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IX - Aquarius
Europa Sanzio

Resumo:
[ESSE TEXTO FAZ PARTE DE UMA NOVELA, COM ESSA SENDO A NONA PARTE]

Sexta-feira, 8 de Setembro

Esperei, senhores, a diretora da Academia lá me retornar com alguma resposta para ter eu uma desculpa de me enfurnar na casa dos Dorneles. Para, claro, fazer minha observações da forma mais próxima que conseguia. O dia chegou. Fui logo pela manhã à casinha morta, para ter uma suposta séria conversa em detalhes com os senhores e avisá-los que Melinda deveria ir na segunda-feira para a escola. E que agradável surpresa tive eu ao chegar na casa! Em primeiro, quem abriu a porta para a calmaria foi a menina, não os odiosos tios ou alguma empregada, como eu esperava. Ela deu um daqueles sorrisos genuínos e deu passagem para mim.

— O que o senhor deseja? Meus tios não estão em casa.

Então seria só eu e a menina de Bouguereau?

— Esperarei por eles bem aqui. — Poderia eu perder a chance de vê-la mais de perto e, de quebra, sem olhar de outros sobre mim?

A música já devia estar tocando há muito, mas só a percebi naquele momento, quando entrei por completo na antessala. Vinha de um toca disco no canto, sendo a única coisa, fora Melinda, que parecia respirar naquele cômodo ordinário. A menina olhou de um lado para o outro, meio atordoada com a decisão que tinha de fazer. Logo percebi o motivo de sua preocupação: estava descalça, apenas com suas meias três quartos. Tentou a todo custo esconder de mim os pezinhos nus enquanto caminhava até os sapatinhos vermelhos escorados na parede. Vestiu-os e foi quase correndo até o toca discos, já com a mão para retirar a agulha e aniquilar ao som.

— Não, por favor, deixei a música! Permita que Edith Piaf cante para nós! — Eu pedi — Posso me sentar aqui?

Um meio sorriso de lassidão assentiu para mim.

Lá se foi a menina se esconder por detrás de uma cortina, que dava para uma pequena salinha. A luz da janela ao fundo me permitia ver por entre o tecido a figura esparramada em um pequeno sofá, com uma revista nas mãos. Somente a ponta de seu sapatinho era totalmente visível para mim, sem o verniz da cortina. Mas fiquei tão concentrado em Melinda que foi como se aquele tecido bordado de flores inúteis não estivesse ali tapando a minha visão da menina. Ela se encontrava completamente crua diante de mim; nem a distância dos passos era suficiente para barrar a minha grande atenção depositada naquela pessoa. No entanto, a natureza das ações da menina denunciava-me que Melinda cria que estava totalmente protegida pela cortina, isso porque ela não conhecia o poder da minha atenção!

Enquanto eu a admirava sem ela perceber, Piaf ia cantarolando bem assim...

C'est lui pour moi

Moi pour lui dans la vie

Il me l'a dit, m'a juré pour la vie!

E Melinda ia balançando de leve os pés, baixando a revista em suas mãos, fechando os olhinhos com suavidade! Tentava acompanhar a letra com os lábios, e pouco se preocupava em acertar com exatidão as palavras francesas. Em toda a vida, jamais eu havia visto alguém ouvir Edith Piaf ou qualquer outra música com tamanha intensidade e dedicação. Duvido que eu ou qualquer outro alguém volte a presenciar ou vivencie tamanha pintura viva como aquela, pois Melinda ia apreciando com vigor o acontecimento que era a preparação das notas, vindas de tão longe, morrendo uma a uma para que a próxima pudesse nascer.

A vibração quase imperceptível que sua pele fazia, quase no ritmo, e seus cílios deitados dançando de sentimento! Não só a cortina desapareceu para mim! Ou os passos! Lá se foi aquele sofá, toda a mobília, até mesmo o toca disco. Sem o instrumento e mergulhada na via sobre-humana, a canção permaneceu ensaiando passos, mesmo sem o instrumento. Melinda desnudou-se e apenas seu coração preenchido de sentir se mostrou.

E então, como em um apagão, toda aquele encanto que envernizava aquela casa extinguiu-se. O barulho do portão do lado de fora fez Melinda se levantar bruscamente, de uma forma que nada combinava com o antes, e correu deslizando pelo assoalho recém lustrado. Retirou o disco, o colocou bruscamente em sua capa e olhou para mim com seu olhar de mel.

— Meus tios detestam que eu fique usando o toca de disco deles. Desculpe-me pelos modos.

O trinco girou e Melinda desapareceu em um aceno meu. Tão abrupto foi o término daquilo que quando os odiosos entraram em sua casa e me viram com certa surpresa, olhei-os com o triplo de espanto. O que eu tinha acabado de vivenciar? Queria perguntar-lhes e, sobretudo, exigir que saíssem dali e deixassem que a menina voltasse com seu disco! Vê-la sobre a cortina mais uma vez, deitada sem jeito no sofá, com o olhar fechado e sua apreciação por aquela melodia que tantos também gostavam, mas nunca daquela forma tão única! Eu havia estado diante de um grande acontecimento, estava pleno sobre essa questão. O conjunto que havia acabado de esvair-se não merecia esse fim tão banal e brusco. Queria eu, antes da sua morte, ter transformado aquela cena em um camafeu para carrega-lo pendurado em um colar ou um broche! Un grand bonheur qui brend sa place. Des enuis des chagrins s'effacent!

O resto que veio após aquele divino e a conversa com os odiosos, senhores, nem gastarei pondo nessas linhas, sobretudo porque seguinte aquela extinção súbita, houve somente a ausência de Melinda.

Agora estimo esses papéis com valor intrinsicamente maior do que ontem, pois são a única coisa que restou do acontecido. É uma réplica tremendamente imperfeita, confesso-lhes; não há o ar úmido e empoeirado que respirei nesta manhã, ou a paleta amarelada de cores que voava pela sala naqueles instantes preciosos, tampouco o cheiro de mofo misturado com rosas! Isso tudo pode parecer tão imperfeito aos senhores, sei bem! Devem perguntar-se como algo tão sublime pode ter surgido de tamanha imperfeição. Mas, garanto-lhe, se juntadas essas coisas frívolas, na mesma proporção em que se encontravam nessa manhã, com aquela mesma Melinda, aquela canção e comigo ali como único e devoto espectador se transforma, eu juro, em coisa perfeita. E toda e qualquer reprodução disso é somente uma cópia completamente infiel, como esse relato.

De todo jeito, é a única coisa que me sobrou. Agora tentarei replica-lo em minha cabecinha, deitado no divã, depois de colocar a mesma música para tocar. Que Teresa venha reclamar da altura da música! Pode vir! Trancarei a porta e sua histeria do lado de fora será só mais um detalhe imperfeito e irreal entre os tantos outros que haverá no meio dessa minha infiel reprodução mental.

Heureux, Heureux à mourir!

[CONTINUA]


Biografia:
Leio desde criança, quando comecei a achar o mundo enfadonho em demasia. Escrevo desde a adolescência, quando senti a necessidade de dissertar sobre aquele mundo tão tedioso. Prazer, sou Europa!
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