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Dimensões
Camila Pang

Capítulo Um — A identidade da descoberta
Despertei de um pesadelo. Na verdade, não.
Sentada no sofá alaranjado de minha mãe na sala de estar, eu lia um livro de receitas de tortas doces.
— Você sempre detestou cozinhar, por que está lendo esse livro, filha? — ela perguntou como se eu realmente nunca tivesse lido aquele livro antes.
— Eu estou escolhendo alguma receita para a senhora fazer, o que acha? — respondi sem desviar das páginas.
— Desta vez, é para a senhorita me ajudar. — Ela dizia sorrindo enquanto eu virava a página do livro.
— Onde está meu pai? — sabia que acabaria com a alegria dela com essa pergunta, mas não foi proposital, faz tempo que eu quero uma resposta convincente.
— Que pai? Por acaso você tem pai e eu não fiquei sabendo? — ela contorceu o rosto, tratou a minha dúvida com ironia.
— A senhora tenta ser engraçada com assunto sério? — eu quase fechei o livro, mas deixei o dedo indicador entre as páginas.
— Eu sou sua mãe, e você não tem pai e nunca terá. — Sabia que se eu continuasse com as provocações, aumentaria sua cólera.
— Onde está meu pai? — meu subconsciente dizia que era hora de parar com as provocações.
— Seu pai morreu. — Ela disse perturbada com a minha insistência.
— E onde ele está? Quero visitar seu túmulo — digo antes que ela pudesse subir as escadas como fez pela última vez.
— Eu não sei. — Ela parecia ser sincera.
— Ele nunca soube de mim? — esse diálogo se repetia quase todos os dias.
— Não. – Ela colocou o pé esquerdo sobre o primeiro degrau e a mão direita sobre o corrimão, pronta para subir e me deixar novamente sozinha.
— Diga para mim qualquer pista que me leve a ele. — Eu nunca havia dito isso antes, mas pretendia que nosso diálogo tomasse outro rumo.
— Seu pai morreu. — Ela não sabia o que responder.
— E a família dele? — qualquer sinal seria útil para mim.
— Não conheço. — Começou a subir as escadas e eu fiquei desesperada, precisávamos conversar mais.
— Por que a senhora está me tratando desse jeito? Por que a senhora tem raiva dele?
Minha mãe virou-se para mim, ela estava claramente chateada comigo.
— Eu nunca senti raiva de seu pai. — Então, ela subiu as escadas que levava para seu quarto, e eu continuei com o livro semiaberto de receitas sobre meu colo. Eu o fechei e coloquei sobre a mesa de centro, que também sustentava um porta-retrato com a foto de minha mãe e eu abraçadas. Na minha vida inteira sempre senti falta de meu pai, mas o que mais me doía era não saber onde e como ele estava.
Subi as escadas cinco minutos após minha mãe. A única coisa que restou era dormir, ou melhor, tentar.
Quando amanheceu, eu não queria ir à escola, eu estava com sono, não tinha dormido direito preocupada com a conversa de ontem; eu me incomodava com essa situação.
De frente ao espelho, eu estava vestindo o uniforme, a calça era preta e a blusa também; no peito havia o símbolo da escola: um diamante em contorno branco. Peguei minha mochila e fui até o quarto de minha mãe se despedir, mas ela não estava lá. Gritei pelos cômodos e nenhum sinal dela. Fiquei aflita; não conseguiria sair de casa sem ter notícias dela. Alguém bateu à porta e fui atender, era o Orientador, um senhor que usava uma capa lilás, seus cabelos e barbas, longas e brancas, seu chapéu me lembrava a de um bruxo. Ele estava cabisbaixo, na verdade, sempre andava assim, nunca era possível ouvir sua voz. Nossa comunicação era através de bilhetes. Ele me entregou o bilhete ainda enrolado como um pergaminho e eu o peguei apreensiva.
No bilhete dizia: ''Pare de procurar seu pai. Sua mãe está bem. — Diretoria Diamante." Eu não entendi. Minha mãe foi até a escola falar sobre meu pai, ou melhor, sobre minha busca. Aquilo me deixou furiosa em saber que terceiros estavam se intrometendo em meus assuntos familiares.
Eu segui o Orientador. A escola era perto de casa, mas antes um veículo me buscava quando eu morava em outra vizinhança muito longe daqui. Paramos em uma rua com enormes e coloridas casas enfileiradas sem quintais em volta, a rua era vazia, sem moradores e a única casa que minha mãe escolheu para alugar foi a mais graciosa, com margaridas e violetas na fachada, postas em belos vasos.
O Orientador abriu o portão quando chegamos à escola e atravessamos a biblioteca; tudo ao redor possuía livros e Seu Escadas, um senhor simpático e o bibliotecário, aguardava-nos em sua cadeira de rodas. Seu apelido era Escadas, porque antes de trabalhar na escola, ele tinha uma loja que vendia escadas.
— Vista-se como alguém normal, bruxo velho! — ele falava isso todos os dias, afinal, o Orientador não mudava de aparência.
— Bom dia, Seu Escadas. — Eu o cumprimentei ainda rindo do que ele tinha falado com o Orientador.
— Bom dia, garota. — Ele era animado, não existia tempo ruim para ele.
Eu segui o Orientador em direção à minha sala de aula. Não havia muita interação entre os alunos; a instituição era muito rígida. Sentei em minha carteira. Ficamos aguardando a chegada do professor, mas quem nos surpreendeu foi a entrada do Orientador, comunicando o interesse do diretor em falar comigo, era a primeira vez que eu ouvia sua voz. Eu fiquei assustada, mas logo levantei e o segui. Silencioso, ele me guiou ao segundo andar. Subimos as escadas. Pedi licença e entrei na sala do diretor Nemestrino.
— Sente-se, Liona. — Ele gostava de usar paletó vermelho, mas hoje ele estava de preto.
— Obrigada. — Eu ainda permanecia apreensiva.
— Eu irei direto ao assunto e você está proibida de fazer perguntas. — Ele sorria, mas eu não entendia o motivo, eu estava me irritando com aquela situação e não admitiria que o bilhete dissesse o que eu deveria ou não fazer.
— Pare de perturbar sua mãe com perguntas de seu pai — disse o diretor em voz autoritária, o seu sorriso malicioso me dizia que escondia algo de mim.
— Se eu não perguntar para minha mãe, para quem mais será?
— Não precisa estar na defensiva, querida.
— Para o senhor dizer isso, o assunto é mais sério e envolve pessoas que até então não fazia parte de minha família, não é, senhor?
— Sua mãe me pediu ajuda para conversar com você. — Ninguém tinha ideia do nível de minha irritabilidade.
— Onde está minha mãe? — tentei parecer calma.
— Atrás de você. — A voz era dela.
—Mãe? Obrigada por deixar café sobre a mesa. — Virei-me para trás.
— Mas você toma café aqui.
— A senhora entendeu, eu quis dizer que nem me esperou para sair.
De repente, minha mãe olhou para o diretor com doçura e foi até ele e colocou o seu braço em volta de seu pescoço e sua outra mão ajeitava a sua gravata vermelha.
— Você e o diretor? – Eu estava caindo da cadeira com aquela cena.
— Querida, o diretor é seu pai. — Minha mãe disse com um sorriso entre os lábios.
— Meu pai? Eu não tenho olhos verdes iguais aos dele.
— Gene recessivo.
— Você nunca entende o que eu quero dizer, não pode ser meu pai, porque seria uma mentira tão estrondosa, muito pior do que se ele estivesse morto.
— Não me diga que preferia isso, minha filha. — O diretor demonstrava decepção com minhas palavras.
— Filha, nós não queríamos que você soubesse, porque não sabíamos se era o momento certo. – Minha mãe tentava se explicar.
— Momento certo?! E esse é o momento certo?! Porque não consigo imaginar outro momento pior. — Eu estava indignada com essa situação.
— Eu soube de sua existência há pouco tempo. — O diretor sentou-se novamente em sua cadeira enquanto minha mãe se aproximava de mim.
— A culpa foi minha, eu deveria ter falado que o diretor era seu pai, mas quando nos reencontramos, foi um choque para nós dois e você já tinha dezesseis anos.
— E por que agora? Mudei muito para entender melhor? — Eu estava nervosa, minha vontade era sair dali correndo, mudei-me para um lugar atrasado em que havia somente um colégio estranho e descubro que meu pai é o diretor que nada combina com a escola com sua vestimenta vermelha.
— Porque eu não sabia que você existia e eu estava brigado com sua mãe. Nós perdemos contato, filha. Eu sei que faz um ano que descobri sobre você, mas não sabia como lhe contar .
— Se eu fosse nova demais, a história seria a mesma. —Eu queria sair daquele lugar, mas não tinha coragem. — E vocês voltaram? — Só faltava a resposta ser “sim”.
— Sim. — Minha mãe afirmava. — Não vai abraçar seu pai, minha filha?
— Agora não.
Eu senti que o diretor não era meu pai, óbvio, não tivemos convivência e não tem como uma descoberta surpreendente mudar os sentimentos das pessoas e criar um laço inexistente. Ele soube há um ano sobre mim, mas preferiu se calar em respeito a decisão de minha mãe, porém acredito seriamente que o desejo dele era continuar em silêncio. Ele não trabalhou durante um ano para que o momento certo chegasse e pudesse regressar tantos anos e me abraçar como se eu não tivesse crescido ainda. Voltei para a sala de aula, aguardei o intervalo e saí; encontrei-me com o Orientador e perguntei sobre minha mãe, mas ele me ignorou. Fui até a biblioteca e conversei com o Seu Escadas, ele me disse que minha mãe e o diretor haviam saído. Eu senti que tinha perdido minha mãe quando achei meu pai.
Em casa, joguei a mochila no chão e fiquei sentada no sofá aguardando a chegada dela, queria explicações. Meia hora foi o tempo que demorou para que ela abrisse a porta e se assustasse comigo sentada ainda de uniforme.
— Filha? — Ela entrava e retirava os sapatos de seus pés.
— A senhora achou tão fácil em me noticiar sobre meu pai? Eu ainda me sinto confusa em saber que o diretor é meu pai. Por que saiu sem me esperar?
— Perdoe-me, minha filha, mas não sabia que você sairia cedo e eu precisava conversar sobre você com seu pai.
— Na minha ausência de novo? Quando vai perder esse mau costume?
— Filha, meça suas palavras para falar comigo, não tem de exigir nada. Nós precisávamos conversar, eu sei que a assustamos. Por que não o abraçou?
— Porque eu não vi a alegria nos olhos dele em ter descoberto sobre minha existência.
— Querida, não é fácil para ele, assim como não é para você. Tente compreendê-lo.
— Eu esperava que meu pai fosse diferente.
—Você idealizou demais.
— Deve ter sido isso.
Minha mãe se levantou e veio até a mim, abraçou-me fortemente.
— Não quero voltar amanhã.
— Você precisa continuar a sua vida. Se não quiser se deparar com seu pai, eu conversarei com ele, você precisa de tempo para aceitá-lo.
— Eu preciso de explicações.
Minha mãe permaneceu calada. Mas ela não aparentava incômodo como antes, agora ela estava aliviada. Ela já tinha se libertado do segredo que a perturbava.




Capítulo Dois — Aceitação
Amanhecer era o que eu não desejava naquele momento.
Desci as escadas, e minha mãe me olhou de esguelha, e convidou-me para tomar café. O silêncio perdurou até eu reclamar do café amargo. Alguém batia à porta, e eu sabia que era o Orientador, não pelo horário, mas pelo costume de não tocar a campainha.
— Filha, não precisa ir hoje. — Ela segurava meu braço e dizia carinhosamente.
— Faltar hoje não resolverá o problema de amanhã, mãe.
— Mas estará mais forte para resolvê-lo. — Nós sorrimos e me despedi dela, decidi acompanhar o Orientador.
O dia foi tranquilo, não me deparei com o diretor. Fiquei mais tempo na escola conversando com o Seu Escadas, ele era o senhor mais simpático e contador de histórias que me prendia às suas palavras.
De volta para a casa, minha mãe lia o mesmo livro de receitas que outro dia deu início à nossa última conversa desagradável sobre meu pai desconhecido.
— Como foram as aulas? — ela perguntava sem deixar de olhar para o livro.
— Tudo bem. Eu não o vi — respondi e já fui subindo as escadas.
— Liona, espere! — ela se levantou e veio até a base da escada. — Eu sei que ainda é difícil para você, mas não entendo, de que maneira você idealizou seu pai?
— Imaginei um pai carinhoso, feliz por saber da notícia, com olhos cheios de lágrimas, realmente idealizei errado.
— Filha, seu pai ficou feliz, mas assim como você não conseguiu expressar seus sentimentos, ele também teve dificuldades.
— Mas ele soube há um ano, por que tanta dificuldade assim? Pensei que estivesse preparado, por que esperaram tanto?
— Porque não estávamos preparados. — Ela disse com ênfase.
— Então, aquela foi a maneira mais preparada de dizer a verdade?
— Eu sei que erramos...
— Dê-me tempo, é disso que eu preciso. — Eu sorri e continuei subindo as escadas.
Anne, minha mãe, acreditava que havia encontrado a solução das minhas dúvidas e consequentes angústias; eu também pensava assim, mas descobrir a real identidade do meu pai me assustou, talvez, porque a realidade é mais complicada do que nossas vontades construídas por pensamentos ansiados por verdades. Ele se encontrava próximo de mim, isso era o pior, a pessoa estar perto, mas se comportar como se estivesse longe. A omissão não era imperdoável, mas a postura de desinteresse era.


