturidade
nos mostra a realidade,
triste realidade,
de que na claridade somos presas fáceis
de nós mesmos.
Criança,
não tenha pressa de crescer.
Agora,
o seu futuro ainda é escuro,
mas será tão claro,
que sentirá saudade do que foi outrora,
inocente.





PÁGINA DO TEMPO

Passei o dia lendo,
revendo
velhos textos
em páginas amareladas pelo tempo.
Um pretexto
para alçar vôo ao passado.
Meu olhar,
de asas abertas a planar,
sem árvore certa para pousar,
estava cansado
de vasculhar uma montanha de papéis.
Fechou as asas e caiu do céu
por não perceber o sono que chegava.
Pus-me a sonhar
com tudo que havia encontrado.
Embora fosse o mesmo o meu passado,
eu era inevitavelmente diferente.
Sobressaltado,
dei um passo à frente
e despertei.
Olhei à minha volta desolado,
permanecia eu
sem nada ter mudado
em um passado
agora diferente.





DIANTE DO MAR

Estou diante do mar,
pasmo, comovido,
enquanto o mar
leva e traz
o meu sorriso.
O meu olhar
à deriva, está perdido;
tal qual o mar,
um lugar indefinido.
Estou tentando lembrar,
embevecido,
estou no mesmo lugar,
estou diante do mar,
envelhecido.





CASULO

Na árvore genealógica de meu ser,
num galho ressecado pela dor,
fixo o meu casulo.
Na solitária paz
e no escuro,
tento me rever.
Pela metamorfose do querer,
enfim procuro
o invólucro romper.
Num vôo inebriante,
na saída,
a liberdade me conduz
à luz
de uma nova vida.





SOLIDÃO

Por sobre a mesa,
fotografias suas espalhadas.
Enquanto a tênue luz
ilumina meu querer,
busco a você
em minha carne,
verme em minha alma.
Sob a tortura
de tamanho sofrimento,
vou a loucura,
vejo sua figura
sair de dentro do papel,
levar-me ao céu,
trazer-me a calma.
Em pouco tempo
não há mais nada,
só resta o desespero
e a mão da solidão
que me afaga;
a verdadeira companheira
numa noite
fictícia.





UMBILICAL

Estou mais próximo de sua alma
que você mesma.
Sou mais que um ser,
de você,
a melhor parte.
A sua doce voz é minha calma.
Fale consigo mesma
que eu a escuto.
Eu sei que alterei as suas formas,
essa é a maior prova
que você é meu casulo.
Eu quero para sempre estar aqui,
mas tenho que sair,
e enfim romper
a nossa relação umbilical.





SUAVIDADE

A suavidade dos seus cabelos
entre os meus dedos,
distrai meus pensamentos.
Afago a ilusão que a vida é para sempre.
Assim me fortaleço,
lembrando em fragmentos
uma vida inteira.
O tempo quase tudo carregou.
Mas resta mais que amor e amizade,
suavidade,
que a idade não tirou.





INCÓGNITO

Sou a solidão da alma
que respira companhia.
Sou a agonia da ausência
num santo sem crença.
Sou uma presença que incomoda
alguém que está ausente.
Sou o gelo seco
que molha a sua pele.
Sou aquele germe que morre de fome
no corpo do homem que está sem vida.
Sou uma saída
para quem está de fora.
Sou alguém que pena,
sem pena de alguém.
Sou o me perdoe
para quem pede esmola.
Sou luto constante
para quem não morreu.
Sou tão decifrável
quanto esta estrofe:
“Se eu sou você
e você sou eu,
não sei se você
reconhece a mim”.





VERBOS

Versos tornam-se verbos
sem perderem seu sentido,
quando os mesmos são reflexos
de um sol de muito brilho.
Ao escrever "sempreamar,pluriamar",
Drumont pode assim mostrar
o que agora eu afirmo.

Nada então é impossível
num universo invertido,
onde verso vira verbo,
criação indefinível.
Talvez uma previsão futura,
onde se declama verbo
e onde verso se conjuga.





FAZ DE CONTA

Num doce faz de conta
que faz conta de mim mesmo,
eu leio minhas falas
nas linhas do começo.

Um pouco mais adiante,
adianto algumas páginas,
um minuto a mais,
tantas noites amargas.

A chuva que não cai,
chora em mim.
A lua que não sai,
mal ilumina.
Sem ter motivo algum
não quero o fim,
ainda.

"A voz que em mim se cala
oculta o meu destino";
eu sou a personagem da fala,
é assim que me sinto.

Duas almas lidas,
imaginadas,
uma é a minha,
a que está em pranto,
a outra,
a ancorada ao cais,
no conto.





