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Trecho 7 de O Homem Sem Desejos
André Claro

Dormi toda a viagem de volta, madrugada adentro. Não vi nem a parada em Pouso Alegre. Não fui ao Banheiro, não sonhei. Aliás, lembrei-me de ter sonhado e que só poderia ser um sonho quando me dei conta de que Kurt dormia aos meus pés na cama. Precisava me organizar, fazer um roteiro antes de chegar em São Paulo: procurar Kurt, colar panfletos com uma foto sua, caso não o encontrasse, marcar um médico e ir à polícia relatar o que me acontecia, ou relatar o que me acontecia ao médico e marcar uma polícia. Quem sabe ser preso, devolver o dinheiro, receber mais dinheiro. E aquele dinheiro? Queria ter feito isso com detalhes durante a viagem. E, repentinamente, cogitei: talvez eu estivesse tentando resistir ao sono para permanecer naquele estado de confusão mental e letargia com requintes de lapsos de memória. Sei que, daquela vez, não foi possível resistir, mas nada me era impossível, nada nos era impossível, apenas desmedido. Que filosofia de boteco, cara, mas está adorando isso, não é? Pois é, vai ter que dar conta disso tudo, Yves. É tudo seu, cara.
Desci no Tietê e peguei um táxi para casa.
Fiquei comparando o interior e a capital, o aceleramento dos movimentos corporais, os deslocamentos furiosos de motos, carros, caminhões, ônibus e vans. O volume de informação que era trocado pelas pessoas não só online, mas também verbalmente. Disquei o número da Barbra e, imediatamente, lembrei-me da situação com Cinho, quando ele verificou que eu trocava os números – por querer, mas sem notar? Essa pergunta é uma saída, Yves.
— Alô? Sou eu, Barbra — tinha conseguido. — Chequei. Não, não vou ficar em casa. Vou lá só dar uma olhada e sair de novo. Eu te ligo... Aliás, me liga, lá pelas onze. Tem almoço aí? — procurei mostrar autocontrole. — Tá, mas me liga. Beijos.
Fiquei atento a alguma possível pista de Kurt, e nada. Fui reconhecendo o bairro, as ruas ensolaradas próximas à quitinete.
O táxi se foi, e eu me detive algum tempo antes de subir. Faltava alguma coisa e eu sabia o que era: medo. Como era estranho não saber o que era medo, sem medo eu estava desbotado. O medo não vai passar de medo, Yves, mas a vergonha pode passar da culpa.
Subi. Não havia sinal de arrombamento na porta de madeira mal pintada de verde. Enfiei a chave, mas ela não entrou de tudo. Haviam estragado a fechadura. Tentei de novo. Ouvi vozes vindas lá de dentro. Uma voz feminina respondeu algo para seu interlocutor e veio em direção à porta. Se estivessem armados, iam me matar à queima roupa. Ainda assim, esperei por ela ou quem quer que estivesse vindo, cuidadosamente, abrir a porta. Parou por um momento. Certamente olhava pelo olho mágico. Não tem olho mágico, Yves. Uma mulher abriu um pouco a porta. Ela tinha os cabelos lisos dando na nuca, as franjas bem maiores. Olhos pretos, as sobrancelhas muito bem feitas.
— O que quer? — perguntou ela, um tanto ríspida, surpresa.
— Entrar — repliquei simplesmente, mas com convicção.
— Quem é? — uma voz masculina gritou ao fundo.
— Um pedinte, amor.
Ela abriu mais a porta. Um pedinte? Eles estavam em minha casa, porém eu que era um pedinte?
— O que faz aqui? — ela foi insistente. — Quer um lanche? Dinheiro eu não dou.
Eu estava tão mal vestido assim? Com a cara tão cansada assim?
— Moro aqui, senhorita.
Ela riu, os dentes muito certos e brancos, ao passo que o homem de barba falhada e cabelo espetado se achegou atrás.
— Quem é você? — ele perguntou.
— Sou o morador daí.
— Desde quando? — quis saber a mulher.
— Desde há meses.
— Deve ter se enganado — insinuou o homem. — Qual é o seu endereço?
— Esse aqui, rua Cardeal Arcoverde.
Ele e a mulher se entreolharam demoradamente. Quando me fitaram outra vez, não sabiam se riam ou se exasperavam comigo. Ele refletiu e explicou com uma pontada de pena:
— Aqui não é rua Cardeal Arcoverde. A Arcoverde fica na Vila Madalena, você está em Pirituba, zona norte, amigo.
Emudeci. O taxista não se confundiria àquele ponto, certamente eu tinha tido outro ataque “confuso-amnésico”.
— Desculpem, foi engano.
Saí. Se eu não sentia medo, ao menos o cansaço já não conseguia evitar. Não poderia pegar um táxi ou ônibus, eu iria me jogar em outro lugar. Ou ia a pé ou ligava para Barbra e ela... Conseguiria chegar caminhando? Liguei, mas quem atendeu foi uma criança ou adolescente lúgubre que acabara de acordar, que acordara minutos antes de eu ligar. Teria que pedir para alguém me dizer onde eu estava, mas e se eu perguntasse por qualquer lugar achando ter perguntado precisamente pelo lugar onde eu necessitava ir? E se o casal estivesse me enganando? E se aquela fosse a minha casa?