Capítulo Três – Próxima página, novo dia
Assim como o livro, assim como a vida; cada página, cada dia.
Entrei na sala de aula e em menos de dez minutos, apareceu o diretor dizendo que o professor não compareceria por conta de exames médicos.
Fomos dispensados mais cedo, portanto me retirei da sala de aula. Passei pela biblioteca e vi Seu Escadas lendo um livro, que acabei de imediato me interessando.
— Oi, Seu Escadas.
— Oi, menina.
— Eu conheci meu pai pela primeira vez.
— Sério?
— E o pior é que foi aqui na escola.
— Ele veio até aqui?
— O senhor não sabe mesmo. O meu pai é o diretor.
— O diretor? — ele manejou a cadeira de rodas e foi até a estante próxima pegar um livro.
— Eu nunca tinha conhecido meu pai, mas minha mãe me revelou na presença dele.
O Seu Escadas parecia ter se incomodado com a minha revelação e se afastou, nem sequer se despediu, estava atordoado. Minha mãe e o diretor apareceram na minha frente e eu não sabia como reagir, estava perdida, os dois sorriam para mim.
— Filha, trouxe torta de morango para o seu pai, vamos embora? Eu fiz para nós também.
— Por que vocês não degustam a torta junto comigo? — ele sorria para nós, mas é claro que minha resposta seria “não”.
— Oh, querido. Nossa filha ainda está digerindo sobre você ser pai dela, não queremos incomodá-lo.
— Eu descobri que tenho uma família linda, vocês não me incomodam, muito pelo contrário. Dê-me um abraço, filha. — Acredito que minha mãe falou para que ele se comportasse daquela maneira, não era uma conduta verdadeira.
— Acho que o melhor seria vocês degustarem a torta sem mim, até mais.
Eu saí e nenhum deles hesitar em me impedir. Com certeza, ele disse aquilo como um ator que decora seu texto, a diferença é que um ator tem emoção em cada palavra dita.


Meus devaneios se prenderam à inesperada reação de Seu Escadas. No dia seguinte, eu falaria com ele e questionaria, entretanto, ele deve ter passado mal, não havia ligação entre sua fuga com a descoberta da identidade de meu pai. Sentei-me no antepenúltimo degrau da escada, cruzei os braços e esperei a chegada de minha mãe.
A campainha tocou quando eu já estava cochilando encostada com a cabeça na parede, levantei-me e olhei antes de abrir a porta, surpreendi quando vi Seu Escadas.
— Seu Escadas?
— Oi, menina.
— Entre, por favor.
Seu Escadas entrou com sua cadeira de rodas muito velha, enferrujada e emperrada. Não tinha ideia do que ele queria me falar.
— Deseja beber água, café ou suco? — ofereci a Seu Escadas, que olhava atentamente cada detalhe da casa.
— Não, obrigado. Menina, peço desculpas por não ter me despedido em nossa última conversa, mas a sua revelação foi bastante impactante para mim. — Ele limpava seus óculos velhos.
— O que eu disse?
— Sobre a descoberta da identidade de seu pai.
— O diretor Nemestrino.
— O diretor não é seu pai. — Ele falou com tanta certeza.
— Minha mãe e ele confirmaram. Por que o senhor tem tanta certeza?
— Porque sou seu avô.
Aquilo me desmoronou, eu não queria acreditar no que estava ouvindo, seria terrível demais descobrir que mais pessoas estavam envolvidas na descoberta da identidade de meu pai, justamente, pessoas conhecidas.
— O senhor é pai de meu pai?
— Exatamente. Sou pai de seu pai, mas não do diretor.
— Como assim? Meu pai é o diretor Nemestrino.
— Eu não sei por que disseram isso a você, mas não é verdade. Eu estive procurando-a há mais de dez anos. Desde que entrei naquela escola sempre foi o meu intuito.
Não queria alimentar as esperanças dele, fazendo-o acreditar que havia encontrado sua neta.
— Não tem motivos para eu mentir, não perderia meu tempo vindo até aqui.
Eu silenciei para ouvir mais asneiras daquele velho que dizia ser meu avô.
— Por que tem tanta certeza de que sou sua neta?
— Porque pessoas me contaram.
— Que pessoas?
— Não posso dizer, você não os conhece.
— Eu sei que não conheço, aliás, não conheço ninguém, mas cadê a coerência no seu discurso, como fará eu acreditar em você?
Seu Escadas desistiu de tentar me convencer, portanto fez menção de se retirar e eu ofereci ajuda, mas ele se negou; sua feição estava decepcionada com a minha descrença, mas eu não iria me explicar, e ele não saberia me compreender. Abri a porta para ele e não houve uma despedida educada.
No sofá, eu fiquei aguardando a chegada de minha mãe, não comentaria sobre a visita de Seu Escadas, preferi poupá-lo de ter de se explicar com ela.
Assim que ela chegou, perguntou-me o motivo de eu estar parada na sala, sem nada para fazer, depois completou com a seguinte frase:
— Filha, eu quero estar mais próxima de você e seu pai também. — Ela sorriu, e meu sorriso foi recíproco, contudo não foi verdadeiro.
— Eu prefiro ficar mais distante de vocês até que eu me acostume com a ideia.
— O tempo é curto para ficar adiando, minha filha.
— A senhora tem razão, dê-me alguns dias, por favor.
— Se não quiser ir à escola amanhã, não tem problema.
— Por que não?
— Eu quero que você fique bem.
— Já conversamos sobre isso, mamãe. Não faltei no dia mais difícil, não será amanhã.
— Então, tente tratar melhor seu pai. Dê uma chance a ele. — Ela pedia, ou melhor, insistia e eu tentaria.
Eu me levantei do sofá, segui meus passos com a cabeça baixa, pus o pé esquerdo no primeiro degrau e depois o outro, então peguei impulso e quase subi as escadas correndo.


       Capítulo Quatro — A verdadeira descoberta
        Pensamentos tomaram conta do meu dia.
Fui despertada pela cantoria dos pássaros, pulei da cama, arrumei-me rapidamente para chegar à escola mais cedo, desci as escadas, encontrei minha mãe tomando café na cozinha, segunda vez que ela me chamava para lhe fazer companhia; estava tranquila soprando o café em sua pequena xícara. Sentei-me à mesa. Um copo de suco de laranja, torradas com geleia de ameixa. Alguém batia à porta, hora de sair.
— Tchau, mãe — despedi-me, colocando mais torradas na vasilha.
— Leve quantos quiser, filha. Ofereça ao Orientador.
— Está bem.
Quando abri a porta de minha casa, o Orientador já me aguardava, eu o cumprimentei, mas ele me ignorou, como sempre.
— Quer torradas? — Eu mostrei a vasilha aberta, ele olhou e virou o rosto, ignorando-me.
— Pegue-as. Já tomou café?
Ele negou com a cabeça e aceitou, entreguei o guardanapo, e ele pegou duas torradas. Agradecer, não agradeceu.
Chegamos e vi Seu Escadas com os olhos lacrimejados; respeitei seu momento, preferi não indagar sobre o que o afligia, pois ele prosseguiria com a estranha ideia de ser meu avô. Mas aproveitei para oferecer as torradas com geleia.
No corredor, pensei em passar na sala do diretor, então fingi entrar no banheiro e quando o Orientador foi em direção à sala, aproveitei para correr até chegar diante da sala da diretoria. Ouvi ele falando com alguém e quando ele mencionou o nome de minha mãe, grudei o ouvido direito na porta: "Querida, eu já falei para aquele velho que ele não tinha o direito de dizer mentiras para a menina. Eu juro que ela não saberá de nada, eu serei o pai dela. ” — Ele continuava.
Eu saí correndo em direção à entrada principal, olhei para Seu Escadas; ele tentava pegar um livro caído no chão.
— Vô?! — gritei por ele.
— Liona? — Ele deixou de se preocupar com o livro e me fitou com interesse de me ouvir.
— O senhor é meu avô! — Eu não consegui segurar as lágrimas, independentemente de toda a história complicada, eu tinha descoberto a verdade. Abracei-o fortemente, quase o derrubando da cadeira.
— Agora posso morrer em paz. — Ele sorria e chorava ao mesmo tempo emocionado.
— Não!!! — Eu segurei seu rosto entre minhas mãos e implorei para que ele vivesse.
— Oh, minha neta, foi apenas um modo de falar. Esperei tanto por esse dia que não posso morrer agora.
Eu fui pegar um copo de água para o Seu Escadas, ou melhor, para meu avô. Ele bebeu devagar e começou a me contar tudo.
— Quando você me falou de Nemestrino, fui questioná-lo e discutimos. Ele disse a verdade para mim. Ele não é seu pai.
— Por que seu filho me abandonou?
— Ele nunca soube de você. Meu filho teve de se afastar de mim, pois descobriu que tinha um filho. Ninguém sabia que você existia.
Nossa conversa foi interrompida pelo diretor, que apareceu ao lado de minha mãe, que me puxou pelo braço.
— Ele é meu avô!
— Que eu saiba Seu Escadas não é meu pai e nem do diretor.
— Mas é do meu pai.
— Seu pai sou eu. — Nemestrino vociferava.
— Meu pai não é você! Eu ouvi a conversa entre vocês. Não adianta mentir!!!
Minha mãe e diretor Nemestrino se entreolharam e assumiram a mentira, o que me aliviou.
— O diretor não pode ser seu pai, filha? — Minha mãe insistia para que eu parasse de ser teimosa, mas nada adiantaria.
— Pare de me tratar como se eu fosse criança.
— Desculpa filha, mas eu não sei onde está seu pai. — Finalmente, ela foi sincera comigo.
— Ele a abandonou — disse Nemestrino ofegando raivosamente.
— Ele estava atrás do filho! Jamais o impediria! Ele não abandonou ninguém, Nemestrino! — refutou minha mãe. — Admira-me ver você falando isso, tratavam-se como amigos, ou melhor, irmãos.
— Perdoe-me, Liona. — Nemestrino se desculpava.
Minha mãe não disse nada, apenas ignorou as lágrimas de Nemestrino e convidou Seu Escadas para sua casa. Eu ajudei a empurrar a cadeira de rodas dele durante o caminho, mas ele não precisava, era independente e hábil.
— Anne, eu procurei pela minha neta por tanto tempo.
— E como sabia que tinha uma neta?
— Nemestrino deixou escapar quando eu comecei a trabalhar na escola e ele nem sabia que eu era pai de Joseph.
Ela respirou profundamente, despejava o café em uma das xícaras.
— Ele conheceu o filho? — perguntou minha mãe.
— Sim. Antes de eu saber que vocês eram namorados, eu tive contato com Joseph, mas foi breve. Vou atrás dele mais do que nunca.
— Eu quero conhecer meu pai.
— Eu soube que Nemestrino esteve em contato com meu filho, mas ele diz que sabe menos do que eu.
— O quê?! — Minha mãe se assustou.


Capítulo Cinco – Dilema
Novas descobertas, novos passos.
No dia seguinte, fui até à escola, minha mãe tentou me impedir, mas eu estava decidida e não faltaria naquele dia, encararia o diretor. Engraçado, eu querer falar com ele quando descubro que ele não é meu pai. O Orientador me impediu de bater à porta da diretoria.
— Você tem aula, não pode ficar aqui.
— Eu preciso conversar com o diretor, é urgente.
— Nesta escola existem regras, você não pode ficar aqui.
— Não saio, vou espernear se for preciso, mas não saio enquanto não falar com o DIIIRETORRR!
Rapidamente, a porta se abriu e o diretor saiu, estava descabelado, com certeza tinha dormido na escola, sua gravata estava torta, ele permitiu minha entrada.
— Sente-se — Sua mesa estava bagunçada e vários lenços de papel inundava a lixeira.
— Obrigada.
— Por que está aqui? Você não quis olhar na minha cara quando disse que era seu pai, agora você quer falar comigo?
— Eu vim pedir ajuda.
— Quem precisa de ajuda sou eu.
— Por isso estou aqui. Vim para ajudar o senhor, mas terá de me ajudar também.
— Fale logo.
— Eu quero ir atrás de meu pai.
— Como?
— Você sabe onde está meu pai, não sabe?
— Por que eu saberia?
— Algo me diz. E acabei descobrindo que você é capaz de tudo para conquistar minha mãe.
— Eu não vou ajudá-la!!!
— Não entende que é uma atitude de corrigir o que você fez? Se você me ajudar, eu o ajudarei a conquistar minha mãe. Meu pai, talvez, tenha outra família. A única coisa que quero é conhecer meu pai e não que ele volte.
Ele perambulou por algum tempo e depois respirou fundo e respondeu:
— Se sua mãe souber onde está seu pai, ela irá atrás dele.
— Ela não quer vê-lo — tranquilizei-o.
— Ainda não é suficiente o que eu sei.
— Não me importo. O que você souber, será significado para mim.
— Somente amanhã. Você poderá comparecer na minha sala novamente.
Retirei-me de sua sala e encontrei Orientador com sua amargura em seu rosto pesado que o atraía até o chão.   