RUA

Bela calçada,
dama passada,
diurnamente movimentada.
Na madrugada,
sem companhia,
apenas o cão que ladra.
Onde se mora,
onde se pisa,
no tempo és encantada.
Um que se vai,
outro que chega,
saudade recompensada.
Quando se morre,
fica de luto.
Quando se nasce,
se comemora.
Às vezes triste,
desanimada,
outras alegre
e festejada.
Quando se parte,
nunca se esquece,
daquela rua
em que se cresce.





O VASO SOBRE A MESA

Meus olhos, não por dor,
mas por tristeza,
como o vaso colocado sobre a mesa,
sem flores,
não tem mais vida, nem amores.

Meus olhos apiedados
vasculham minha gaveta
a procura de poesia.
Encontram-na vazia,
recoberta de poeira,
como o vaso esquecido sobre a mesa.

Meus olhos fechados
vêem uma cena, que beleza,
o vaso repleto de flores coloridas,
a gaveta repleta de poesias.
Abro os olhos para vê-la,
o que vejo,
o mesmo vaso continua sobre a mesa.

Meus olhos agora lêem esta poesia,
de tristeza e alegria,
de um vaso e uma gaveta.
É a minha imaginação
materializada em letra.





INVISÍVEL

Respiro o hálito da boca da noite,
enquanto transpiro
o frio que evapora numa nuvem;
há horas, uma espera sem sentido,
não há ninguém para chegar.

Em quantas voltas
repassarei minha vida.
Sem ter saída
corro em volta de uma praça,
um ou outro que passa
não almeja o meu lugar.

Onde encontrar
o que nem mesmo procuro,
no céu escuro se perde o meu triste olhar.
Entre as farpas de gelo eu suo,
sob a chuva eu continuo,
pois a dor não me faz parar.

Assim como tudo que há, a chuva passa.
Ir para casa
ou não ter para onde voltar.
Qual o motivo para manter o meu corpo,
que quando morto
não poderei mais usar.
Por eu ser tão insensível,
restou-me somente o corpo.
Até parece impossível,
tornei-me um ser invisível
por não ter alma.





CASUAL

Entre abraços vimos o sol se por,
se por amor ou vaidade, não sei,
sei que meus beijos foram por amor,
de vaidade nada direi.

Posto que em nós
a noite tenta em si crescer,
talvez a sós
ela quisesse nos manter.

A luz do sol volta a brilhar
na tentativa de esconder a lua
de nosso extasiado olhar.

A tua sombra tende a se afastar
quando caminhas na estreita rua
em direção ao mar.





BLASFÊMIA

Nos lábios castos
eu provei,
à penumbra de um velho castiçal,
o néctar das flores.
Bem e mal;
uma tão branca
a outra tão vermelha.
Na palidez de uma vela acesa,
reflete a cor
de um rosto sensual.
Um cheiro de suor sagrado
que ela transpira em seiva matinal.
Anjo amado,
amaldiçoado,
que se transforma em demônio do mal.





FOME

Não se define tamanho crime pelo nome.
Pena imputada a gente tida como escrava.
Cala-se a voz ante aquele que não come.
Insensatez de outros que não tem palavra.

Sente vergonha de olhar à sua frente,
ao ver seu filho num tormento de carência.
Mesmo acordado, pesadelo permanente.
Tão impotente, mas não perde a paciência.

Ao definhar-se com os que ama para a morte,
tão inocente, desconhece seus carrascos.
Acha-se um fraco, ledo engano, és um forte.
Os insensatos, estes sim, é que são fracos.

Não culpa os homens, nem a Deus, somente chora
quando ao seu filho diz: - Terá um novo lar.
Fraco sorriso, mesmo na funesta hora,
este pergunta se há comida nesse lar.

Impossível haver fome nesta casa
enquanto a águia poderosa nos rapina.
Todo aquele que ainda come que reaja,
pois no futuro esta será sua sina.


Povo apático e conformista será tarde,
tão submisso és ao mando do mais forte.
Morrer de fome é uma triste realidade.
A liberdade, ou lutar até a morte.





HIBERNAL

Aprisionado ao prazer do descanso,
no travesseiro que eu encosto a cabeça à noite,
está meu sonho.
O sonho de acordar deste pesadelo,
o pesadelo em que vivo.
Mas, se eu me acordar agora,
provavelmente
eu morro.
Pois a realidade é um sonho do qual não me
[acordo.
Eis o pouco que recordo:
Piso com os pés descalços sobre a areia quente.
Vejo os meus pés dormentes que se queimam sem
[sentir.
Quando acordar,
será que vou dormir
para sempre.
Vejo os meus dias contados em segredo.
Piso ao acaso sem ter medo de cair.
Quando dormir,
será que vou sonhar
eternamente.





