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II - Conversa de Botas Batidas
Europa Sanzio

Resumo:
[Esse texto faz parte de um conto]
Mini-sinopse:
Conrado está morto. Ele cria que apenas o nada viria após a sua morte, mas a sua mente continuar a vagar entre os vivos, sentenciando-o a encarar o mundo sem ele.

II

A consciência continua a guiar-me pelas vielas. Eu não há comando, perdi o direito de ordenar em algo; ela possui a sua própria vontade e eu tenho que obedecê-la. É-me uma troca justa. Meu último ato de vontade egoísta foi apertar o gatilho. Restou-me somente isso, ser guiado, seguir a vontade imposta. Tudo fruto da não existência.

Achas que existo ou sinto? Engana-se! Apenas narro o que me passa. Tolo é tu que pensas isso apenas porque ouve a minha fala. Entendas que minha inexistência não se dá somente porque já não mais respiro em corpo. Não sinto, talvez nunca tenha sentido mesmo em vida, por isso mesmo não existo.

Sem pernas para me levar, minha consciência seguiu por si só. Mas para onde ela iria agora? Talvez para o meu lar verdadeiro, onde eu encontraria pai e mãe. Mas a consciência não o faz. Ah, como ela é benevolente! Não o faz porque filho algum merece ver sofrimento dos pais em teu nome. Mentira! A consciência é má, tenho convicção! Não demorará para que sua maldade dê as caras.

Não me leva até o lar porque eu não o tenho, mãe e pai de foram há muito.

A mim, resta-me um único pensando enquanto sou guiado, teriam os dois saboreado dessa consciência vagante? Se sim, ela a teria os guiado até mim? Eles teriam visto minha tamanha indiferença quanto as suas mortes? Tão grande foi o meu desprezo pelas duas notícias que vieram em um intervalo de três anos! Primeiro o pai, homem que nunca me agradou, depois a mãe, boa mulher, apenas ingênua e maternal ao extremo com seu único filho.

Não, não sou ou fui cruel porque admito isso. Ao menos não com eles. Sou um homem de utilidades e pragmático. Sei bem que pais nos amam e pouco se importam com as burrices que fazemos. Nos tem amor! Verdade seja dita, nunca fui de afeto. As únicas vezes que o gastei foram com pessoas que me eram de extrema utilidade, porém que custavam a agradar. Com estas eu era um cachorrinho manso que lambe o dono! Sempre fui de utilidades e de pouco carinho. Por que espremer este último até o fim com gente que sei que me amará independente de qualquer coisa? Ah, não me culpo nem um pouquinho! Tampouco solidarizo com meus pais pelo fato de terem tido um filho tão pragmático. Afinal, faltava-me afeto, mas sempre me sobrou sapiência, a virtude das virtudes.

Deixemos meus pais de lado, pois a consciência parece-me ser tão objetiva quanto eu próprio. Meus pais estão mortos, ela não irá se importar com eles. Ela quer que eu veja o que vive. Assim o farei.

Veja só onde ela escolheu fazer uma visita! Nunca estive nesse cômodo da casa, mas sei bem onde estou. Se eu olho pela janela, através da escuridão da noite, reconheço os campos do casarão de Acácio, latifundiário da região.

Conheço onde estou e sei bem o porquê. Se a consciência for de esperteza, não demorará muito para que a garota apareça por ali.

Dito e feito! Entrou e não se deixou preocupar em ascender a lamparina. Pela noite, vi-a fechar a porta atrás de si com pressa, pressionando suas costas com toda força contra ela. Pós a mão na boca, como quem abafa um choro, pondo-se em ligeiras passadas até a cama, desabando em corpo e em lágrimas, enquanto agarrava um travesseiro junto a si.

Ah, boba! Não havia de crer que ela levaria mesmo a sério o amor que dizia ter por mim. Mas ali estava, escondida, chorando pela minha morte.

Ela era uma atriz, eu fui o único que presenciei suas duas facetas. Aquela, em prantos, era a que matinha em silêncio, oculta dos demais. Jamais diria a alguém que derramava lágrimas por minha ida.

