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Ventilador da Paz
Patricia Munhoz e Silva

A universidade em Stuttgart ficava localizada em um bairro afastado das principais atrações turísticas da cidade o que só trazia um certo desconforto quando a noite chegava porque não tendo nada para fazer na região tínhamos que nos deslocar alguns quilômetros para as atrações de escolha, o que, para quem nem é chegada em baladas, como eu, não fazia grande diferença.

Durante o dia a vida seguia de forma fluída já que a mesma estava ladeada por comércios diversos, tais como papelarias, mercados, restaurantes, hotéis e até um parque que junto com a intensa arborização natural da região traziam um frescor e um ar pitoresco aquela região que chegava a dar impressão que você estava perdido em algum universo paralelo de primeira grandeza. Tipo aqueles paraísos retratados em filme, onde a Cantata 147 de Bach ou a Clair de Lune de Debussy cairiam como uma luva na qualidade de trilha sonora...

A universidade, com suas linhas retas, modernas e características minimalistas, onde o concreto, a madeira e o aço imperavam, conseguia compilar a essência do povo alemão num misto de rigor, tecnologia e excelência sem, para tanto, brigar como o seu entorno.

A sala que usávamos era um show a parte, pois, toda acarpetada, tinha lindos painéis de vidro que alcançando cerca de 4 metros de altura por outros 4 metros de largura, davam acesso visual àquela vista, com ênfase ao parque e seu verde natural. Nesses mesmos painéis haviam portas igualmente de vidros, as quais davam acesso a uma grande varanda que circundava a universidade. Do chão brotavam aquecedores, certamente em razão do frio característico e lá fora e para um gran finale para aquele monumento arrebatador, esta possuía painéis automáticos que serviam como persianas gigantes, as quais eram movidas por controle, para cima ou para baixo, para a esquerda ou para a direita, de acordo com a necessidade de controle do Sol. Um verdadeiro espetáculo da arquitetura e da engenharia...

Era agosto, férias na Europa e ao todo não éramos mais que vinte pessoas lá dentro entre funcionários, corpo docente e alunos do mestrado, estes compostos de oito brasileiros, uma alemã e três georgianos e a empolgação era tanta que éramos todos sorrisos, sempre procurando nos aproximar de nossos colegas estrangeiros, para conhecê-los melhor, afinal, como brasileiros, nossa fama de simpáticos e amigáveis nos precedia e impulsionava.

Feitas as devidas apresentações, descobrimos que nossos colegas da Geórgia curiosamente se chamavam Georgi, para ser mais exata, Georgi alguma coisa ou alguma coisa Georgi, o que fez com que, após diversos questionamentos culturais dos motivos que levavam a isso, e inspirados nos Bananas de Pijama, cada um deles ganhasse os apelidos carinhosos de G1, G2 e G3.

Nos aproximamos bastante dos G’s, pois, aquele povo, pelo que ficou evidenciado nas conversas, apesar de ter um histórico bélico no sangue, possui algumas características muito parecidas com o nosso, em especial, uma certa simpatia e afetividade e um também o gosto por uma boa farra.

Mas, passada aquela empolgação dos primeiros dias, onde dávamos conta das aulas durante o dia e pegávamos firme no papo e nas cervejas quentes durante a noite, as aulas em período integral, no melhor inglês germânico, passaram a se tornar cansativas e enfadonhas...

E, para piorar, aqueles lindos painéis de vidro 4x4 da sala de aula que antes traziam a a paisagem natural para dentro da sala, agora, deixavam passar todos os raios solares do Universo, fazendo com que os 40ºC lá de fora virassem 50ºC lá dentro, o que com a existência do carpet, a inexistência de refrigeradores de ar associadas a omissão dos professores e funcionários quanto ao uso das tais persianas de última geração, tornava tudo muito dramático...

Moral da história é que tudo isso foi transformando os conceitos e onde era tudo moderno e tecnológico virou ineficiência e os G’s, coitados, de grandes guerreiros afetivos do leste europeu viraram em pontos de aversão ambulantes...

Caraca véi!!!! Explico.... Em menos de uma semana do início das aulas, a catinga que vinha deles era tanta que os brasileiros, como forma de preservação da espécie, passaram a chegar cada vez mais cedo nas aulas só para sentarem próximos as portas de vidro que, por sua vez, passaram a ser abertas talvez pela primeira vez na sua vida, sem contar que para ficarem junto a outros brasileiros que, por tradição, trocavam de roupa diariamente e estavam sempre cheirosinhos pelos banhos tomados, no mínimo duas vezes por dia, diante de tanto calor...
Então, o que tinha tudo para ser um encontro para confraternização entre os povos, passou a ser um tabuleiro real de WAR!

Dia após dia, os brasileiros se encastelavam confabulando como vencer o ataque nuclear olfativo promovido pelos G’s, chegando a algumas soluções, algumas pouco ortodoxas, tais como dominar as portas do recinto de forma que sempre mantivéssemos elas abertas e fazendo alguma correnteza de ar dentro da sala, preferencialmente no sentido contrário a eles, ou, então, quando não era possível, fazíamos um muro entre povos utilizando a alemãzinha para isso... Desculpe aí, mas, naquela altura alguém teria que ser sacrificado...

Ah, e que fique bem claro que eles combatiam ferozmente nossos estratagemas, seja se infiltrando entre nós chegando cedo e desrespeitando as zonas de guerra marcadas, já que estavam numa proporção de 1:2, bem como algumas vezes, logo após abrirmos as portas, íam lá e as fechavam. Mas ah, bicho... que empáfia dos caras!

Nossa sorte é que aos finais de semana ganhávamos uma trégua e alguns colegas, em verdadeira atividade diplomática, os convidavam para uma visita conjunta à lavanderia, mas, a questão era sempre resolvida parcialmente, pois, o fedor daqueles corpos quase putrefatos sempre conseguia superar o mais potente condicionador de roupas, fazendo com que vivêssemos naquela guerra fria semanal de abrir e fechar de portas...

Mas aí por sermos brasileiros, não desistimos nunca e tanto fizemos que conseguimos que a universidade providenciasse uma arma secreta com a qual eles não contavam: um velho, barulhento e simples ventilador que, apesar de contrastar com toda aquela tecnologia alemã da edificação, teve o condão de trazer a paz mundial para o reino educacional novamente, pois, o ligávamos de forma a nos alcançar e, como eles não gostavam daquele artefato belicoso desconhecido, migraram para outras plagas dentro do recinto...

Completadas todas as atividades em Stuttgart, nos dirigimos a Berlim, onde fizemos uma visita guiada aos principais pontos turísticos da cidade, como o Portão de Brandemburgo, o Memorial do Holocausto, o Palácio de Reichstag dentre outros, momento antes de nos separarmos.

Até hoje tenho contato com os G’s, através das redes sociais, onde comentamos fotos, mandamos parabéns pelos aniversários e de vez em quando arrisco convidar para uma visita: _ Quando estiverem no Brasil, venham me visitar! – escrevo eu – sempre acompanhado da hashtag #sqn. Como um amuleto, até agora, deu certo...    


Biografia:
Nada a declarar
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Outros títulos do mesmo autor

Crônicas Alemanha e seus Odores Patricia Munhoz e Silva
Crônicas Sempre leve um guarda-chuva Patricia Munhoz e Silva
Crônicas Ventilador da Paz Patricia Munhoz e Silva
Crônicas Coca Cola Patricia Munhoz e Silva


Publicações de número 1 até 4 de um total de 4.


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