ENXERTO

"Pensamento em regresso,
a ti, lugar bucólico".
Já no primeiro verso,
um traço saudosista
de um poeta melancólico.

"Eu jamais te esqueço,
e em verso
despeço-me de ti, e dos meus".
Entre o fim e o começo,
esta simples estrofe completa
um poema
com versos que não são seus.

A minha mão aperta
uma caneta que foi livre.
Na minha mente, de uma porta aberta
sai uma palavra triste,
que insiste
encerrar o meu poema
"num simbólico
adeus".





DE VOLTA

À mesma noite,
de mão gelada volta
à serra embaçada pela névoa.
As aspirações de sonhos em fantasias,
inspirações infantis.
As tranças nas meninas,
uma herança dos contos.
Encontros casuais de insetos
nas telas protetoras das janelas.
Uma fraca chama acesa,
uma voz tão rouca que espanta,
e o próprio medo lhe dá sono.
As estrelas parecem meramente
pálidas senhoras,
esculpidas em pedras pitorescas
para serem admiradas
e impossibilitadas de sorrir.
Casinhas,
talvez o diminutivo seja para definir o aconchego
[das mesmas,
vizinhas na devoção de seus donos.
Uma vila de encanto e poesia,
perdida na lembrança de uma criança,
reencontrada em versos de utopia.





A ARMADILHA

Um arco-íris natural e sedutor,
uma armadilha ardilosa e traiçoeira,
a cor que tem a flor
para atrair a sua presa.
No zumbido de uma abelha,
o prazer num vôo enganador.
O inseto em pavor
na impressionante teia.
A chama que brilha acesa,
mas que queima e causa dor.
Olhar o sol se por
e enfrentar a noite erma.
Os raios riscam com infinita beleza
o céu que tornam ameaçador.
Os lábios vermelhos de amor
que põem em dúvida a certeza.
Enfim o maior predador,
uma armadilha para a própria natureza.





ERVA DANINHA

A erva não parece
tão daninha
quando no campo cresce;
até que a flor,
sozinha,
sem temor se envaidece;
sufocada no calor,
em meio ao verde que se aninha,
a flor perece.

Sob o sol abrasador,
erva ferida;
mesmo diante da dor,
mantém a vida.
Talvez você seja a flor,
e o meu amor,
erva daninha.





MINHA CASA

Vejo a minha casa
como a um grande jardim,
no qual
plantei a mim.
Enraizei-me
entre paredes e um portão de ferro.
Sinto-me
murcho e desfolhado
quando a uma porta abro,
e não me vejo em casa.
Minha seiva matinal
é o meu cotidiano.
Cada cômodo
tem seu próprio ritual.
Minha casa
não é motivo para sonhar,
é sonho.





BELA ADORMECIDA

A mão descansa,
repouso absoluto,
como a buscar um fruto
na árvore do sonho.
Singela dama,
no sono,
a esperança
de acordar um dia
e lembrar-se de tudo.
Em sua cama,
o príncipe ao seu lado
não é o seu namorado,
é seu encantado
filho.





DESLEMBRAR

Talvez eu esqueça
que o verde das plantas
é por causa da clorofila.
E que fila
é para testar nossa paciência.
E que ciência
é uma religião sem Deus.
E que adeus
não é apenas um aceno de mão.
E que razão
nunca duas pessoas tem ao mesmo tempo.
E que casamento
é uma união monogâmica.
E esqueça o velho jarro de cerâmica
na janela da sala,
e ao abri-la, espatife-o na calçada.
Talvez eu esqueça
que é preciso sorrir,
para quando você vir,
não perceber que esqueci de você.
Talvez já seja tarde,
e eu tenha esquecido
de mim.





FRUTO PROIBIDO

Simples ameaça,
nos deixou sem graça,
perdemos o medo,
e nos fez
tão cedo
rejeitar a farsa.
Que bendito fruto,
descoberto,
desperta
todo o nosso
desejo.
Encontramos o gosto
na maçã do rosto.
Sem perder
a calma,
tiramos do corpo
o peso da alma.





ENCARNAR

Quando está a vaguear,
o poeta às vezes corre.
Mesmo à guisa da sorte
ele tenta se encontrar.
Mas quando o poeta dorme,
ele pára de sonhar.
Quando acorda já é dia,
o poeta desconhece
que à noite inteira
foi prece,
divindade
e altar.
Nos olhos de quem o lia,
o poeta não sabia
que podia encarnar,
e à noite inteira
ser guia
na viagem do sonhar.





O LAGO

Não conseguia ver o lago,
no lago
eu não conseguia me ver;
e sem saber o que fazer,
deixei secar meu doce lago.
Um dia minando em estro,
o doce lago está de volta;
e no meu punho destro,
descubro como atravessá-lo.
E pelo lago eu nado
para um lugar
onde se vive de utopia.
Trezentas vezes eu nadei,
nadei no lago da poesia.