Esperei pelo dia seguinte e compareci à sua sala como havíamos combinado. Ele relutava em me ajudar, porém a minha insistência foi mais resistente. Ele me levou a um laboratório. Por fora, o local se localizava num lugar baldio, suas paredes, com os tijolos à mostra, mostrava uma construção mal-acabada, o portão se abriu quando o carro opala vermelho de Nemestrino se aproximou. Os guardas com suas vestimentas pretas e vermelhas nos cercaram de cada lado, formando duas fileiras. Um homem com jaleco branco cumprimentou Nemestrino com aperto de mãos enquanto ele saía do carro; eu permaneci sentada. Nemestino chamou pelo meu nome; saí do carro atenta àquelas pessoas estranhas.
Por dentro, as paredes brancas tinham pintura recente, uma boa ventilação através de janelas de correr, tudo deslumbrante, a mesa de centro retangular sobre o qual pousava um vaso de vidro contendo flores vermelhas artificiais. Sentei-me em um dos sofás branco.
— Nunca mais apareceu aqui, Nemestrino. — O homem oferecia alguma bebida alcoólica em um copo de cristal da cor vermelha.
— Eu não deveria estar aqui, mas ela insistiu. — Ele apontava para mim e eu fiquei envergonhada disfarçando o nervosismo.
— Quem é ela? – O homem perguntava ao Nemetrino, mas eu preferia que a pergunta se direcionasse a mim diretamente.
— Filha de Joseph.
O homem balançou a cabeça negativamente e ofereceu mais bebida ao Nemestrino. Eu fiquei calada.
Nemestrino esvaziou num gole tempestuoso com as gotas de bebida escorrendo pelos dois cantos da boca e se encontrando na ponta do queixo. Levaram-me para o próprio laboratório. A neurocientista me conduziu a um dos leitos vazios e colocou um capacete de eletrodos em minha cabeça, em seguida, óculos de realidade virtual.







Capítulo Seis – Novo Mundo
  Rubi
Dentro de algo desconhecido, de uma cor avermelhada, levantei-me lentamente ainda sentindo tontura, mas que desvanecia aos poucos, vi que eu estava dentro de um local fechado que parecia ser cristalino. Peguei a pedra rubi e comparei com o recinto em que eu me encontrava e era como se eu estivesse dentro da própria pedra. Procurei saída naquele lugar e havia um encaixe, então peguei a pedra rubi ainda pendendo em meu pescoço e a encaixei. Então, a imensa pedra se moveu, mostrando a saída. Eu pude ver uma paisagem rica de árvores frutíferas, solo coberto pela manta verde, céu aberto com algumas nuvens dispersas, o silêncio cortado pelos cantos dos pássaros pulando os galinhos de enormes árvores. Eu, próxima de uma, sentei-me debaixo da goiabeira. Aproveitei a sombra que refrescava e diminuía a intensidade do sol sobre a pele. Um garoto veio ao meu encontro, ele aparentava ter uns dez anos e usava uma roupa diferente, vermelha com bordas douradas e também usava uma capa.
— Quem é você? — ele perguntou.
— Meu nome é Liona, eu vim atrás de meu pai, preciso de ajuda. — Eu falei pelo impulso, o que veio à cabeça.
— Me acompanhe, eu a levarei até a central.
Segui o menino, descemos a ladeira, ele escorregava sem se incomodar em sujar aquela roupa sofisticada. Um traje que normalmente estaria em um museu ou seria usada como fantasia. Eu desci vagarosamente, temi escorregar e me machucar, andamos sob aquele sol ardente até alcançar o castelo exuberante e vivaz diante de meus olhos. O imenso portão brilhante com inúmeras gemas vermelhas e douradas incrustadas. Reconheci que eram rubis e turmalinas amarelas. Em cada lado, havia uma sentinela, possuíam capacetes com pedras brilhantes, em sua maioria reinava rubis vermelhas. Seus trajes semelhantes às do menino, mas eram de um vermelho mais escuro. Em suas costas projetavam asas angelicais douradas. Logo permitiram minha passagem para dentro do imenso estonteante castelo. Uma escadaria nos aguardava com seus degraus vermelhos cristalinos; após pisar o último degrau até o topo, enxergamos um longo tapete vermelho, percorremos o corredor até que o garoto parou diante de uma porta em que uma garota guardava; ela abriu-a com duas leves batidas vindas de um bastão vermelho. A abertura da porta dupla revelou uma senhora de cabelos amarrados no topo da cabeça numa mistura de loiros com grisalhos, algumas madeixas escorriam e adornavam seu rosto arredondado. Seu penteado volumoso dava um ar de autoridade e poder, com certeza compensava sua altura. Ela sorria e se abanava com um leque. Sentada à mesa de vidro, chamava-me com os olhos e o sorriso acolhedor.
— Meu nome é Cleura e o seu? O que deseja menina? — gesticulava rápido, mas tinha uma boa dicção e muito simpática.
— Eu gostaria de conhecer meu pai. Ele está preso aqui e eu quero muito conhecê-lo.
— Seu pai está preso, porque cometeu algo contra nossas normas, mas eu não sei o que foi, deve ter sido nas extremidades de nossa dimensão, preciso contatar um de nossos guardiões para obter informações — disse Cleura, acionando um botão vermelho virtual em sua mesa transparente. De repente na mesa, um monitor ergueu e ficou entre nós duas.
—  Quem é seu pai, menina? — ela perguntou.
— Joseph.
— Quero a informação de um prisioneiro chamado Joseph, por favor.
— Sim senhora.
E então, o monitor desligou.
— Tonis a levará para seu aposento. — Ela se referia ao garoto que tinha me ajudado a chegar ali.
— Obrigada.
Eu fiz uma breve reverência, não tinha conhecimento de como me comportar diante daquelas pessoas estranhas que relembravam uma sociedade situada na idade moderna e ao mesmo tempo no futuro com sua tecnologia avançada.
Acompanhei Tonis até o terceiro andar, os quartos eram distantes um do outro, porque deveriam ser enormes, possibilitando vários cômodos dentro de um quarto daqueles. Tonis saltitava na frente enquanto eu me atentava à parede ostentada por pedras preciosas.
Subimos as escadas largas e espessas, cada andar tinha doze degraus, o que me deixava exausta; o garoto era rápido e incansável, tudo parecia ser feito de pedra rubi. Finalmente chegamos ao andar em que eu me hospedaria naquela noite.
— Aqui será seu aposento, sinta-se como se estivesse em sua dimensão. — O menino disse.
— Dimensão? — Antes que ele pudesse esclarecer, a porta já foi fechada.
Na escrivaninha, eu vi uma folha branca com uma lista de ordens.
“Normas do visitante:
1. Vista uma de nossas roupas
2. O primeiro sinal, após a entrada no quarto, deve-se ir até a varanda e aguardar a chegada do Dirigente.
3. O segundo sinal, deve-se apresentar ao dirigente.
4. O terceiro sinal, deve-se descer para a refeição vespertina. ”
Recebi um vestido rosado com rubis acopladas na barra. O primeiro sinal tocou, e eu aguardei a chegada do Dirigente. Apoiei-me no parapeito da varanda balaustrada. No céu, avistei uma aeronave vermelha se aproximando junto com outras aeronaves menores, pássaros mecânicos.
A aeronave suspensa, mais ou menos a um metro de distância; a porta aberta e o dirigente sentado com as pernas cruzadas, seus cabelos eram pretos e longos, amarrados pela metade, olhos puxados, com feições asiáticas, trajado com uma capa preta adornada de diversas gemas vermelhas.
— Seu nome... — Ele nem se levantou, olhou para mim e esperava que eu respondesse.
— Meu nome é Liona, estou aqui para conhecer meu pai.
— Seja bem-vinda, mas dependendo da situação dele, não será liberado.
A porta da aeronave fechou-se e ela voou sobre o castelo.
O terceiro sinal foi dado. Tonis estava do outro lado da porta, pedindo a minha saída.
— Oi.
— Oi. Eu a conduzirei até a sala de jantar.
— Sério?
— Por que não? Você não se alimenta?
— Sim.
— Você está bonita.
— Obrigada.
Fomos até a sala de jantar, outro lugar fascinante cercado de guardiões.
Tonis anunciou minha entrada, deparamos com a imensa mesa comprida com tamanha fartura e louças de cristais lindíssimas. Havia muitas pessoas e todos me olhavam, e é claro que minha vergonha aumentou, o dirigente sorriu e eu me sentei encabulada.
Tonis se sentou ao meu lado. O dirigente ergueu a taça de vinho brindando à vida e paz.
Eu olhei para a mesa e vi aqueles talheres ao lado do meu prato, perdida, não saberia me comportar naquele jantar, não sabia nem por onde começar.
— Bem, uma ótima refeição hoje e sempre. — Ele autorizou o início do jantar, mas eu estava vermelha de vergonha e preocupada.
— Oba!!! — Tonis esbravejava alegria diante de tanta comida.
Decidi ser a última a iniciar a refeição, assim eu poderia ver como os outros comiam para eu poder segui-los sem constrangê-los.
Tonis foi o primeiro a arrancar a coxa do frango assado com a mão e morder um pedaço sem cerimônia; com uma colher de prata, pegou um pouco de molho de tomate e jogou sobre o pedaço de carne e colocou na boca, deixando-a toda suja, não poupou nem a roupa, eu fiquei espantada e pensei: "Esse moleque não sabe usar um guardanapo?", mas logo corrigi: “Ele é criança, com certeza é o único que não se importa com etiqueta”, mas quando vi o dirigente arrancar a outra coxa do frango com a mão e fazer a mesma coisa que Tonis, eu fiquei mais surpresa, ele enchia a taça de vinho até o topo e mastigava de boca aberta. Levantei-me disfarçadamente; de repente uma moça jogou a bandeja de molho de tomate sobre a outra, eu fiquei paralisada e chocada. Uma mesa de nobreza, de repente, virou um chiqueiro.
Mas não durou por muito tempo, a senhora Cleura entrou na sala de jantar.
— Basta! — ela gritou e todos pararam a bagunça, paralisaram como estátuas.
— Todos os porcos são mais limpos e educados do que vocês!
— Mãe, perdoe-nos. — Naquele instante, acabei de descobrir que o dirigente é filho da senhora Cleura.
— Temos uma convidada, o que ela está pensando de nós? — todos se viraram para mim, que já estava quase alcançando a saída e meu sorriso forçado era para disfarçar o que eu estava tentando fazer: fugir!
— Que vocês são divertidos. — Não encontrei resposta melhor.
— Viu, mãe? Ela gostou de nós! — O dirigente riu.
E todos voltaram à bagunça. Cleura me puxou pelo braço com delicadeza.
— Preciso falar com você. — Ela sussurrou e eu a segui até o jardim detrás do palácio.
— Infelizmente, o que eu tenho para lhe dizer não é agradável.
— Sobre meu pai?
— Sim. Seu pai não está mais aqui, ele foi levado para uma das dimensões desativadas.
— O que houve?
— Ele brigou com um de nossos guerreiros e ele foi jogado para uma das dimensões desativadas sem meu consentimento, eu prometo que punirei um dos meus pela sua má conduta. Lamento, mas sair de uma dimensão desativada é quase impossível.
— Não precisa puni-lo, talvez, os dois tiveram culpa.
Ao saber que meu pai não está mais na mesma dimensão que eu, fez-me entrar em desespero, mas Cleura me confortou dizendo que tentaria me ajudar de alguma forma.
Eu fui assistir aos treinamentos naquela noite. Tonis estava no meio da turma praticando espada. Cleura parou ao meu lado.
— Eu tenho certeza de que a dimensão Diamante ajudará, aliás, você é um deles. Seu pai pertence à dimensão Diamante.
— Posso ir embora hoje?
— Gostaríamos que ficasse mais tempo conosco, mas entendo a sua aflição. Durma esta noite aqui, eu insisto.
Cleura e eu conversamos muito naquela noite, e ela me falou sobre os que habitavam ali, principalmente sobre quem não estava mais presente, mas o qual eu conhecia.
— Como Tonis lidou com o desprezo de seu pai? — Cleura falou para mim ontem à noite que o menino era filho de Nemestrino e que mesmo ele sabendo, não se esforçou para visitar seu filho.
— Ele tenta não lidar com a situação.
— Ele parece ser muito maduro pela idade dele.
— Sim e aqui ele tem uma família.
— E a mãe dele?
— É a própria treinadora. — Cleura mostrou a mãe de Tonis, a mulher que treinava as crianças e as transformavam em guardiãs. Ela manuseava a espada com desenvoltura.
— Ela jurou que se encontrá-lo, não terá piedade.
— Ele gosta de minha mãe.
— Não deixe ela saber disso.
O dirigente também se juntou a nós e sorridente como sempre, assistiu ao treinamento ao nosso lado.
— O que achou de nossa terra, senhorita Liona?
— Eu estou gostando muito daqui, sinto-me à vontade.
— Liona é filha de Joseph e pertence à dimensão Diamante, Almáquio. — Cleura comentou para seu filho.
— Espero que o ambiente do Diamante também seja assim.
— Por que não seria?
— Porque somos a única dimensão iluminada.
— E o que isso quer dizer? O que significa?
O dirigente parecia ter se ofendido pelo fato de eu não o ter compreendido ou percebido com o que eu havia dito e se levantou, o sorriso que carregava desapareceu em instantes.
— Eu disse algo errado?
— O que ele quis dizer é que somos a única dimensão da paz, faz tempo que não participamos de uma guerra.
— Guerra? — eu fiquei estupefata com essa informação, não esperava ouvir essa palavra num lugar tão calmo, mas querendo ou não, aquele lugar demonstrava traços bélicos. Ela se despediu de mim com um abraço que eu sentiria saudades quando fosse embora.