Assim, gastemos alguns instantes para falar de como a conheci e do porquê a minha morte a faz chorar. Vai valer de algo. Juro.

Estava eu em minha melhor pose ser agiota na loja, três anos antes, observando o maldito Edgar tirar o pó do balcão. Eis que entra Rita, mulher de olhos tão afiados quanto à língua. Era falada por todos dali da região e, por mais que eu nunca tivesse sido visto fofocando nas ruas, meus ouvidos escutavam de tudo. Rita divorciou-se e juntou-se com Acácio, ganhando a boca do povo que de nada tinha para falar. Diziam que era uma mulher da vida, rebaixada, uma dama jamais ousaria ser vista acompanhada dela!

Bem atrás da mulher, que entrava na loja com nariz arrebitado, vinha uma jovem, mais alta e com longos cabelos pretos caindo pelo vestido. Não encarei a sua face e apenas tentei fingir que não notara a presença da ordinária entrando.

- Resgate. - Foi sua fala.

A palavra que sempre dizia de modo esnobe. Sempre vinha quando ela tinha recebido algum dinheiro e agora achava-se a mais nobre do universo. Quando não me vinha com um "resgate" era de cabeça baixa pedindo para dar-lhe mais pelos brincos que trazia para penhorar. Havia certa beleza nesse dualismo no modo de agir. Aquela mulher tinha seu fundo de objetividade, assim como eu. Mas era fútil demais para ser admirada por quem fosse.

- Do que exatamente? - repliquei. - Torna-se difícil para mim saber do que se trata, quando a senhorita - fiz questão de frisar - só me falta penhorar o casarão. Ah, não, perdoe-me! Esqueço-me que é do Sr. Acácio e somente ele pode penhorar-me.

Senti certa agitação da jovem atrás de Rita, como quem segurava um riso, mas eu ainda a ignorava.

- Das minhas pérolas, seu impertinente. - Esnobou, fingindo ofensa.

- Terá que ser-me ainda mais específica. Não tens ideia do número de senhoras falidas que me vem penhorando pérolas.

Nunca tive medo de perder a freguesia. Eu ainda era a única esperança para aquelas pessoas.

- Meu bracelete. - Respondeu. - Pérolas finíssimas, irá reluzir em seus olhos, principalmente em meio a um lugar como esse...

Com birra, abaixei-me e peguei uma das caixas escondidas por de trás do balcão. Quando me alcei de volta, lá estava, aquela queimação que me fuzilava com as pupilas. Flagrei o olhar da menina em mim. Como boa dama, desviou prontamente para o lado, em uma atuação que julguei péssima. Lá estava ela fingindo mais uma vez; a primeira que presenciei.

Rita, com o seu bracelete na mão, averiguava o seu estado com seu olhar em misto de nojo e crítica. Eu encarava a jovem sem discrição alguma. Não havia com o que se preocupar, ela se esforçava ao máximo para não me olhar, não tinha como ver-me. Deveria estar envergonhada.

Oh, se eu a conhecesse bem naquela hora! Saberia, como viria a conhecer depois, que ela não estava somente com vergonha, mas em verdadeiro estado de prantos! Como as interações lhe eram custosas! E lá estava ela, flagrada pelo agiota!

- Como sei que jamais irá se atrever a perguntar, eu lhe respondo. - disse Rita, ainda com o olhar sobre sua joia. - É a minha sobrinha. - a garota virou a cabeça para a tia, meio espantada. - Está morando comigo.

Pais algum permitiriam que a filha fosse morar com uma tia tão sem escrúpulos como Rita. Se estava no casarão, a garota só podia ter virado uma órfã.

- Pouco me vale. - Disse, dando de ombros. - Se me permite, pode me dar logo o dinheiro? As pérolas já estão enjoadas da senhora, aposto. E outra, sua reputação espanta meus clientes.

Voltei a ver a garota algumas vezes depois disso. Talvez eu já a tivesse visto antes. Mas somente após aquele flagra, quando gravei o seu rosto, meus olhos passaram a nota-la a caminhar pelas ruas, sempre com algum punhado de jovens rodeadas a ela.