O MENINO QUE NUNCA DORMIA

Era pequenino,
e se aborrecia
se alguém tentasse fazê-lo
dormir de dia.
E toda noite para dormir,
ele chorava;
quando adormecia,
logo acordava.
O menino que nunca dormia,
também nunca sonhava.
Até que um dia
a sua vida mudou,
o pequenino dormiu,
e à noite toda
sonhou.





PERDIDA

Seca
na tua boca,
a saliva
de quem te castra
os sonhos.
Chora
na tua cama,
de tantos corpos
que te chamam
de amor.
Ninguém te ama.
Olha
a tua imagem
refletida
na vida
perdida,
em que se encontra
despida
de amor.





DESPERTADO

Vidraça
que reflete os raios do sol
ofuscando-me a visão,
luz que rasga o lençol
através da escuridão
e me abraça.

Ao sentir-me acuado,
rejeito aquela intrusa
que de sua cor abusa,
vou puxar o cortinado.

Tendo sido despertado
por tamanha euforia,
já me sentindo culpado,
abro o quarto
para o dia.





DEFINIÇÃO

Sou secular
pelos meus anos de história.
Decrépito,
pelas horas que vivi.
Sou rabiscado
pelos meus traços de memória.
Foi dessa forma
que eu me defini.

Quem sabe
sou apenas uma só palavra,
ou sou cada palavra
que possa existir.
Se sou enfim
uma definição tão frágil,
talvez não seja fácil
me resumir.





GUIA

Mais bonita flor
Infinita dor senti
Nasço em ti
Hoje e sempre teu
Alucinado amor

És o guia de minhalma
Tudo e nada
És a mão que me acalma
Riso e lágrima
Noite e dia
A mais intensa

Luz que me ilumina
Única





VERTICAL

Minha alegria mais intensa
Eis o caminho que me guia
Um sentimento sem palavra

Febre constante em minha alma
Inquieta forma que me agonia
Lhe entrego o corpo e perco a calma
Horas e horas de alegria
Olho você por toda a vida.





DESENCANTO DO COMEÇO AO FIM

Desencantado,
talvez desencantado
com tudo
que podemos ver.
Se me tirardes
os olhos,
não deixarei
de enxergar
meu desencanto.
E como tantos,
continuarei
desencantado.





ELABORADO

O relógio ao lado,
tão esquecido quanto as pernas embaixo
da escrivaninha.
Um retrato emoldurado,
de saudade empoeirado,
esperando uma palavra minha.
Eu aqui abstraído,
tal qual um velho monge que caminha.
Meu pensamento que tão longe se detinha,
deixou-me distraído.
As palavras vêm aos poucos,
como ave que se aninha,
forma um verso e mais outro,
até a última linha,
que o poeta como um mouro,
diz que o poema finda.





MEU LIMOEIRO

O teu tamanho pode ser pequeno,
mas na saudade torna-se gigante.
Sob o teu céu me senti sereno.
Pisar teu solo é sonho constante.
Voltar ao tempo em que eu me banhava
em tuas águas doces e providas;
as belas formas do verde que olhava,
que na lembrança não estão perdidas.
Quando voltei para um velho abraço,
notei teu corpo com nova roupagem.
Porém senti o antigo laço,
e só revi a antiga imagem.
Aquela praça em que batia bola.
Um velho banco em que olhava estrelas.
Nova pintura, mas a mesma escola.
A liberdade, e as bebedeiras.
Não és meu berço, oh! meu Limoeiro.
Nunca me esqueço, foste meu balanço.
Quando parti, fui em ti inteiro.
Quando voltar, serás meu descanso.





HUMANOS

Estranha forma, és tu coroamento,
de torpe invento
assume em ti devastação.
Embevecido em teu contentamento,
de ver-se Deus após a extinção.
Inesgotável fonte de loucuras,.
capaz és, de sentir
o mais intenso amor,
de contra ponto causar
a mais intensa dor.
O espelho da vida
não reflete a imagem de tua forma,
enquanto a moldura do mundo
é desgastada pela imprudência do teu caráter.
Um animal humano, que ironia,
tão insensível ser,
tão desumana forma,
és tu desgarrada figura.
Tu és o acorde desafinado
na harmonia do universo.
Que redenção no céu?
Se és remoção do inferno.





MÁSCARA

O que a face não mostra é o pavor da figura,
mórbida, sem doçura.
O mais intrínseco segredo,
o medo,a dor da loucura.
O gosto mau, do desejo,
na boca.
O que não beija,
a oculta.
A forma envolta no véu
de pele,
nada revela.
Nas expressões
não há certeza.
O que se vê
pode ser um ledo engano.
Por trás do pano
há um ator sempre atuando.
Mas toda máscara
deixa o espaço dos olhos,
e por trás deles nada pode se esconder.