Capítulo Sete – Clones
Lugar desconhecido, mas familiar.
Agora as paredes cristalinas estavam incolores, eu me encontrava no lugar parecido ao anterior, então, seguindo a lógica de antes, com certeza estava na dimensão Diamante. Quando encaixei a pedra, foi aberta uma passagem, vi um menino, mas era exatamente o menino que eu tinha visto antes, assustei-me, pois pensei naquele momento que a viagem não tinha dado certo, porém o traje do menino era prateado.
— Oi, Tonis. — Eu disse, aguardando que ele me reconhecesse. Não sabia que ele também estaria na dimensão Diamante.
Ele se aproximou, mas seu semblante não era doce como antes, ele estava raivoso.
— Uma invasora!!!! — Ele gritava e se virava para trás como se estivesse chamando alguém, de repente, surgiu inúmeros cavaleiros erguendo espadas, entrei em desespero e saí correndo; aquele lugar era exatamente igual ao da dimensão Rubi, mas a hospitalidade não existia ali. Prostrada de joelho na grama, ergui a pedra diamante que Cleura havia me dado, pertencia ao meu pai.
Antes de sair da dimensão Rubi, a senhora Cleura pediu a pedra rubi de volta para que o Nemestrino não tivesse nenhuma forma de retornar, mas eu não entreguei.
— Sou daqui! Diamante! Diamante! Diamante!
Todos pararam e quando viram que eu possuía a pedra da dimensão, logo estiveram dispostos a me ouvir, eu disse que precisava encontrar meu pai e, quando eu disse seu nome, um dos cavaleiros desceu de seu cavalo e se aproximou, oferecendo sua mão para que eu me levantasse do chão.
— Seu pai é o Joseph? — perguntou o cavaleiro que me ajudava.
— Sim. Eu estive na dimensão Rubi e eles me transferiram para cá. Meu pai está perdido em uma das dimensões desativadas, por isso estou aqui para pedir ajuda.
— Levaremos você até a Central. — Eu agradeci e entrei numa carruagem que eles traziam. O menino igual ao Tonis foi ao meu lado, sua cara emburrada assustava-me, ele não era simpático e amigável como Tonis.
Chegamos à Central, saí da carruagem e o mesmo cavaleiro me conduziu até a entrada, atravessamos o portão, eu o segui, subimos alguns degraus. Enfim, encontramos um guardião que carregava o bastão. Duas batidas leves à porta.
Tudo era tom de branco com diamantes incolores contornando todos os cômodos do enorme castelo. A porta se abriu e a dirigente era idêntica à Cleura. Não sei, mas, talvez, fossem irmãs-gêmeas. Ela se levantou abruptamente.
— Quem é você, garota? — O que a diferenciava de Cleura era o vestido e a personalidade. Aquela mulher na minha frente não estava feliz com minha presença.
— Meu nome é Liona e estou aqui para pedir ajuda. Sou descendente da dimensão Diamante e filha de Joseph, infelizmente, ele está em uma das dimensões desativadas e preciso da colaboração de vocês. — Eu falei quase que ininterruptamente, eu não queria enrolar sobre o assunto, eu estava impaciente com aquilo tudo.
— Seu pai ainda está vivo? — Ela não parecia satisfeita em saber da possibilidade de resgatar um de seus guerreiros.
— Eu espero que sim. Eu nunca conheci meu pai e vim atrás dele, fui acolhida pela dimensão Rubi, mas eles prenderam-no. — Eu aproximei mais daquela mulher que mostrava uma expressão de desprezo de tudo que eu falava.
— Se seu pai está em uma das dimensões desativadas, não poderei fazer nada, ninguém sai de lá. — Ela sentou-se em sua cadeira dourada e voltou a assinar alguns papéis com sua caneta tinteiro. — Lamento, não poderei fazer nada. — Ela recusou em me ajudar.
— Mas a dimensão Rubi disse que vocês poderiam ajudar meu pai. — Eu não sairia dali sem ter apoio.
— Para seu pai sair dessa dimensão, você precisaria da autorização de todas as outras e, para começar, eu jamais assinaria essa autorização.
— Por quê?
— Retire-se de minha sala. Você será guiada por Liam até seu aposento e vista uma de nossas roupas e não esse vestido que pertence a outro lugar.
Liam, o cavaleiro que havia me trazido até a central, veio até mim e aconselhou que eu acatasse as ordens daquela mulher.
— Se não encontrarei ajuda pelo meu pai, não tem o porquê eu estar aqui.
— Como? — As sobrancelhas daquela senhora se juntaram e arquearam.
— Eu quero voltar para a casa.
— Voltar para sua casa é a mesma possibilidade de seu pai ser resgatado.
Liam aconselhou ter paciência, garantiu não faltar nada para mim e seria meu amigo no que eu necessitasse. Ele elogiou meu pai e me levou ao quarto onde eu ficaria. Ele me deixou em frente à porta e me reconfortou com palavras. Entrei no quarto, suspirando de raiva. A rispidez daquela mulher me derrubou de tal maneira que fiquei sem forças de negar em ficar ali e obedecer às regras. As características daquele ambiente eram semelhantes ao da dimensão Rubi, porém a mobília era branca. Uma exuberante cama, lençóis com cheiro amadeirado e criado-mudo com pedras de diamante acopladas.
Sentada na cama, com as mãos unidas sobre meu colo, fiquei olhando para o assoalho e passadas algumas horas, eu fiquei naquela posição até que alguém apareceu para me chamar.
— Boa noite. Eu vim buscá-la para o jantar. — Liam era agradável e desde o começo foi gentil comigo, eu fiquei desconcertada em ter de negar aquele convite, mas eu não queria jantar, a rudeza daquela mulher me incomodava.
— Não estou com fome, muito obrigada — agradeci e esperei um pouco para fechar a porta, mas ele não saiu e insistiu para que eu jantasse.
— É uma das regras que devemos obedecer, senhorita. Seu irmão estará presente, não quer conhecê-lo? — eu tinha esquecido que tinha um irmão.
Eu fui acompanhada de Liam até a sala de jantar, onde todos estavam reunidos. Em voz baixa, Liam comunicou quem dali era meu irmão, seu nome era Austo, ele não se parecia muito comigo, ele lembrava o nosso avô, Seu Escadas. Seus cabelos eram cacheados e sua pele era mais escura igual ao do nosso avô.
— Então, você é minha irmã? — ele perguntava com deboche ao lado de sua esposa.
— Acho que sim.
Sua esposa veio até mim e me abraçou, ofereceu-me um lugar próximo deles.
O jantar foi diferente do anterior na dimensão Rubi, todos em silêncio, exceto algumas palavras sobre a próxima guerra contra um território, dito por eles que era inimigo; não me senti feliz naquele lugar, preferia estar na dimensão Rubi. Após o jantar, vi Liam conversando com outro cavaleiro, ele olhou de soslaio para mim, mas virou-se rapidamente. Voltei ao meu aposento, subi escadas, muitos quadros antigos de fotografias amareladas de pessoas com uma postura de imponência. Acredito que estavam mortas e, com certeza, eram ancestrais daquele povo.
Deitei de lado na cama, fiquei olhando a lua cheia no alto através da janela. Lágrimas escorreram dos cantos de meus olhos. Os meus soluços quebraram o silêncio daquela noite que trazia lembranças de minha casa.


Durante a manhã, acordei com a cabeça latejando devido à crise de choro. Liam batia à porta, fui atendê-lo.
Liam chamou por mim.
— Bom dia, Liona. — Ele me cumprimentou.
— Oi, Liam. — Eu disse em seguida.
— Vim chamá-la para a refeição matinal.
— Liam, será que posso ir até a central conversar com a senhora Euclediana?
— Claro, mas antes precisa se apresentar à refeição, é norma.
— Está bem.
Liam não me questionou o conteúdo, do qual eu falaria com a senhora Euclediana, mas nele, percebi o ar de curiosidade. Andamos lado a lado até a sala de jantar, cumprimentei todos com um sorriso simulado, todos estavam mal-humorados, mas bem trajados, ostentando suas joias com diversas gemas. Quando Euclediana entrou, todos se levantaram educadamente em respeito à dirigente. Um cavaleiro mascarado chamou Austo, não disse o motivo, apenas deu uma ordem de seu comparecimento após a refeição matinal.
Euclediana olhou para ele com uma tensão em seu olhar e disse:
— Austo, você sabe que pode retroceder quando quiser.
— Ao contrário de meu pai, não farei isso, senhora.
— Não faça isso comigo, Austo. — Sua esposa apertava sua mão em tom de desespero.
Após a refeição, aproveitei para pedir licença a Euclediana, queria muito conversar com ela.
— Por favor, saiam todos, Liona quer conversar comigo. — Eu pensei que ela iria para a Central. De repente, só estava ela e eu sozinhas naquele imenso lugar.
— Então, diga. — Seu tom enfraqueceria minhas palavras.
— Eu queria pedir ajuda para retornar à dimensão Rubi.
— Mas você é nossa descendente, eu não fui clara com você?
— Minha vontade é voltar para casa, mas a senhora mesma me negou, então eu quero voltar para a dimensão Rubi.
— Não é permitido. Cada descendente tem de estar em seu devido lugar.
— Eu carrego comigo a pedra rubi, como você tem certeza que eu não menti? Se eu estou pedindo para voltar à Rubi, é porque sou de lá e não daqui.
— E você acha que essa mentira não possui punição? Fingindo ser filha de nosso guerreiro? Isso é motivo suficiente para incitar uma guerra contra aquele povo pacífico. Por que uma descendente de Rubi mentiria? O que você planeja contra nós? Por mais que aquele povo aparenta ser mais superior que nós em força, não aceitaremos ser enganados, garota. Neste exato momento, nossos cavaleiros, nossos guardiões, nossos guerreiros estão em batalha contra a dimensão Safira, muitos deles não voltarão.
— Eu serei condescendente, mas se você for descendente da dimensão Rubi, eu não voltarei atrás. Seu pai está em uma das dimensões desativadas, essa foi uma punição dada pela dimensão Rubi e você me diz que preferia estar lá?
Eu fiquei sem respostas, não sabia o que dizer e o melhor era ficar em silêncio.
— Pode sair, Liona. Não temos o que conversar. Tudo é questão de costume, aprenda a se adaptar a este lugar.





Capítulo Oito – A verdadeira face
Segredos.
Fiquei no quarto, aguardando as coisas acontecerem. Não havia o que fazer, apenas receber ordens e cumpri-las. Desde que conversei com Euclediana, poucas horas se passaram até que Liam batesse à porta e comunicasse o próximo passo de sobreviver naquele lugar.
— Liona, deve comparecer à central agora, por favor.
O rosto de Liam guardava algo ruim, uma notícia que ia me ferir assim que eu soubesse.
A pessoa que podia ter solicitado minha presença seria Euclediana.
Fomos à Central, encontrei muitas pessoas e dentre elas, a esposa de Austo chorava desesperadamente. Não foi preciso dizer para inferir a morte dele durante a batalha.
Liam apertou minha mão e, disfarçadamente, sussurrou:
— Vamos sair, preciso lhe mostrar algo.
Nossa saída não pareceu ser notada, esposa de Austo era consolada por Euclediana.
— Tem uma pessoa que quer conhecê-la. — Antes que eu conseguisse perguntar, Liam foi mais rápido.
— Quem?
Uma mulher de vestido branco se aproximou de nós e disse:
— Eu quero conhecê-la, menina.
— Oi. Quem é a senhora? — perguntei, analisando aquela mulher desconhecida.
— Sou mãe de Austo.
— Eu sinto muito pelo que aconteceu.
— Não sinta, pois Austo está vivo. — Ela sussurrava com autoconfiança.
Eu fiquei em silêncio, aguardei para que aquela mulher explicasse melhor.
— Austo fingiu-se de morto para ir atrás de seu pai, assim como você, ele sempre esperou por ele. Ele não foi para a guerra. Com a ajuda de Liam, ele foi para as dimensões desativadas e fez isso agora. A esposa dele só está fazendo o papel para que ninguém desconfie. — Assim que ela terminou de falar, afastou-se cobrindo o rosto.
— Seu nome é Rosmira.