Caminhei até uma papelaria. Um dos atendentes veio sorrindo.
— Pois não?
— Quero imprimir uma foto do meu gato. Ele sumiu. A foto está no celular, mas eu não trouxe o cabo.
— Ah, deixe-me ver seu celular e se tenho um cabo que serve.
Mostrei. Ele rapidamente foi conversar com outro atendente e voltou.
— Tem. Seu gato parece gato de revista. Quantas cópias?
Agradeci e fiz um pedido que pareceu estranho a mim mesmo. Certamente não era coisa minha. Não fora, aliás.
— Ah, dá pra colocar o nome dele, é Ca,u,erre,te, Kurt, e o meu telefone?
Ele hesitou. Olhou em volta, o movimento fraco.
— Tá, eu não posso fazer isso não, mas eu gosto de gatos, tenho dois lá em casa. Coloco desaparecido também?
— Isso, por favor. Quarenta cópias.
Depois de andar atrás do próprio rabo, peguei um ônibus qualquer para ver no que daria. Desci, aparentemente, no mesmo lugar, mas sabia que não era o mesmo lugar. Tomei outro ônibus. Quando reconheci, quase uma hora depois, o Shopping Eldorado e seu nome enorme na fachada, perguntei ao cobrador:
— Esse é mesmo o Shopping Eldorado?
Algumas pessoas em volta ficaram por entender.
— Sim, senhor.
Saltei. Pensava se não distorcia a confirmação do cobrador como distorcera a minha orientação ao taxista. Se desse certo, a partir de agora, bastava eu perguntar pelo ponto de referência do bairro a alguém e, chegando perto de tal ponto de referência, pedir que me confirmassem ser aquele o comércio tal, o monumento tal.
Eu não podia ir longe. Procuraria uma clínica. Tinha anotado o nome de uma. Procurei na carteira. Não queria um psicólogo, psiquiatra, embora acreditasse nos fundamentos de Jung, Freud, Benilton Bezerra Jr., Gikovate; achava que eu precisava mesmo era de um Neuro. Encontrei. Andei uns quarteirões. Haveria um Neuro naquela Clínica?
— Não, senhor — esclareceu uma recepcionista novinha, de óculos de aro preto, que sorria polidamente. — Mas temos um profissional excelente, o Sr. Dalton Valzone, psicólogo. Já ouviu falar dele? Ele já participou de muitos programas de TV.
— Não.
— Ele é novo, mas muito bom e competente. Vai gostar dele. Ele faz atendimento em sua casa, se precisar.
O lugar era legal, amplo, limpo, claro e quieto. E o psicólogo atenderia em minha casa, se fosse necessário. O que seria, mas certamente estava lotado.
Marquei com o Valzone para o mês seguinte. Se algum paciente desistisse antes disso, a secretária me ligaria.
Quando saí à porta, determinado a ir à polícia fazer um B.O., deparei-me com um carro parado, um carro não, uma Mercedes. Tinha vidros mais negros que a sua reluzente pintura preta. Havia dois homens usando ternos escuros encostados nela. Eles me sorriram, os braços cruzados. Fiz uma ligeira comparação com aqueles caras que me vigiavam e pensei se poderia ser um deles ou eles. Um era alto e moreno; o outro, baixinho, meio careca e de nariz encurvado.
— Sr. Yves? — instou o pequeno.
— Sim?
— Entra no carro, por favor, o senhor Fabrizzio precisa muito lhe falar.
Eu tinha escolha? O consolo era que agora eu saberia que merda tinha feito.
Entrei no carro, o ar condicionado ligado. Cumprimentei o senhor grande e de barba cinza ao meu lado.
Ele me estendeu a mão. Eu a apertei.
— Sou Fabrizzio.
O carro começou a andar. Um instante depois, ele prosseguiu:
— Finalmente nos encontramos, Yves.


Biografia:
Por um período, entre 1999 e 2001, fui repórter, não antes de ser escritor. Foi, pois, publicando um velho conto — no primeiro jornal no qual trabalharia — que me tornei repórter. Julguei que pagaria pela publicação, mas, além de não a pagar, ela simplesmente me valeu um emprego! A despeito disso, produzi pouco ao longo de vinte e tantos anos como escritor e dramaturgo. Em 1999, publiquei uma novela, que tem como cenário o Capão Redondo, Amargo Capão (Um Dia no Tráfico). Só então em 2006, voltaria a publicar, estrearia no conto com Absurdos, Delírios e Ilusões (Litteris Editora). Da mesma forma, escrevi alguns roteiros de curtas e alguns textos para o teatro, ocasião em que colaborei escrevendo e atuando numa paródia Shakespeariana: Queijo e Goiabada (Romeu e Julieta). Posteriormente, enclausurei-me, fiquei restrito a fazer bicos. Ler e escrever poesias, contos – esboçar romances. O Homem Sem Desejos, foi o único desses esboços a ser lançado, em 2016, então pelo Clube de Autores. Agora, igualmente, algumas daquelas poesias vão sendo divulgadas. Paralelamente, vou concluindo a faculdade de psicologia.
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