A DEDICATÓRIA

Velho livro
sem capa.
Na primeira página havia
uma dedicatória,
retrato de quem a escreveu.
Em outras mãos
percebeu
que a memória
de cada um que o lia,
guardava o sonho
de um dia
empunhar uma esferográfica.
Uma fala,
outra cala,
outra fica pensativa.
Tão simples dedicatória,
marcava mais que a história
que o velho livro
trazia.





PROBLEMA MATEMÁTICO

Quem construiu
as casas em desníveis,
idem,
as classes sociais.
Que pôs etiquetas de preços
em seus valores pessoais,
vendendo-os
aos ditames do sistema.
Quem fez da vida simples
um complexo problema
que só a matemática o resolve.
Que diz,
só sobrevive o mais forte,
enquanto o mesmo
é sustentado pelo fraco.
Ainda não é tarde pra reconhecer
que você
é um problema matemático.





BATALHA

Impiedoso campo de batalha,
em que retalha a alma
do que luta,
desamparando-o à dor
que lhe arrasta
da forma viva
para a sepultura.
Sua razão se perde
na contenda,
e a visão se turva
quando fere.
Enquanto implora
que se arrependa,
seu coração
no sangue se arrefece.
Petrificado
ao som da consciência,
é golpeado
no instante de ausência,
se enfurece
e torna-se carrasco.





LEMBRANÇAS

Ontem,
pés descalços,
sorriso espontâneo,
pedaços de idéias, perdidos,
sonhos adocicados,
mundo encantado.
Hoje,
lembranças de tempos idos.





LEVA-ME O TREM

Um caminho sempre leva
a algum lugar.
Tudo vai passar.
Vai passar alguém
pra me acompanhar,
vai passar um trem
para me levar.
Um sinal
faz o trem parar.
Um olhar
a me procurar.
E de um vagão,
uma forte mão
tenta me tocar.
Fico sem ação,
não posso alcançar
minha própria mão,
um esforço em vão,
permaneço lá
no mesmo lugar,
a olhar pra mim
que parto no trem
pra não mais voltar.





O PORTO

Não esperes mais por mim.
Perdi o barco sem querer.
Foi por acaso que eu te encontrei no porto.
Eu te asseguro,
o porto não é mais seguro.
E quando me pediste socorro,
foi para me ver correr.
Teu corpo frio,
teus lábios roxos,
como as pétalas que recobrem o caixão.
A flor de tua emoção,
bem depois,
desabrocha em minha mão.
E assim tenho
a ilusão de que somos
dois.





ESQUECIDO

Se todos os meus versos
foram apagados
como as pegadas
de um poeta entristecido,
não há como voltar,
não há vestígio,
pela distância, o poeta está perdido.

Se cada passo dado
for redesenhado,
as marcas pelo chão
dirão qual o caminho.
Mas não haverá tempo
para alcançá-lo,
e o poeta, esquecido,
morrerá sozinho.





ESSENCIAL

O que seria de mim
sem minha fonte de querer.
Não poderia ter sonhos,
nem sorrir,
não poderia existir
e nem sofrer
(Pois o amor
fere sem querer).

Quero saber
o que em mim vem primeiro:
A ilusão de quem sou
ou tua imagem no espelho.
A tua imagem
é meu eu verdadeiro,
e eu, apenas
uma imagem no espelho.

Meu coração ainda bate,
e por amor me mantém vivo.
E desse amor eu preciso
para ser inteiro.
És muito mais que a metade de mim,
és o meu fim,
desde o começo.





SURDEZ

Que bom seria
se você me escutasse,
meu desencanto
seria encantamento;
ouviria o canto de uma ave
que cantaria
os meus dias de silêncio;
abriria uma fenda na verdade,
na qual veria
meu mais intimo pensamento.
Que bom seria
se você me escutasse,
eu poderia lhe falar
por mil anos,
como não falo
você não me escuta
e assim nós dois
na vida
lamentamos.





RENDIÇÃO

Meus vícios e atitudes
são tragados
num copo de prazer.
Oh! Bela flor da noite,
de sonhos perfumados
com gotas de orvalho,
meus lábios são regados
por você.
Na terra troco os passos,
na cama me engano
em seus braços,
na vida
desejo me perder.
Oh! Linda flor do mato,
plantada no descaso,
colhida no prazer,
em teu jardim florado
eu sei que estou marcado
para morrer.





ALMA

Flagelo de alma,
exaurido
pelo fluxo contínuo
da razão.
Desabitou
meu corpo empírico.
Agora te abjuro,
síntese do obscuro,
transformada
em simples psiquê.
Não sei se existo.
E você
espectro do acreditar,
deixou-se ilhar,
ao me deixar perguntar,
por quê?