Capítulo Nove – A face
Não desacredite. Na dúvida, acredite mais.
Rosmira acreditava que eu era a pessoa certa para ajudar, mas eu não tenho familiaridade com aquele lugar. Não sabia em quais pessoas confiar, eu estava perdida naquela dimensão desconhecida. De volta ao meu quarto, aguardei Liam aparecer. Duas batidas rápidas era o sinal da sua chegada, mas também ele era o único que me visitava.
— Depois você será comunicada sobre os treinamentos. — Liam alertou parado à porta.
— Treinamentos? — Eu não compreendia.
— Você não quer ver seu pai?
— Quero, mas não sei por quanto tempo suportarei ficar aqui neste lugar.
— Você precisa ajudar Austo. — Liam constatava.
— O que significa treinamentos? Por que eu devo passar por isso?
— Todos precisam ser treinados, Liona. Você é novata e precisa ser treinada para ser guardiã; como filha de Joseph, você deve ser responsável por umas das faces que ele ocupava.
— Liam, eu não quero ficar aqui. É pior do que eu imaginava.
Ele segurou minhas mãos e me acalmou, e me acompanhou, como fazia todos os dias. Eu entrei naquele lugar com aquelas pessoas silenciosas, misteriosas e desconfortáveis, entretanto a presença de Liam compensava aquele ambiente desagradável. Após o jantar, fui até a sala central e encontrei outras pessoas, estavam aguardando a chamada da Euclediana.
Quando fomos chamados, entramos e nos deparamos com os guardiões, um deles falaram:
— Quem é a filha daquele traidor? — perguntou, olhando para nós, que estávamos em fileira diante deles. — Erga a mão!
— Ela ocupará a face, Bráulio — comunicou Cleura.
— Ela nem foi criada conosco, o único que tinha capacidade para ocupar a face era Austo.
— Ele morreu antes disso, então será Liona.
— Quem garante que ela é filha dele? Os dois não se parecem.
— Pare de ser ignorante, Bráulio! Ela deve parecer com a mãe. Ela será treinada para ocupar o devido lugar.
Euclediana o fitava como uma flecha.
— Eu não a treinarei! — E o homem saiu enfurecido da sala.
A dirigente ficou tão irritada com o comportamento dele que se levantou e socou a mesa gritando para que ele retornasse.
— Bráulio, volte aqui, seu malcriado!!! Não desobedeça sua mãe!!! — A partir daí descobri que ela era mãe dele. Euclediana subiu sobre a mesa e ajeitou seu vestido, ergueu uma espada brilhante e apontou para cada um de nós.
— Você! Você! Você! Você! — Ela tomou fôlego e voltou a falar cambaleando sobre a mesa. — Ocuparão a face de seus descendentes, mas antes serão treinados durante um tempo indeterminado.
Soube que teria que sair de meu atual aposento e seria transferida para uma torre do lado junto com os outros.
Descobri que faces eram partes que constituíam a maior pedra de Diamante em que uma delas era ocupada pelo meu pai. Eu começava a entender o que Liam dizia, meu pai tinha sido convocado para ser responsável por uma das faces, isso significava que todas as decisões políticas eram passadas por ele e os outros.




Capítulo Dez – A torre
Minha vida mudaria a partir dali.
Os meninos, Belquier e Clausto não fechavam a boca, conversam animadamente durante o caminho até eu suspirar de alívio quando paramos diante da grandiosidade da torre quadrangular. Passamos pelo portão, mas logo, ele foi fechado e as instruções claras: ninguém deverá sair da torre sem autorização. A menina, Tiziana, iniciou uma conversa comigo, ela tinha quatorze anos e seus cabelos trançados eram longos até a cintura. Ela perguntou sobre o meu pai e antes que eu pudesse abrir a boca, um dos garotos, Belquier, chamou-o de traidor. Tiziana não pensou duas vezes e me defendeu.
— Mas é assim que todos o chamam. — O garoto se explicou.
— Não deveria se basear apenas nos outros, garoto — rebati furiosamente.
— Peço desculpas se a magoei.
Subimos a escadaria em espiral, minhas pernas suplicavam descanso, após a longa caminhada e tantos degraus.
Cada um de nós escolheu um aposento para dormir e bem menor do que o anterior, afinal é uma torre. O meu quarto era aproximadamente um terço do outro. Nossas refeições eram trazidas por pessoas autorizadas a entrar.
Cochilei por alguns minutos, e a porta ressoou a chegada de alguém querendo falar comigo.
— Sou eu, Tiziana.
— Pode entrar.
— Vamos jogar? — ela carregava um tabuleiro de xadrez e, sem esperar meu consentimento, espalhou as peças sobre a cama.
— Xadrez? Eu nunca gostei de jogar...
— Vamos! Olha, vamos simular dois exércitos, o meu será o preto e o seu, branco. Você precisará proteger seu rei, é simples.
— Xadrez não é simples, assim como ficar neste lugar também não é.
—Vamos jogar para distração, vamos?
— Está bem. — Eu precisava me distrair e jogar xadrez requeria atenção e paciência.
Jogávamos xadrez, eu perdia, mas não desistia. Cada derrota fazia com que eu quisesse jogar mais. Em cada partida, eu me concentrava nas táticas utilizadas por Tiziana. O sono foi embora, mas antes de amanhecer, Tiziana foi para seu quarto dormir o resto da noite.
Surpreendida pela luz do sol que invadia o meu pequeno aposento, peguei o travesseiro e cobri meu rosto, o costume de acordar cedo acabou quando decidi jogar xadrez até tarde e eu não tinha acesso às horas. Para levantar da cama e vestir o uniforme demorou o tempo suficiente para perder os primeiros instantes do treinamento. Desci a longa escadaria espiral até chegar no térreo da torre.
Olhei para a mesa com um cesto repleto de frutas frescas, ao lado haviam pães e sucos. Alguns copos esvaziados, pois quem acordou na hora certa, teve tempo de se alimentar. Tiziana não me acordou, mas para me perturbar com seu tabuleiro de xadrez, ela não se deteve em aparecer.
— Liona, está atrasada. — Liam me repreendeu, mas ele não precisava repetir o que era nítido. Não estou acostumada com essa nova rotina, mas eu não poderia reclamar, tive a liberdade de sorrir e me desculpar, mas se o treinador de hoje fosse Bráulio, com certeza, a bronca seria maior e o constrangimento também.
— Desculpe-me, não acontecerá novamente. — Eu disse envergonhadamente. Fizemos uma fileira de frente para o treinador e ele demonstrou como uma espada deveria ser manuseada; a sua postura, habilidade e leveza dos movimentos demonstrava a sua tamanha experiência. A espada era prateada, com pequenas pedras de diamantes incrustadas ao longo da própria. Eu não desgrudei os olhos de sua performance, aquilo não me parecia nada agressivo, na verdade, eu enxergava como uma coreografia de dança; eu achava uma linda apresentação, não era possível perceber que aquela espada pudesse ferir alguém. Quando ele terminou, eu o aplaudi, mas fui a única, então fiquei vermelha de vergonha.
— Muita prática e observação em cada movimento — finalizou Liam.
— Deixa eu ser o primeiro — Belquier deu um passo à frente e pegou a espada. O menino foi desajeitado, mas era perceptível seu esforço, mas ele seria uma presa fácil com aquela rigidez e mãos trêmulas.
Em seguida, Liam apontou a espada em minha direção.
— Quer tentar, Liona? — Liam olhou para mim e eu respondi de imediato que não gostaria de tentar, sentia medo da espada. Ele riu de mim.
— Então, aprenda a lidar com o medo, pegue-a! — Liam estendeu a espada para mim, mas eu neguei. — Vai negar a vida toda?
— Enquanto eu puder — disse a ele amedrontada com a espada.
O treinamento terminou e todos foram dispensados, menos eu. Liam queria conversar comigo.
— Eu sei que você ainda não gosta deste lugar, mas você precisa entender que aqui é seu novo lar e que eu sou seu amigo.
— Eu sei que dificilmente sairei daqui. Não quero participar de aulas que servirão para machucar pessoas.
— Você não machucará ninguém. — Ele pareceu me convencer naquele instante. — Quando você se permitir, verá que pode aprender muito mais do que imagina. O significado desse aprendizado só você poderá decidir. Sabe que isso é necessário, pois seu pai ocupava uma das faces e você herdou isso.
— Você acredita que meu pai está morto?
— E quem pode nos garantir que não está? — Liam pegou a chave de seu molho, pendurado em sua calça e abriu o cadeado do portão.
— Espere, Liam! — Tentei o impedir de sair. — Notícias de Austo? — perguntei com esperança de ter alguma notícia sobre meu pai.
— Não. A mãe de Austo está preocupada. — Ele virou-se para mim. — Ela não sabe se acredita que seu filho possa ainda estar vivo. — Apressado, Liam se despediu rapidamente e fechou o portão de ferro.
Eu voltei para meu quarto e Tiziana estava à porta me aguardando, com um sorriso no rosto esperando que eu dissesse alguma coisa.
— Oi, Tiziana.
—Oi. Posso entrar no seu quarto?
— Claro. — Ela entrou no meu quarto e colocou a caixa de xadrez sobre a cama, achei tão “educado” o comportamento dela.
— O que Liam e você conversaram? — Achei sua pergunta bem direta e intrometida. — Você assumiu que gosta dele? Eu observava vocês dois no castelo, só andavam juntos.
— O quê?! — Pensei comigo: “Será que ela ainda vai passar dos limites? ” — Eu gosto dele tanto quanto gosto de xadrez.
— Você não gosta de xadrez.
— Descobriu a resposta — cruzei os braços aguardando ela falar mais asneiras.
— Mas o que vocês conversaram? — Ela não me deixaria enquanto eu não dissesse.
— Nada. Apenas perguntei como estava a central. Se tinham notícias de meu pai.
— E? — Ela parecia interessada no assunto.
— E nada.
— Como não? — Ela pegou o tabuleiro e o virou de ponta-cabeça, revelando uma mensagem:
“Joseph está com Atsuo. Os dois estão bem. ”
Perguntei a identidade da pessoa que escreveu aquilo, mas ela não soube responder, insisti em saber quem tinha acesso àquelas peças, mas ela negava. Fiquei preocupada com essa falta de comunicação entre Austo e Rosmira. Alguém mais sabia.
Tiziana foi esperta de sair antes que eu não a deixasse em paz em relação ao assunto.


Duas horas depois, vieram deixar o almoço. Eu reconheci a voz de Bráulio ao dizer “almoço”. Esperei um pouco para Bráulio se afastar da minha porta ou até mesmo entregar todos os almoços e partir. Aproximei-me da porta furtivamente e escutei vozes se encontrarem no corredor.
Bráulio e Tiziana sussurravam e eu não distinguia as palavras ditas por eles. Pouco a pouco, as vozes foram se distanciando até eu visualizar os dois pela janela. Tiziana estava fora da torre.
Aguardei a volta de Tiziana e a vi chegando sozinha, olhando para os lados, desconfiada. Deu tempo para sair de meu aposento e pará-la na escada.
— Por que você saiu? Recebeu autorização? — perguntei a ela.
Ela começou a gaguejar, a demora de responder era tempo para inventar qualquer história.
— Estive passando mal. Só isso. —Ela respondeu, tentando se desvencilhar de mim.
— Não acredito em você.
— Não preciso da sua crença para nada. Sai da minha frente. — Ela me empurrou para o lado e subiu correndo.


O segundo dia de treinamento seria com o Liam de novo, mas nos próximos, teria de tolerar a presença de Bráulio. Liam chegou sorridente como o sol apareceu naquele dia e entregou um bastão para cada um de nós.
— Não quero que ninguém se machuque, portanto, como iniciantes, vocês treinarão com bastão.
— Só quero ver como vai ser o treinamento de equitação — disse Belquier a Clausto.
— Belquier, preste atenção na sua postura, não deixe o bastão afrouxar em sua mão. — Liam o corrigia.
— Calma, professor, tá difícil prestar atenção em tantas coisas ao mesmo tempo. — Belquier reclamava.
Com o término da aula, esperei que todos saíssem para conversar com Liam, ele parecia exausto, mas, mesmo assim, eu não poderia embora sem falar o que havia acontecido ontem.
— Pode falar, Tiona. — Ele cruzou os braços e se encostou na parede.
— Ontem, o Bráulio veio até aqui. — Pensei que ele ficaria um pouco surpreso, mas não, mas também eu não tinha terminado de falar tudo que precisava. —Ticiana saiu da torre, acompanhada por Bráulio. Ela teve autorização?
— Sim. — Ele não se surpreendeu.
— Por quê? Ticiana me mostrou um aviso dizendo que Austo e Joseph estavam vivos. Como Tiziana sabe disso e Rosmira não?
— Deve ter sido Rosmira que deixou o recado para Tiziana lhe mostrar.
— Você disse que ela não teve notícias deles.
— É verdade. Rosmira não teve notícias dele, mas alguém teve. Bráulio. Deve ter sido ele.
— Ele não tem nada a ver com isso, Liam.
— Por que não? Bráulio é casado com Rosmira. Se elanão teve notícia, Bráulio teve e escondeu dela.
— Mas por que ele mostraria para mim? E por que por meio de Tiziana? — questionei, ainda sem juntar todas as peças do quebra-cabeça.
— Eu preciso ir embora. Já falei demais. — Liam guardava algum segredo de Bráulio e ele não poderia me revelar.
Tiziana me permitiu entrar em seu quarto quando bati à sua porta. Pedi para Tiziana deixar eu conversar com ela. Perguntei sobre o tabuleiro, mas ela havia emprestado para Clausto e Belquier.
— Tiziana, quem mais pegaria seu tabuleiro de xadrez? — Não encontrei uma pergunta camuflada para que ela vacilasse e deixasse alguma verdade escapar.
— Eu não posso contar quem escreveu aquilo, Liona. — Sendo pressionada, Tiziana não conseguia mentir, mas um pouco de insistência e eu desvendaria
— Eu preciso tanto saber sobre meu pai. Por favor, diga para mim — implorei quase desistindo.
Ela balançou a cabeça negativamente.
— Pensei ter encontrado uma amiga aqui, mas estou enganada. Sinto em incomodá-la.
— Eu quero que sejamos amigas.
— Eu não conheço meu pai.
— Eu sei o que isso significa, mas ainda bem que eu pude conhecer o meu quando cheguei aqui.
Não precisei ouvir mais nada, já sabia a identidade do pai de Tiziana e o possível responsável pela mensagem. Levantei-me do sofá e disse a Tiziana que dormiria um pouco mais. Ela não desconfiou e me levou à porta.