Veja bem, não sou de paixões! Tampouco fui com ela. Mas eu era de mulheres. Eu era um homem e apreciava notar que alguma dama me olhava de modo diferente. Quando cheguei à cidade e abri a loja, era tido como exótico, misterioso e rude. Essa mistura fazia algumas belas mulheres gastarem seu carisma comigo, o que estranhei a princípio. Tempo passou e os dois últimos atributos se foram, mas o último permaneceu de rótulo para todo o sempre. Logo me tornei apenas Conrado, o rude. Os flertes já haviam se tornado escassos para mim. E eu, como bom ser rude, jamais permitia flertar com uma dama.

Bem, unicamente por esse motivo a menina me chamou a atenção. Não por outro, sou sincero. Nem tanta beleza tinha assim. Apenas foi-me curioso ter aquele velho olhar sobre mim de volta. Talvez eu tivesse o ganhado somente porque ela era nova na cidade, não me conhecia e só depois saberia da minha fama de homem grosso. Então, desencantaria. Se é que estivesse encantada. Por que estaria, afinal? Nem formoso eu era! Meus modos irradiavam da pele e também se acomodavam no meu exterior. Sempre fui rústico, sem esplendor.

Bem, mas se aquela garota assim parecesse querer, por que não atiça-la um pouco?

Umas boas semanas depois, quando a estranheza de ter ganhado um olhar já nem me era mais novidade, a garota apareceu na loja, com uma menina agarrada ao seu braço. Esta ficou na porta de entrada, parecendo ter nojo do lugar, enquanto a garota adentrou e foi até o balcão.

Eu, que estava sentado lendo o meu jornal, apenas levantei o olhar sobre os óculos, com minha indiferença.

- O que a senhorita teria para penhorar-me? - Indaguei.

Ela, um pouco nervosa, tirou, de dentro da sua pequena bolsa, o velho bracelete de pérolas.

- Minha tia mandou-me aqui. - Explicou, estendendo o objeto.

- Rita? - Perguntei, fingindo que já não mais lembrava dela. - De novo esse maldito. Mas ela não está esperando que eu lhe aplique maior valor, está?

- Ela quer o mesma quantia de antes.

- Ela quer... - Ironizei, levantando-me da cadeira e batendo o jornal. - Pois bem, ela faz isso porque sabe que não me recordo bem dos valores certos de antes. Agora eu ouse dar-lhe um centavo a menos! Vem com birra. Mas fica calada quando dou um conto a mais.

Fui bruto, da forma como sempre fui. Queria que ela visse que eu era assim, desprezível. Não deveria me ter apresso algum. Que se arrependesse daquela olhada!

Peguei o dinheiro e lhe passei pelo balcão, pegando o bracelete. Ela tacou dentro da bolsa sem conferir a quantia e esperou por algo.

- Sabe o valor, não sabe? - Perguntei.

- Sei, sim.

- E não vai conferir? Para assim, quem sabe, fazer escândalo se dei um centavo a menos?

- Deixe que minha tia resolva por si própria. - Foi sua resposta. - Obrigada.

Baixando a cabeça, quase que como em uma referência, ela se moveu para partir.

- Como se chama a senhorita? - Indaguei-a.

- Por que lhe importa? - Devolveu, não de forma rude, mas doce.

Parecia envergonhada pela pergunta, com a cabecinha baixa enquanto raspava a unha.

- Não lhe apetece saber do meu? Podemos trocar.

Ela levantou o olhar, com um meio sorriso.

- Mas sei o seu. - Disse, na sua voz de sussurro. - Está na placa.

Deixou-me sem seu nome, mas, em uma das poucas vezes que me dei como fuxiqueiro, perguntei a Edgar, que me respondeu com um Dolores.

Eu era um excelente observador. Gastei todo esse meu talento nos fins de tarde que ia para a frente do meu comércio, com um cigarro nas mãos, observar o vai e vem. Dali, quase todos os dias, aparecia Dolores com um punhado de jovens como ela. Ali me foi o divisor de águas. Da forma como eu agia, talvez jamais tivesse ido até onde eu fui com ela. Só o fiz porque vi algo na garota. Não, não falo do achismo bobo que as pessoas têm sobre tudo! Muito menos do amor à primeira vista. Tudo tolice. Já me conhecem o suficiente para saberem que não sou assim.