TARDES

Minhas tardes não são mortas,
são tão vivas
e tão cheias de barulho.
Minhas tardes são tortas.
São martelo em bigorna,
estridentes;
como canto de codorna,
insistentes.
Minhas tardes, quem suporta,
esse barulho de porta,
que importa,
não há tardes diferentes.
Minhas tardes
nunca realmente são minhas,
se me pertencessem
seriam modorrentas,
tardes lentas,
em silêncio.





LENÇOS

Eu te dei um lenço,
lembro,
você fez um laço
prendendo os cabelos,
depois deu-me um abraço.

E não foi tão fácil,
após um silêncio,
levantar o braço,
desfazer o laço
e arrancar-lhe o lenço.

Sem laços,
os lenços
perdem-se ao vento.





LÓGICA

Não compreendo,
a pouco estava aqui,
por que partir,
isso não faz sentido.
Não vejo lógica em se fortalecer
e em pouco tempo ser enfraquecido.
Ter que lutar,
se já nasceu vencido;
ter que lembrar,
se será esquecido.;
esta é a lógica para poder viver.
É o trágico sentido da lógica.
É a trágica lógica sem sentido.





VELOCIDADE

O céu começa a se livrar
da palidez da própria pele,
e anoitece
no quadrante de minha janela.
Estacionado no tempo da velocidade,
vejo em pressa o mundo passar.
Noite sem luar,
escuridão passiva,
encontrar na chegada
a ilusão da partida.
Andar,
imóvel numa esperança
que corre em busca do tempo perdido.





SINTO

Eu sinto falta
dos longos braços de minha mãe
que me protegiam
a qualquer parte que eu fosse.

Eu sinto falta
de dormir entre meus pais
como duas paredes sólidas
a me livrar dos fantasmas da noite.

Eu sinto falta
do meu anjo da guarda
que perdeu as asas
e não mais voou.

Eu sinto falta
do meu amor de criança,
da esperança de um mundo de cor.

Eu sinto falta
de tudo que já passou.

Eu sinto muito
por perder minha alma,
e tornar-me um adulto.

Eu sinto muito,
por sentir falta
de tudo.





LÂMINAS E LÁGRIMAS

Meus olhos
em desuso
como velhas facas afiadas,
enterradas
numa terra
de mau uso,
com a ferrugem deformadas.
Não há lâminas,
tal qual meus olhos,
não há lágrimas.





VERBO

Sermos simples espantalhos
que de braços abertos
afugentam uns aos outros
nas plantações da vida real.

Um ser
que não consegue compreender
a extensão do verbo ser
no pensamento racional.

Ser um animal,
justamente, quando
se precisa tanto
de humanidade.

ser irracional,
diante da necessidade
de sentir-se
humano.





MEMÓRIAS

Um olhar perdido
de um menino querido,
sentado na varanda.
Um cheiro de doce
vindo da quitanda.
As réstias do sol
varando o telhado da casa
vão marcando pontos
na parede caiada,
um universo de estrelas.
O menino põe a mão
e pode alcançá-las,
mas jamais prendê-las.
Ao fechar a mão
a estrela escapa
iluminando seu punho cerrado,
memórias de um aprendizado.





NÁUFRAGOS

Os acontecimentos
são diversos na simultaneidade.
Os movimentos
dispersos,
espontâneos.
E nossos braços
entre barcos e remos
nos afogam.
É comum
ser mais um passageiro
recontando os sobreviventes,
um a um,
nas pontas dos dedos.
Somos náufragos
ante o silêncio de nossos atos;
nosso medo,
de verem nossos segredos
revelados.
Nem passageiro,
nem sobrevivente,
somos vítimas.





MÍDIA

Um microscópico ponto
impertinente,
a incomodar
o macro-cosmo indiferente,
das convenções gerais.
As lentes telescópicas dos jornais,
revelam mais
que a óptica da ética
e da moral.
Inusitado ato de discórdia
na mixórdia
do que é anormal.
Diante da severidade do gigante,
a liberdade inebriante
do pequeno
sobressai.





MORTES

Morri criança
na esperança de ser inocente.
Morri descrente
na inocência de não ser culpado.
Morri lembrança
na vontade de ser esquecido.
Morri perdido
na certeza de ser encontrado.

Minhas mortes são diversas
em fases dispersas da vida.
Mortes sentidas,
bem mais
que a morte
presente.