Capítulo Onze — Desvendando mares
Mais um dia neste lugar
O terceiro dia de treinamento seria com o Bráulio, eu pensei em fingir que estava doente só para não descer, mas eu precisava sair da torre, ficar presa era agoniante, o problema não era só ser obrigada a encará-lo, mas também porque eu nunca montei num cavalo.
Fomos até uma campina onde eles estavam. Bráulio montou em um cavalo branco com manchas marrons e cavalgou, erguendo uma espada acima da cabeça e fez o cavalo acelerar.
— Bem, vocês viram que parece ser fácil, mas não é. Quem será o primeiro? Liona? — Bráulio me olhou com ironia.
— Tenho medo.
— Mas você tem medo de tudo, Liona! — Belquier disse,  aproximando-se do cavalo para mostrar que eu não deveria ter medo, Bráulio o instruiu mostrando as rédeas.
Quando Belquier montou a cavalo, e Bráulio deu uma chicoteada no traseiro do animal que correu em disparada e assustou o menino a ponto de eu vê-lo cair em desespero. 
— Por que fez isso?! — eu estava transtornada com a atitude dele.
O arrependimento de Bráulio fez com que corresse atrás do animal. Felizmente, conseguiu alcançar Belquier e puxar as rédeas por ele e o cavalo deu um solavanco.
— Belquier!!! — gritei.
— Você está bem? Você arriscou a vida de seu aluno, Bráulio! — encarei furiosamente para Bráulio.
— Eu não sabia que isso fosse acontecer, me desculpa. — Bráulio massageava a cabeça do menino assustado.
—Perdoe-me, Belquier. — Bráulio levou o garoto em seus braços até a central e ordenou que alguns guardiões nos conduzissem de volta a torre.
Foram horas de preocupação até Euclediana aparecer e justificar a ausência de Belquier.
— Ele ficará bem, não se preocupe. Agora avisarei aos outros.
— Espere. Senhora Euclediana, eu fui a primeira a ser convidada para montar e, com certeza, a vontade de seu filho é que eu estivesse no cavalo no momento que ele o chicoteou para acelerar.
— Sinto muito. — Ela estava diferente, mas dócil.
— Eu não entendo o motivo pelo qual seu filho me odeia, eu sei que no passado ele teve problemas com meu pai, mas eu não tenho culpa, eu sequer o conhecia.
— Não fique assim, querida. Eu conversarei com ele.
— Mas depois do que eu revelar para a senhora, acredito que a fúria dele aumentará sobre mim. — Eu estava decidida a contar toda a verdade.
— O que você quer me dizer? — Euclediana segurou minhas mãos.
— Por que Bráulio esconde o fato de Tiziana ser sua filha? — Euclediana soltou minhas mãos, deixando as suas sobre seu próprio colo.
— Quem disse isso a você? — perguntou ela, incomodada.
— Eu descobri e quero saber se a senhora sabia disso.
Euclediana se levantou e foi em direção à porta e não olhou para trás. Era a exatamente aquela reação que eu queria causar nela.
Na porta, eu consegui ouvir as batidas leves de Euclediana ao quarto de Tiziana. Fiquei perambulando, ansiosa em saber o que elas conversariam, não houve arrependimento por minha parte, mas alívio de esclarecer o que eu suspeitava. Tiziana veio em seguida com raiva, socando na porta como se quisesse derrubá-la a todo custo.
— Você não é minha amiga, você traiu a minha confiança! — Ela chorava. — Eu prometi a meu pai que não contaria a ninguém e você...
— Você não me pediu segredo e eu descobri por conta própria. Não vem exigir o que não foi combinado, talvez se fosse tivesse sido sincera comigo, eu teria colaborado, mas é o meu pai e irmão que estão desaparecidos.
Tiziana comprimiu os lábios, fazendo-os desaparecer momentaneamente, ela cruzava os braços e não conseguia prosseguir. Ela estava chateada, mas não se movia para ir embora.
— Ela tratou você bem? — restou eu perguntar.
— Ela me abraçou e disse que estava feliz em saber que tinha uma neta. — Tiziana estava se acalmando e descruzava os braços.
— E você ainda briga comigo. — Eu disse, aproximando-se para abraçá-la.

No quarto dia de treinamento, fui a primeira a acordar e descer antes dos outros. Porém, deparei-me com um homem desconhecido. Ele me cumprimentou cordialmente e se adiantou para falar sobre a ausência de Liam.
— Meu nome é Sevidegh, serei o treinador substituto.
— O que aconteceu com o treinador Liam? — perguntei.
— Ele não virá mais, a não ser que a batalha termine e ele sobreviva.
— Batalha? — perguntei com ênfase, pois nunca passou pela minha cabeça que Liam pudesse ser convocado para a guerra.
Tiziana, Clausto e Belquier conseguiram ouvir quando desciam as escadas.
— Ele irá para a guerra. Foi convocado e por isso estou aqui em seu lugar.
— Eu tenho de sair daqui, preciso falar com Liam — implorei para Sevidegh autorizar minha saída.
— Temos um treinamento pendente, você não pode sair daqui.
— É que ela estava apaixonada pelo Liam. — Tiziana disse alto, deixando-me envergonhada.
— Mas que merda, Tiziana! É mentira! Liam é meu amigo, eu quero falar com ele. — Eu continuava implorando quase chorando diante do novo treinador.
— Escreva uma carta para ele e eu entregarei, prometo. — Sevidegh garantiu.
— Obrigada. Eu posso me atrasar um pouquinho para o treinamento? — Eu tentaria chamar Liam para vir falar comigo.
— Pode sim, enquanto você escreve a carta, eu irei treinando os outros.
Apressei-me a correr em disparada para o quarto e escrever pouco, mas o necessário para fazê-lo me visitar.

"Liam,
Preciso muito falar com você, soube que irá para a guerra e não quero que vá sem se despedir de mim.
Liona. "
Retornei para o treinamento, Sevidegh pegou a carta e colocou dentro de seu bolso.
— Não se preocupe, Liona, eu entregarei para Liam hoje mesmo, mas vamos focar no treinamento.
Eu não estava me importando com o treinamento, apenas torcia para que o tempo passasse logo e Sevidegh saísse. Quando o treinamento acabou, fiquei chateada com Tiziana, ela não tinha o direito de ter falado aquilo na frente de todos.
Na janela, esperei Liam chegar e apesar de ter passado alguns minutos, parecia horas.
— Pensei que não viria — Eu disse, mas depois tentei disfarçar. — Por que a guerra? — Ele entrou no quarto e se sentou na cama.
— Fui convocado ontem por conta da inscrição deixada há meses. — Ele estava desanimado. — Estou aqui para se despedir.
— Eu não quero que você vá à guerra. — Aquela frase não tinha o poder de fazê-lo mudar de ideia.
— Você acha que eu não voltarei? — ele me perguntou com a voz fraca, nem ele mesmo acreditava nessa possibilidade.
— Eu não sei, ninguém sabe, nem você. — Eu sentei-me ao seu lado. — Tente convencer a Euclediana, peça para que a convocação seja eliminada, porque eu não quero que você seja eliminado.
— Você está há pouco tempo aqui, ainda não compreende como tudo funciona, eu não posso fazer isso, senão serei destituído da minha categoria, não serei mais um cavaleiro, mas serei um covarde e prefiro a morte do que ser tachado de covarde.
— Contra quem será essa guerra?
— Contra a dimensão Rubi.
— Como assim contra a dimensão Rubi? A única dimensão que não aceita guerras.
— Será uma invasão, eles serão obrigados a lutar.
— Por que invadir um lugar que guarda harmonia e treina crianças para serem guardiãs da paz? — pensei em Cleura, Almáquio, Tonis...
—São ordens inquestionáveis. — Ele pegou minha mão e a beijou. — Desejo que você seja feliz e que se encontre com seu pai e irmão.
— Você é meu amigo. Não quero perder você.
Tiziana bateu à porta e eu fui atendê-la, contrariada, pois eu precisava ficar mais tempo com Liam.
— Oi, Tiziana. — Belquier e Clausto acompanhavam-na.
— Com licença, mas nós queremos também se despedir do Liam e agradecer por tudo que ele nos ensinou. — Tiziana trazia uma bandeja com suco.
— Obrigado, mas foram somente duas aulas — disse Liam sorrindo.
— Quantidade não é qualidade, meu caro. — Tiziana estava me surpreendendo com as palavras. — Trouxemos este suco para o senhor, deve estar com sede.
Liam tomou e em pouco tempo, ele se sentiu zonzo até cair na cama.
— Que você fez, Tiziana?! — Eu tentava acordá-lo aos tapas, mas não conseguia. Tiziana, Belquier e Clausto não paravam de rir.
— Vamos!!! Temos de achar as chaves para sair daqui. — Tiziana procurava nos bolsos de Liam a chave do portão. Liam usava as chaves como pingentes, portanto eu os tirei cuidadosamente. Corremos para a Central e os guardiões ficaram surpresos em nos ver; Euclediana ficou nervosa em saber que estávamos fora da torre.
— Precisamos muito da ajuda da senhora. — Eu entrei na sala sem autorização. — A senhora não pode permitir que Liam vá para a guerra, vocês não estão preparados para enfrentar a dimensão Rubi, eles são da paz, não gostam de guerra, eu estive lá.
— Sua punição aumentará a cada instante que eu ouvir baboseiras de você, garota. — Ela não era aquela pessoa amável que ontem estava me consolando.
— Por favor, Euclediana! — gritei, mas os guardiões já estavam se avizinhando. — Eu menti!!! Eu não sou daqui!!!
— Esperem! — Ela impediu que os guardiões continuassem. — Mentiu sobre o quê?
— Eu sou da dimensão Rubi. — Eu mostrei a pedra rubi para ela, eu já tinha tentando mentir uma vez, mas agora eu persistiria para ver se eu conseguiria convencê-los.
— Você não é da dimensão Rubi, lembra-se? Você já tentou mentir...
— Eu estou falando a verdade.
— Você está aqui para quê? Para nos espionar?
— Não. — Não havia meios para convencê-los. — Eles são superiores.
— Eu faço você engolir essa subestimação! — Euclediana avançou contra mim com o nariz empinado e desdém.
— Eu sei os pontos fracos deles. Não é uma ajuda? — tentei amenizar a tempestuosidade dela sobre mim.
— Por que tanta preocupação com Liam? Trataram-se como se fossem desconhecidos e agora descubro que tudo era armação.
— O quê? — eu não compreendia.
— Pare de tentar me enganar! Como Liam é da dimensão Rubi, vocês sempre se conheciam. — Aquilo era novidade para mim. Eu não sabia que Liam era da dimensão Rubi, em vez de protegê-lo, eu estava prejudicando-o.
— Eu posso ser decisiva na vitória ou derrota de vocês. Eu sei tudo sobre a dimensão rubi, meu conhecimento sobre aquele lugar é útil ou não? Quando Liam me viu aqui, ele ficou transtornado, mas logo aceitou em guardar meu segredo, portanto eu quero escolher o time em qual jogar.
Eu estava perdida, o meu objetivo era impedir a guerra, mas não conseguiria.
— Retire-se! — Ela exclamava. Os guardiões me puxaram pelos braços e fui arrastada sem a nenhuma chance de sair aliviada. Bráulio me viu no corredor e se aproximou soltando fogo pelas ventas. Ele acenou dispensando os guardiões.
— Como você teve coragem de revelar que Tiziana é minha filha? Isso não é de seu interesse.
— Você é que não pode tentar ferir um de seus alunos — retruquei.
— Cuidado com o que você fala.
— Por que você deixou aquele aviso nas peças de xadrez?
Bráulio respirou fundo e desviou o olhar, direcionando para o final do corredor.
— Olha aqui, seu pai é um traidor e eu tenho raiva de você por ser filha dele, mas isso não dá direito de você se intrometer na minha vida. Seu pai não lutou pelo seu povo, ele desistiu como um covarde! — Ele voltou a me encarar com raiva.
— Euclediana tem o direito de saber que tem uma neta. E eu fiz isso, porque eu quero saber do paradeiro de meu pai e irmão.
— Tiziana não é minha filha. — Ele disse, desolado.
— Você insiste em renegar sua filha!
— Ela acredita que eu sou seu pai, mas não sou. O pai dela foi morto e eu não tive coragem de dizer a verdade. Ela veio sozinha, sem a companhia de sua mãe.
— Mas se você aceitou ser o pai dela, não vejo problema em saberem, afinal, você a adotou.
— Você me fala como se fosse simples. Não percebe que se todos ficarem sabendo, eu terei de me explicar e acabarei falando a verdade?
— A mãe de Austo sabe?
— Já sabe que Rosmira é minha esposa — disse Bráulio, contrafeito. — Ela me aconselhou a fazer isso e Tiziana a tem como mãe.
— E a mensagem nas peças de xadrez?
— Eram verdadeiras, não posso explicar agora.
Os portões foram abertos, Tiziana e Belquier entraram, mas Clausto permaneceu fora.
— Espere aí! Não era para vocês estarem na torre? — Bráulio esbravejou.
— Posso chamá-lo de pai? — Tiziana o abraçava.
— Claro, filha. — Bráulio aparentava incômodo.
— Liam foi convocada para a guerra e viemos tentar convencer sua mãe a desistir da guerra, mas ela não quer. — Sobrava um resquício de esperança.
— Ela não pode, faz parte das normas. Liam é um cavaleiro e precisa participar dessa guerra, mas ele não devia ter soltado vocês.
— Da maneira que você diz, com certeza, estávamos numa prisão.
— Onde está o Liam? — Bráulio indagava, mas eu percebi quando ele piscou para Tiziana.
Liam havia saído da torre transtornado e deve ter tido mais problemas com a Central por minha causa. Os treinamentos foram suspensos. Sevidegh veio trazer essa notícia.
— Por que não haverá treinamento, Sevidegh? — eu perguntei.
— Euclediana constatou que você e os outros foram até a central tentar salvar a pele de Liam. Você não pertence à dimensão Rubi.
— E Liam vai para guerra? — suspirei, desconsolada.
— Eu conheço Liam há mais tempo que vocês e garanto que ele não foge de uma batalha oficial, pois se esta batalha for cancelada, ele dá um jeito de criar outra.
— Meu desejo é sair daqui. Eu quero voltar para a dimensão Rubi.
— Não tem jeito de ir para uma dimensão que está em guerra. Correríamos risco. Eu pertenço à dimensão Safira e para lá será possível. Mas agora temos de sair, já alertei aos outros se arrumarem, pois o combate está próximo.
— Eu guiarei vocês até à Central. — Sevidegh continuava. — Arrumem suas coisas e vamos sair daqui.
Quando saímos da torre, senti que eu estava livre, quase livre. Fomos até à Central e me encontrei com Bráulio abraçando Tiziana, junto com a mãe de Austo, ela estava chorando. Quando Bráulio me viu, ele deixou de abraçar Tiziana e veio até mim, eu fiz Clausto de escudo para me proteger dele.
— O que houve, Liona? — Clausto achou estranho meu comportamento, mas eu não ia largá-lo.
— Eu preciso falar com você — disse Bráulio com a tensão no olhar.
— Desculpas, Clausto. — Eu o soltei e ajeitei sua roupa, que tinha amassado.
Clausto se afastou. Em seguida, Bráulio disse que falaria a verdade para Tiziana.
— Por que dizer a verdade? Você não gosta de ser pai dela?
— Não posso continuar mentindo para ela, isso me faz mal. — Ele sentia o peso da grande responsabilidade.
— Por favor, Bráulio, não deixe que Liam vá à essa guerra.
— Liam é mais meu amigo do que seu, se eu pudesse protegê-lo...
— Você pode! Faça alguma coisa, qualquer coisa. — Eu não desistiria, já que eu não poderia proteger todos, eu tentaria proteger pelo menos Liam. — Eu não quero que ninguém se machuque.
— Você não poderá evitar o que está acostumado a acontecer.
Soube depois que Euclediana suspendeu Liam, ele não iria para a batalha naquele dia. Fiquei mais aliviada.
À noite, foi Sevidegh que me guiou até o jantar, mas antes passamos pelo quarto de Liam.
Ele nos recepcionou amargamente, não me olhava, parecia outra personalidade ocupando seu corpo.
— E a minha dignidade? Você é pouco diante de tudo que eu vivi aqui. Eu a odeio, Liona — vociferou, olhando para o chão ainda sentado na beirada de sua cama.
— Prefiro que você me odeie vivo do que me ame morto.
Fechei a porta e o deixei sozinho, a partir daquele momento, eu perdi o meu amigo. Olhei para Sevidegh e ele tentou justificar Liam.
Andamos até parar na entrada da sala de jantar; Euclediana me chamou para brindar, porque naquele momento, muitos estavam em batalha.
— Não brindará conosco, Liona? — Euclediana erguia a taça.
— Eu não brindo para guerra, eu não brindo para o sangue derramado, senhora Euclediana.
— Aprenderá, aprenderá a brindar, será sua única opção, querida. — Euclediana tomava um gole do vinho cor de sangue.
Desisti de estar ali. Sevidegh preferiu me acompanhar.
— Amanhã vamos para Safira? — questionei em voz baixa para Sevidegh.
— Sim. É o que quer?
— Sim.

