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Ensaio sobre o narrador machadiano
Lucas Diniz Vaz

Os levantamentos sociais em que Machado de Assis faz de seu sumo literário parecem tecer hologramas extremamente verossímeis e abrangentes da sociedade brasileira do século XIX. Criar esse tipo projeção de um determinado cerne social, entretanto, não necessariamente se coloca a partir de um compromisso absoluto com o que se tem como verdade ou mentira, posicionamentos geralmente incubados por questões políticas e sociais mais efervescentes e determinantes de seus contextos. Machado não parece estar interessado em assumir esses efeitos com suas letras, o que por sua vez, não o isenta de uma forte apuração crítica e sim lhe permite um acesso ainda mais profundo nas entranhas contraditórias e ociosas que sustentam a alma ocidental.
Diante disso, a construção do sujeito-artista machadiano (faces de uma mesma moeda) propiciou conforme o seu amadurecimento ao longo dos anos, estratégias narrativas sofisticadas e com um alto teor de apuração, característica inclusive, influenciada pelos questionamentos à respeito do homem que ocorriam no século e por dados colhidos no campo da experimentação das relações sociais. No entanto, esse recurso de experimentação colhido na vida burguesa do Rio de Janeiro no qual Machado tinha acesso, se absteve de um substrato mais material da realidade, valorizando dados mais complexos, psicológicos e filosóficos que subjazem reflexões sobre moralidade, ética, ciúme, violência, atração, desejo e suas relações cotidianas em uma sociedade patriarcal, de classes e de futilidades materialistas. Assim, ao eleger questões humanas ao seu palco, esse recurso mais amplo permitiu com que Machado atingisse as raízes mais profundas da natureza humana e sua deterioração com os arranjos sociais. Recurso em que, no fim das contas, não se exime de pautas pertinentes do século, mas sim, fornecem dados que justificam esses processos sociais com base na natureza das situações, nas claras e evidentes violências e segregações do cotidiano. Em vias gerais, uma projeção mais subjetiva que explica através do próprio objeto questões históricas.
Sob esse objeto de análise, no qual Antonio Candido em “O esquema Machado de Assis” (1995) atribui “a transformação do homem em objeto do homem, que é uma das maÌdições ligadas à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual”¹, Ou seja, um homem enquanto ser, cuja identidade se submete para além de vontades e anseios próprios, um próprio aspecto da burguesia carioca, Machado necessita com que suas estratégias supram as questões estéticas em que seu projeto literário definiu como norte para suas narrativas. Ao lançar mão de qualquer conceito e divisão, dualismos e maniqueísmos tão bem cultuados pelo ocidente, Machado brinca com o jogo da ambiguidade, do que ocorre em processo e de questões que não necessariamente elegem o começo e o fim como pontos de excelência, mas sim do que ocorre no meio, da experiência que propicia os dados de maior relevância daquela projeção social. Para isso, Machado constrói o seu narrador inteligente, a chave de acesso para entender as camadas de suas obras, um narrador que é ensaiado dentro do projeto literário machadiano.
Em um primeiro momento, ele é testado e experimentado na obra “Ressurreição” (1872), em outro, na sua versão mais eficiente em “Dom Casmurro” (1899), o narrador assume sua função de maior profundidade. No primeiro, temos um narrador em terceira pessoa e no outro um narrador personagem. Duas formas, mesmo vínculo no que tange ao projeto do Machado. Se ele, enquanto artista se permitia desapegar de caixas convencionais nas quais colocamos autores e tempos, o que lhe permitiu jogos literários que bebiam da linguagem romântica arcaica em uma negociação com narrações mais informais e cheias de armadilhas, para que sua obra não “extraviasse pelas veredas da ciência do tempo”², se temos um uso estético naturalista no desenho psicológico e sensorial dos seus personagens, e se seu desenho implicou diretamente no sujeito coletivo chamado Brasil, não é surpresa para nós que seu narrador fosse tão dinâmico quanto a sua persona. É justamente o narrador que aproxima e separa as obras em questão, sob o respaldo, óbvio, de uma estrutura social perpetua.
Em Ressurreição, seu primeiro trabalho como romancista, o Doutor Félix é a representação mais consistente do homem da grande classe, despretensioso por natureza, seja na relação do útil e agradável que lhe convia, o que lhe permitia o desapego nas relações, seja pela sua própria auto vitimização e sentimento de posse desnudada na aparente relação (mais próximo de algo verdadeiro) com a jovem Lívia. Como implica para aquele discurso de self-made-man ou meritocracia, recurso fajuto digno de um homem nessas condições sociais, Félix encarna o individualismo de suas vontades e intenções, crendo de verdade que possui razões óbvias e que através delas se justificam suas ações. Entre essência e aparência, sobre o argumento de que todo o ciúme, o impulso controlador, a dúvida é por um suposto amor puro, todos os eventos são reverberações de um sujeito preocupado apenas com seus interesses, seja na sua viagem deixando Lívia para trás, seja na confecção do juízo de que mesmo que ela não tenha o traído, ela eventualmente faria. O narrador aqui não tem pretensão nenhuma em esconder o auto envenenamento de Félix, muito pelo contrário, ele revela com um anti clímax digno do pessimismo machadiano o seguinte convite: caro leitor, ela não traiu. O problema tá no Félix.
Esse é o momento em que as soluções narrativas se afastam. Ao perceber que o problema é muito maior do que sobre o fato do traiu ou não, Machado pega seu narrador e o transforma em personagem, o porta voz de um sujeito que detém a fala e portanto as verdades. É nesse narrador que a gente pode encontrar os dizeres e os não dizeres implícitos na obra. Em Dom Casmurro, o sujeito representante de classe é na mesma proporção individualista, despretensioso e saudosista em certa medida. A diferença se faz sobretudo na cortina de fumaça em que o narrador faz como advogado do diabo, curiosamente a profissão do personagem Bentinho. Ele, portanto, conta a história da sua vida, do seu amor, das suas ações e das suas motivações, dessa vez sem a acusação do narrador, mas como porta voz da sua versão da sua história sob o objetivo de condenar Capitu por sua traição.
Mesmas razões conectam Félix e Bentinho, entretanto a profundidade narrativa adquirida em Dom Casmurro argumenta, conquista e traz o leitor para sua dimensão psicológica cheia de juízo de valor, escondendo intenções que gradativamente emergem conforme o personagem narrador solta os seus demônios impulsivos, revelando um homem controlador, que objetifica a mãe e sua amada em uma relação subservial, que reproduz a casa da infância em uma autoflagelação ou falsa sensação de tempos perfeitos. A conexão entre ambos se deve a peça do Otelo de Shakespeare, cuja figura revoltada do personagem Iago compartilha do mesmo espírito rancoroso de Félix e Bentinho, sendo Bentinho Sant[iago] seu irmão dos fins que justificam os meios. Se traiu ou não, é pergunta velha e Machado nem ligava para isso, as duas obras em suas diferenças e semelhanças assumem a máxima de que existem esses sujeitos em cada esquina no país, sobretudo na elite brasileira.


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