PALHAÇO

O homem que sorria,
perdeu-se no eco do próprio sorriso.
De pálpebras fechadas,
lágrimas de alegria lhe escorriam
ao inalar o cheiro do circo.
Através do colorido,
no picadeiro,
volta a ser criança
na lembrança de um palhaço.
Hoje, antagonismo no cenário da vida real,
são momentos que ali se perdem.
Ele retorna ao homem de sisudo aspecto,
espéctro
que o dia-a-dia o tornou.





PESSOA

Debruço-me à janela
para olhar as pessoas que passam.
Umas, passos na rua;
outras, traços nos versos que faço.
São minhas desconhecidas,
não me cumprimentam.
Eu as vejo por fora
não por dentro;
mesmo assim
parecem-me tão nuas,
parecem-me antigas conhecidas
que me desconhecem,
temendo falar-me à toa.
Como soa estranho
esta forma poética,
pessoa.





NO DIVÃ

Pergunto-lhe Doutor:
-Quem sou eu,
além do nome
que meu pai me deu?
Quem realmente sou?
De onde venho?
Aonde irei,
se é que vim,
se é que vou
a algum lugar?
Em minha limitada mente
preso estou
numa inércia
de uma amnésia existencial.
Mas não faz mal,
ei de suportar.
Não posso acreditar
que tentam me explicar
quem me criou,
se nem ao menos sabem
quem sou.
Pergunto-lhe Doutor,
quem somos?





QUE PENA

Não tenho pena de mim,
por não ter pena de Deus.
Não tenho pena de Deus,
por não ter pena do diabo.
Não tenho pena do diabo,
por não ter pena do homem.
Não tenho pena do homem,
por não ter pena do mundo.
Não tenho pena do mundo,
por não ter pena de mim.





REBENTOS

Pequeno olhar
a vigiar meus largos passos.
Pernas e braços
a desviar
minha atenção.
Faz-se distante,
chora diante
de um simples não.
Desembaraço é oferecer-lhe os meus braços,
manter-me firme
é suplantar a emoção.
Filho é encanto,
o desencanto
é a criação.





SOSSEGADO

Eu fico em silêncio,
e me concentro
sem perceber que o tempo se esvai.
Por mais que eu tente,
quanto mais eu penso,
lembro
que o meu pensamento me distrai.
E assim os meus dias
passam correndo,
pensando e lendo
perco o meu tempo,
e não corro atrás.
Quem sabe mais,
talvez saiba menos.
Quem nada sabe,
sabe muito mais.





SANTO

Não é preciso nem saber o nome.
Não é preciso pai-nosso ou ave-maria.
Santo para mim é quem tem fome.
E que tem fome,
é santo todo dia.
E todo dia para ele é santo.
E todo santo para ele é guia.
A fé, o seu pão de cada dia.
A falta do milagre, o desencanto.





SALVE

Salve as caras desarmadas
(Farpas nos olhos dos deuses).
Salve as gotas de vinho à sombra.
Salve as vítimas sem nome,
de homens de roupas brancas engomadas.

Salve o capuz que cobre as caras desalmadas.
Salve a coragem de levar à cruz,
na qual pregaram suas consciências,
a herança da culpa criada por seus ancestrais.

Salve a pele que o sol não fere,
enquanto a hipocrisia do preconceito
tinge de rubro a cor.
Salve a boca cortada no rancor de um mundo
sem jeito.

Salve o homem de si mesmo.
Salve-se se possível for.





VIZINHOS

É comum não vermos as lágrimas,
apesar do incômodo choro.
É difícil virarmos a página,
sem consolo.

Detestamos os traumas alheios,
são os mesmos
que causam a nossa dor.
É preciso aceitar o que és,
és o que eu sou.

De que importa morarmos ao lado,
lado a lado não andamos mais.
Num combate sem vencedor,
pedimos paz.





SECA

Folhas mortas.
Chão rachado.
Vidas tortas.
Corpo encharcado de suor.
Cadavérica imagem humana,
caminha sob um céu sem sombra,
de dúvida,
sem chuva,
sem decisão.





O CULPADO

Arrancar da boca um beijo cálido.
Entre nós apenas roupas.
Qual de nós é o culpado,
vida louca?

Arrastamos os pés descalços.
Ouvimos o mar trazer a brisa.
Entre o certo e o errado,
que saída?

Mão e luva se encaixam
na mais perfeita medida.
Nossas roupas se espalham.
Uma forma estendida.

O cansaço traz à tona a razão.
O silêncio grita: - Foi precipitado.
Fala bem mais alto o coração:
- Sou o culpado.





MOTIVOS

Há motivos para chorar,
eu sei.
Mas, se eu me entristecer,
terei
que deixar de sonhar.
Então você
vai deixar de ser
sonho,
e sozinha,
nessa hora,
a senhora
desmanchar-se-á em pranto.
O silêncio, no entanto,
será primordial.