No dia seguinte, usamos os uniformes dos soldados, além das mascarilhas. Fomos os primeiros a chegar diante da fronteira. Sevidegh me puxou pela mão e me levou para o lado esquerdo. Fortes luzes irradiavam nossas visões.
De repente, estávamos dentro da pedra Safira, aquela experiência era familiar e, como de costume, Sevidegh pegou a pedra safira pendurado em seu pescoço e encaixou no pedaço que faltava na enorme pedra de safira azul.
Sevidegh foi recebido com aplausos e alegria na Central. Um senhor trajado de armadura e binóculo azul, recebeu-nos sorridente, seu nome era Ouste, seu pai.
— Sejam bem-vindos! — Ele permitiu que sentássemos em volta da mesa azul metálica; todos eram simpáticos, mais sorridentes que os da dimensão Rubi e serviram bebidas.
Ouste sentiu receio em saber que seu filho havia fugido e, sem esconder o que sentia, sabia que sua dimensão correria riscos. Atrás dele, vinha outro senhor chamado Otelino, seu irmão.
— Meu sobrinho está de volta! — sua voz aguda atravessou nossos ouvidos como agulha.
— Eu não suportava ficar longe de vocês. — Sevidegh parecia alegre em sua terra natal.— Meus queridos dirigentes, eu vim acompanhado desta moça e ela deseja ir para a dimensão Rubi. Tem como fazer a transferência dela quando a guerra acabar? — continuou Sevidegh, interessado em me ajudar.
— Nossa energia está esgotada, infelizmente, não sei como iremos ajudá-la. Por que deseja ir para a dimensão Rubi? Por causa dela, estamos quase perdendo tudo.
O dirigente Otelino esclareceu o que eu demorei a acreditar: a dimensão Rubi não era um lugar pacífico como eles demonstravam. A dimensão Safira não suportava mais ser incitada a guerrear contra eles. A cada derrota, o terreno deles perdia valor diminuindo de tamanho, além da energia estar esgotando.
— Tolice em invadir a dimensão Rubi só por vaidade, agora perderam um terço das terras — disse Ouste. — É verdade que a dimensão Rubi demorou aparecer, mas foi para investir em tecnologia bélica, fortalecer seu Estado.
Capítulo Doze – A festa
   O toque da dança
A festa de recepção acontecia sob o luar da noite. E o céu de estrelas parecia saber que todos ali estavam em júbilo pela chegada de Sevidegh. Apesar de temerem a dimensão Diamante quando fosse descoberto a fuga, todos desejavam que esta ficasse vulnerável após perder para a dimensão Rubi, como eles acreditavam; recebi um vestido preto com a borda dourada e uma mascarilha personalizada; uma apresentação aconteceria no palco, agora mais iluminado do que a própria lua cheia. Um casal se posicionou no centro e quando a música iniciou, começaram a dançar o passo doble. O dançarino era Sevidegh, ele estava segurando a capa vermelha e depois entregava para a dançarina. Seus pés deslizavam com tanta leveza. Os dois pareciam ter ensaiado por meses, mas estavam separados e isso pareceu não ter comprometido a coreografia. A dança terminou com a moça segurando a haste de uma rosa vermelha pela boca.
Os aplausos intermináveis aumentavam o som até que todos se cansassem e voltassem aos sussurros como antes.
Otelino, o irmão mais novo, usava uma capa preta, não lhe restava mais fios de cabelos, sua careca reverberava. Ele pegou a mão de Ouste, que se assemelhava às suas características físicas, exceto, que ainda tinha cabelos. A diferença de idade entre os dois não ultrapassava cinco anos. Sorridentes, subiram ao palco acompanhados por Sevidegh.
Entre os dois dirigentes, Sevidegh ergueu os braços de seu pai e tio, mas o olhar do general, cujo nome ainda desconhecido, era de contragosto. O general trajado de vermelho, recusou-se a dançar com sua mulher, ele não tirava os seus olhos de Sevidegh. Ele degustava o vinho, cada gole descia pesadamente em sua garganta. Homem acostumado com as batalhas, carregava cicatrizes pelo corpo, mas os escondia sem demonstrar a experiência dos cortes que o atingiram e não o mataram.
Assim que o pronunciamento de Otelino e Ouste acabou, Sevidegh sentou-se à mesa em que eu estava.
— Está linda, mas não está aproveitando a noite. Nenhum cavalheiro a chamou para dançar? – Ele perguntou sorrindo,  limpando o suor da testa com o lenço azul-claro, com uma pequena safira incrustada no centro.
— Não — respondi. — Quem é aquele homem? — apontei com o olhar para o general, que ignorava a própria mulher.
— Aquele de vermelho?
— O que você acha dele?
— Ele é o general Almirante. Eu não o conheço, pois ele está aqui há pouco tempo, mas eu sei que é irmão de Almáquio.
— Mas o que um general da dimensão Rubi está fazendo aqui?
— Ele brigou com Almáquio e ofereceu seu trabalho para os dirigentes.
— Brigou com Almáquio?
— Porque ele se encontrava às escondidas com aquela mulher, que atualmente é sua esposa e ignorada por ele. Duas pessoas de dimensões diferentes não podem se casar. — Sevidegh se levantou para dançar e, mais uma vez, neguei seu convite de dança.
O general Almirante se comportava como se fosse dirigente daquela dimensão; todos o respeitavam e obedeciam, até mesmo Otelino e Ouste.

A dimensão Safira era conhecida pela habilidade de defesa, eles não atacavam, recuavam todas as batalhas. E com a chegada de Almirante, a dimensão tomaria outro posicionamento. Ele ia contra as decisões dos dirigentes. Seu intuito era avançar. No dia seguinte, pela manhã, segui seus passos até escutar sua conversa com dois guardiões.
— Já entrei em contato com o Almáquio e ele disse que levará reforços, e o que vocês conseguiram fazer? — O general perguntou.
— Um quarto de nossos soldados estão lesionados, portanto o número será inferior do que o previsto, general.
— Ótimo.
O general parou de continuar falando e se aproximou da porta. Ele a socou várias vezes e eu me assustei, tampei a minha boca para evitar gritar. Depois, ele voltou a falar. — Estamos em vantagem, afinal, a maior parte dos soldados da dimensão Esmeralda estão aqui.
Saí imediatamente de trás da porta, corri para falar com Sevidegh, talvez, ele não acreditaria em mim, mas as provas eram os próprios soldados, eu só não entendi porque os da dimensão Esmeralda estavam do lado da dimensão Rubi.
O general planejava contra a dimensão Safira e eu não ficaria parada. Corri velozmente como nunca tinha feito em minha vida, sem condições físicas de continuar, suportei o cansaço e subi os degraus que faltava para a Central. Bati a porta com força contra a parede e interrompi os dirigentes em seu lanche habitual.
— Sirva-se, Liona. Coma essas frutas. Têm maças, laranjas, uvas, mas não coma as uvas rubi — zombou Otelino.
— Perdoe-me por esta repentina invasão. Não posso guardar este segredo comigo.
Otelino com a uva rubi ainda na boca, olhou de soslaio para Ouste.
— O que aconteceu menina? — Ouste perguntou.
— Eu escutei o general Almirante planejar contra a própria dimensão. Ele não brigou com o irmão dele, existe um contato entre eles.
— Liona, o que está dizendo é muito grave. Está acusando nosso general?
— Estou o acusando, porque eu tenho informações. Desde a festa da recepção, eu suspeitei que algo estava errado.
Otelino terminava de comer as uvas rubis e Ouste descascava a maçã em fatias sobre o pequeno prato de prata. Ouste ergueu os olhos para mim inexpressivo.
— Está dizendo que somos uns bundões a ponto de deixarmos se enganar? O que faz você duvidar de um general que presta serviços com tamanha competência, responsável por acordos dos quais evitaram muitas batalhas sangrentas?
— A audição. Eu ouvi ele conversar com seus guardiões. O início do plano é deixar os soldados lesionados com os treinamentos. Eu só estou dizendo o que eu escutei. Eu também pensei que a dimensão Rubi fosse confiável, pacífica, mas me decepcionei e vocês não podem confiar cegamente em um general advindo da dimensão inimiga e irmão de Almáquio. São laços por um fio, mas não rompidos literalmente.
— Então, Almirante pode estar de complô com seu irmão?
— Pode sim. Eu ouvi bem claro: alguns soldados foram lesionados durante o treinamento propositalmente e outros são da dimensão Esmeralda, portanto o número de soldados fiéis é inferior, segundo a informação dada pelo próprio Almirante.
Ouste e Otelino se entreolharam e conseguiram encontrar coerência nas minhas palavras, então respirei aliviada.
— Não temos voz para convencer os outros, Liona. Você já deve ter percebido na festa que o general é mais aclamado que nós, os dirigentes. — Ouste olhava para o restante das uvas. — Fomos burros em deixar que nossa autoridade se perdesse.
— Então, teremos de planejar algo às escondidas. — Eu disse, mas não havia um plano.
Sevidegh entrou na Central acompanhado por Sira.
— Ficaram silenciosos quando chegamos? — comentou Sira.
— Estou nomeando Liona, um dos Orientadores de nossa dimensão. — Otelino comunicou.
— O quê? — Aquele termo me rematou ao Orientador que me acompanhava à escola todas as manhãs, travessando o bairro tranquilo e vazio.
— Você é uma das Orientadoras. — Sira reafirmou.
— E o que nos aconselha? — indagou Otelino.
— Não sei. Devemos descobrir quem está do nosso lado e evitar que os soldados continuem com o treinamento.
Não são todas as dimensões que possuem esse delegado, mas os Orientadores são pessoas com a incumbência de monitorar e analisar os treinamentos físicos de guerreiros e cavaleiros, ou seja, os soldados.
Oste e Otelino explicaram ao Sevidegh e Sira sobre o que eu havia escutado.
— Inacreditável. Bem que você suspeitou, Liona — disse Sevidegh com a expressão incrédula.
Naquele dia conheci os outros Orientadores, além de saber que Sevidegh e Sira também eram; Vieda, uma moça alta em torno de vinte anos, e Rondon, um rapaz de cabelos raspados e primo de Sevidegh.
Ouste e Otelino tomaram cuidado para que não chegasse aos ouvidos do Almirante. Eu acompanhava os treinos e, com o assíduo monitoramento dos Orientadores, os planos de Almirante se desfaziam.
A carta de solicitação de guerra chegou e descobrimos que a dimensão Rubi venceu a dimensão Diamante.
O embate entre as dimensões tinha de seguir um protocolo: as dimensões se reuniam, porém, quinze minutos antes, uma apresentação artística acontecia, músicos e dançarinos se reuniam e faziam uma entrada triunfal. Belas roupas e máscaras faziam parte das vestimentas dos soldados. 