Falo do observar. Os grandes cientistas faziam dessa forma, usavam da observação dos seus experimentos para construir os conhecimentos do mundo. Eu também era assim. Dessa maneira, como em um experimento de física, observei Dolores e constatei-a.

Foi no dia que ela estava em um banco de praça, rodeado pelo vozear das damas e rapazes que costumavam acompanha-la. Seus olhos encaravam o papel. Mas eu sabia que era somente isso. Apenas fingia a leitura. Suas pupilas não dançavam de um lado para o outro, absorvendo as palavras; muito pelo contrário, estavam congeladas. Dolores era uma atriz na maior parte do tempo, como já sabem. Até mesmo nas vezes em que tinha a certeza de que ninguém a observava. Quanto mais fingia, mais ganhava experiência. Nesse ritmo de atuação, o vício a tomou, necessitou fingir para si até mesmo no banho solitário.

Atuava descaradamente naquele banco, fazendo do teu livro mero objeto em cena! Aqueles jovens não a viam, estavam destruídos pelas risadas, mesmo assim ela continuava a atuar. Eu era a sua única plateia e ela estava tão ocupada em encenar que não me percebeu vislumbrando-a ao longe. Dolores estava corroendo por dentro, cansada daquele falatório! Farta de fingir. Queria ao menos conseguir ler de fato algo sem aquelas vazes perturbando-a. Eu via em deu olhar mentiroso o repúdio escaldante pelo que lhe rodeava! Eu a peguei encenando daquela mesma forma, inúmeras vezes antes.

Os outros tentavam enturma-la na conversa, cutucando-a e dando apinhas em seu ombro. Ela respondia com um sorriso forçado e no instante em que o foco da conversa transformava-se em outro ponto que não fosse o dela, eu notei, numa fração de segundo, a atuação falhar; Dolores esquecia-se que precisava de continuar sendo atriz. Era quando a sua mente lutava para se libertar da mentira, assumir sua individualidade e revisar as futilidades do falatório risonho. Enquanto as pessoas tentavam a todo custo atropelar esses momentos com banalidades, uma atrás da outra, Dolores os amava, forçando com custo fugir o olhar da conversa que lhe era imposta. Virou a cabeça para o lado e quando não viu mais ninguém, eu a vi sorrir. Ela admirou o vazio de pessoas que se encontrava em sua frente oposta, convidando-a para o silêncio. Ficou tão admirada que relaxou cada músculo contraído pela tensão da sociabilidade, de uma forma tão abrupta que vi daquela distância. Admirei também a verdade que se mostrava enquanto ela encarava o ninguém; ela gostaria de estar no nada.

Unicamente pela minha constatação, digna de um cientista caprichoso, rasguei entre os jovens, sem pedir licença, pondo-me de frente a ela.

- Dolores. - Falei, firme. Nunca podia perder minha postura, muito menos em uma situação como ela, pelo que estava fazendo! - Sua tia pediu-me para acompanha-la. É urgente.

Ela desviou o olhar do nada, passando pelo livro e parando em mim, fechando o seu antes objeto de cena com um sorriso. Pela sua face, só tive mais certeza que eu era um exímio observador. Olhava-me feliz porque eu havia acabado de salva-la daquela gente, de quem tanto desprezava. Mais ainda, ria porque sabia que não havia tia alguma, que eu fiz aquilo por ela! Isso a alegrava.

Parece tolice tudo isso, coisa que eu jamais faria, e de fato. Mas lembre-se, sou pragmático. Se fiz, foi porque tinha meus objetivos, não porque ela era um rostinho bonito. Afinal, sou um homem justo e distante de futilidades.

Dei-lhe o braço sem encarar seus olhos, esperando para que ela o aceitasse.


Biografia:
Leio desde criança, quando comecei a achar o mundo enfadonho em demasia. Escrevo desde a adolescência, quando senti a necessidade de dissertar sobre aquele mundo tão tedioso. Prazer, sou Europa!
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