FINA AREIA

Uma fina camada de areia
recobre os meus pés,
tão branca e fria como és
ao amanhecer.

O meu olhar vagueia
por sobre a mesma terra
que ao calor do sol
vem te aquecer.

Ao anoitecer,
torna-se escura e erma.
Já não és a mesma,
temo te perder.

Mas tua luz ainda corre
em minhas veias,
e através da fina areia
o nosso amor não morre.





QUEM SOMOS?

Lamentáveis esses desgovernos.
Irreparáveis todos esses erros
cometidos contra ti.
Impossível arregaçar as mangas,
pois não há camisa para nos vestir.
Como aplaudir,
se só temos palmas de mãos vazias.
Não há sorrisos em bocas banguelas.
Como correr atrás,
se estamos de bengala,
com os pés descalços,
mortos de fome.
Qual o nosso nome?
Amnésia.





NA CHUVA

Corria, ria, e corria
na chuva que me molhava.
Gritava com alegria,
na rua, quando chovia.
Depois que a chuva se ia,
na rua eu ainda brincava.

Saudades daqueles dias...





BOCA DE JAMBO

Mordeu o próprio lábio
por descuido;
lábios carnudos,
com o mesmo tom avermelhado
do fruto que comia.
No gosto do sangue que lambia,
a língua tentava em si,
conter
o mal dizer
da boca que doía.
Num impulso da mão
lançou em vão,
o fruto agora indesejado.
E já partia
com o andar faceiro,
quando na sombra
de um outro jambeiro,
com outro fruto
se deliciava.





CAÇANDO ESTRELAS

Um caçador de estrelas
carregava
no seu alforge
a lua do sonhador,
e cada estrela caçada
se apagava
com uma lágrima
de dor.
Para cada estrela apagada
se iluminava
um novo sonho
na lua que carregava
o alforge
do caçador.





SONHAR

As pedras dos castelos nunca construídos,
destruídos com os sonhos de uma vida toda,
tão preciosas
quanto as incrustadas em adornos
que enfeitam os pescoços das senhoras.

Na terra, cada sonho é plantado,
a maioria arrancado antes da hora;
devia ser colhido com cuidado,
um fruto raro,
que ninguém quer jogar fora.

À noite, um perfume delicado
é borrifado pelo vento frio que sopra.
Um doce sonho que eu tenho acordado,
iluminado
quando o dia desabrocha.

Quem não sonha é frio e apagado
como pedra na terra em noite escura,
e só demonstra brilho se ofuscado,
petrificado
no clarão que vem da lua.

Em cada rua tem mil sonhos espalhados
sob os telhados, sustentados na lembrança.
O que importa não é vê-los realizados.
Abrir a porta
é manter a esperança.





PERSEGUIÇÃO

Eu não sei se sigo
ou sou seguido;
cada passo dado,
um rumo desconhecido;
cada placa lida,
um aviso;
cada sinal aberto,
um risco.
Eu não quero ver o resultado,
quero apenas
aprender com ele.
Embrulhado
em papel de parede,
não consigo ver-me
decifrado.





AMOR DE LENDA

Uma voz
que meu coração dispara;
o som dela é melodia,
como a onda quebrada
na pedra escorregadia.

Uma gaivota em solidão
que voa na direção
do suave som do mar.
Eis como posso encontrar,
superando a minha dor,
a face do meu amor
num corpo de ficção.

Uma força a me puxar
da areia em que estou
às profundezas do mar.
Nos cabelos uma flor,
no canto a sedução.
Se acaso soar-me feia,
o encanto da sereia
aplacou no coração.





DOPAR-SE

Um pedaço de língua,
que se trava
com o gosto amargo
de um remédio comum
que nunca cura,
cai a míngua,
tal qual pedaço de parede
que descola,
de um qualquer
que caminha pela rua.

Enquanto deita numa rede
com a preguiça e o cobertor,
vê a criança
que não chegou à escola
brincar de ser,
ao mesmo tempo,
paciente e doutor.
Com a pele nua,
sem armadura,
suporta a dor.





FOLHAGEM

Meus pés pisam a folhada seca,
dedos suaves,
acaricio os longos fios,
tranças de raízes aéreas
que lembram serpentes
da mitológica Medusa.
Fico petrificado ao olhar
o intenso verde da floresta.
O vento
sopra como a um instrumento,
a rama,
assanhando as copas das árvores.
Um arsenal de sons e imagens
num melodioso cântico foliar.





PRANCHETA

Um apoio para toda a minha queixa,
onde imprimo em letras
minhas mágoas.
E nas cócegas
do bico da caneta,
através da folha de papel
nela apoiada,
eu escrevo sobre ti
e sobre ti escrevo.
prancheta
de acrílico, moderna e transparente,
apoiada nas pernas de um poeta
careta.



Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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