             Capítulo Treze – A energia
               A batalha
As aeronaves da dimensão Rubi se aproximavam enquanto o cronômetro diminuía. Almáquio, sentado e comendo biscoitos, estava na mais vermelha e imensa aeronave com a porta aberta. Era a vez da dimensão Rubi se apresentar com pessoas suspensas por fitas vermelhas enrolados no próprio corpo.
Quando o cronômetro zerou, era a vez da dimensão Diamante se apresentar; atravessamos com roupas azuladas e a música nos acompanhava.
O cronômetro zerou novamente e todos ficaram posicionados diante da fronteira. Somente restou o escudo de energia proveniente das pedras rubi e diamante. Almáquio tossiu por alguns instantes até autorizar o ataque.
Os soldados vermelhos que estavam dentro das cápsulas de propulsão humana, ergueram vários metros do chão e começaram a colidir com a proteção. Cada colisão dissipava energia para os lados e diminuía sua intensidade.
De repente, sentimos um tremor e antes que desse tempo para raciocinar, a barreira enérgica se rompeu e Sevidegh acionou o botão no controle, que carregava consigo. Imediatamente todos nós caímos quando o solo abaixo de nossos pés cedeu.
Caímos em um chão estofado para amortecer nossa queda. As luzes daquele subsolo se acenderam. Rondon, transtornado, não parava de falar sobre a unificação. Todos lamentavam, mas eu não compreendia. Rondon esclareceu que a unificação é a junção de todas as dimensões, isto é, elas deixam de existir, pois cada uma era protegida pela energia de reserva de suas gemas valiosas. Alguém foi responsável pela unificação e só podia ser Almáquio. O pior foi descobrir sobre os clones. Os clones são pessoas com características físicas iguais e não podem se ver nem estar na mesma dimensão. Cleura e Tonis possuíam clones na dimensão Diamante. Aquilo me fez lamentar profundamente com muita dor a morte de ambos. Tivemos de voltar e avisar aos dirigentes. Aturdida, não consegui permanecer dentro do castelo, então perambulei sem rumo entre arbustos, árvores e terra. Subi a mesma ladeira que me trouxe à Central. Risadas e vozes avisavam que pessoas estavam ali. Um palco sustentava Almáquio e uma plateia regozijava com bebidas escorrendo pelas bocas. Escondida atrás de árvores espessas, eu ouvia Almáquio discursar.
O homem de manto longo cor-de-lilás, barbas longas, grisalhas, com enorme chapéu pontudo era idêntico ao Orientador. Inacreditável. Os dois se abraçaram. E eu continuei avançando até ouvir: " Aplausos ao meu pai ". Retornar para a Central não foi fácil, mas mantive meus pés firmes.
— Não é seguro sair andando por aí. Estamos sem proteção alguma. Tenho um fio de esperança que com a ajuda de meu outro tio, iremos evitar que Almáquio tente nos destruir — disse Sevidegh —, você ainda o conhecerá, Liona. Ele pertence à Ametista, conhecido como Orientador. Pode parecer estranho que ele seja de outra dimensão, mas é uma longa história. Voltando ao assunto, Almáquio deve ter construído realmente a maldita máquina de ressonância, que emite as frequências exatas de cada gema correspondente à dimensão ativa.
Não suportei continuar conversando com Sevidegh, sai de lá e retornei ao mesmo lugar sozinha, sem medir a periculosidade de ser vista por eles. O tio de Sevidegh era o Orientador, ofegante, cheguei para encarar Orientador nos olhos, mesmo sabendo do risco.
— Onde está o Orientador? 
Todos se voltaram para mim e Almáquio se calou com a minha presença.
— Liona? — Almáquio sorria ironicamente.
— Você é repugnante, Almáquio. Não pensou em sua mãe nem no Tonis. Por que fez isso?
— Tire essa coisa daqui! — Almáquio ordenou um de seus soldados que avançava em minha direção.
Liam interveio e, montado em seu cavalo, estendeu a mão para mim e me ajudou a subir no cavalo.
— Liam, o que está acontecendo?
— Mantenha a calma. Vamos para um lugar seguro.
Fomos direto para a dimensão Ametista. Na entrada, avistei um homem de cabelos crespos, pele escura, esbelto, aparência de mais de setenta anos, sorriso largo e marcado pelas expressões faciais profundas. Aquele homem era meu avô, Seu Escadas.
— O que o meu avô está fazendo aqui?
— Avô?
Desci do cavalo em desespero, quase tropecei ao acelerar meus passos para abraçar aquele homem em pé, mas com um semblante fechado.
— Meu avô! — abracei-o fortemente.
— Por que está me chamando de avô? Quem é você?
Ele me afastou dele e ficou me olhando, confuso.
Liam se aproximou e esclareceu o engano de minha parte.
— Vocês já se conhecem? Você conhece Eulário, Liona?
— Ela veio me abraçando. Eu lembro alguém, menina?
— Lembra meu avô. Desculpe-me.
— Não se preocupe. Agradeço o abraço.
Pasma, entrei em seu castelo sem voz, minhas bochechas coraram com tamanha vergonha. Hospedei-me em um dos quartos.
À noite, Sevidegh me convidou para entrar na aeronave pertencente ao dirigente Orientador, seu tio. O tal  estava presente revelava um sorriso dissimulador.
— Estamos unidos contra a dimensão Rubi. Eulário era dirigente da dimensão Esmeralda, mas fingiu-se ser amigo de Almáquio e se tornou seu conselheiro — iniciou Sevidegh.
Orientador era o Orientador. Eu não pude evitar meu susto ao reconhecê-lo duas vezes. Orientador, aquele que me acompanhava até a escola.
— O Orientador é meu tio. Ele se casou com a minha tia, que pertenceu à dimensão Safira. No início foi complicado, mas ele se rendeu a uma batalha que houve entre Safira e Ametista. Ele queria permanecer na terra da mulher de sua vida. E com a ajuda de Eulário, o Orientador conseguiu retornar para a Ametista e se tornou dirigente. Infelizmente, minha tia morreu com a unificação, porque ela tinha um clone na dimensão Diamante.
Eu não conseguia falar nada para Sevidegh. Minha vontade de escancarar a verdade da traição do Orientador não foi suficiente diante do meu receio.
Descemos da aeronave e retornamos para o castelo de Ametista, por alguma razão, o Orientador permaneceu na aeronave e voou. Sevidegh entrou confiante.

Na manhã do dia seguinte, a dimensão Rubi decidiu invadir a dimensão Ametista. Durante o café da manhã, fomos incomodados pela voz irritante de Amálquio, que utilizava um alto-falante.
— Liberte Liona! Liberte minha espiã!
Todos olharam para mim surpresos.
— Ele está chamando Liona de espiã? — Sevidegh se recusava a acreditar.
— Não. Eu não sou espiã. O único que está enganando a todos é o Orientador, o tio de Sevidegh. Eu testemunhei quando ele abraçava Almáquio e o tratava como filho. Almáquio chamou de pai o seu tio.
— Está louca, Liona?
Não adiantava, Sevidegh e ninguém acreditaria em mim.
— Venha, minha querida. Estamos à sua espera, e é bom você, Sevidegh, não impedir a passagem de minha espiã. Caso contrário, seu tio não será libertado.
— Eles estão com o meu tio! — Sevidegh se desesperou e tentou sair, mas Eulário o segurou.
— Eu não sei o que está acontecendo.
— Por favor, Liona. Retire-se daqui — aconselhou Eulário.
— Por que vocês vão acreditar em Almáquio?
— Meu tio está como refém daquele verme e você querendo me colocar contra ele? — Sevidegh cerrava os dentes.
Saí do castelo e acompanhei o olhar de Almáquio. Ele estendeu a mão para eu entrar na aeronave. Sentei-me defronte a Almáquio e me calei.
Sentei em frente ao Almáquio, meus dedos trêmulos se embaralhavam nervosamente.
— Não vai falar comigo? — perguntou ele, sossegado.
— Por quê? Por quê? Orientador não é seu pai? — eu levantei a cabeça.
— Orientador é meu pai. Quer saber mais alguma coisa?
— Por que você mentiu diante de todos?
— Eu não menti.
— Você mentiu, mas não tem problema, porque quando a verdade aparece, é que nem efeito dominó, uma verdade desvendará outra e, assim sucessivamente, como as peças que derrubam as outras.
Ele sorriu e não rebateu.
— Por que tudo isso? Eu não ajudei o senhor, jamais consenti com suas ações. Foi por causa de quê? Matou a mãe e o sobrinho a troco de quê?
— Poder. Infelizmente, a unificação teve seus sacrifícios. Há muito tempo, eu quis unificar as dimensões, um poder centralizado é mais correto do que poderes distribuídos. Eu estava cheio das negociações, ter de pedir autorização toda vez que surgisse algum empecilho em minhas vontades. Eu sei que nenhuma dimensão é mais forte do que Rubi. Com bastante cuidado, eu transformarei tudo isso em uma só!
— Por sua culpa, eu perdi a confiança de Sevidegh.
— Você não sentirá falta, pense comigo: não vale a pena insistir ficar do lado fraco, se você pode ficar do lado forte, afinal é só questão de tempo para tudo se tornar um lado só.
— E quem disse que o seu lado é forte? — eu o desafiei.
— Não é preciso dizer, apenas ver. Sua palavra não tem valor. E eu consegui enganá-los. E então? Dúvida que meu lado é forte? Eles me odeiam, mas acreditaram em mim.
— O senhor tem razão.
— Exatamente. Fatos viram razões e agora você faz parte da dimensão Rubi.
— Sim. Eu estou do seu lado. — Estiquei a mão para cumprimentá-lo.
— Não importa o que você está aprontando, não me derrubará — ele replicou.
— Não subestime aquilo que desconhece. — Eu disse como pontuação final naquela conversa.
No final do dia, Almáquio discursava na plateia e incitava invasão contra todas as outras dimensões e aproveitou para frisar sua irmandade com a dimensão Esmeralda. Todos os seus soldados se agitavam com os braços erguidos e assobiavam como passarinhos recém libertados de gaiolas torturantes. Almáquio estava entre mim e Liam. Gostaria de me apoiar em Liam, mas sua postura impossibilitava tal cogitação.
Almáquio apertou nossas mãos e as ergueram para cima como se eu estivesse aprovando seu comportamento. E para destroçar minha dignidade, ele enfatizava o papel de espiã que eu nunca tive.
No meio da plateia, eu vi alguém gritando meu nome exasperadamente; percorri com os olhos sobre aquelas cabeças agitadas até parar em uma delas: Sevidegh.
Sevidegh empurrava homens ao seu redor para se aproximar do palco, soltei-me da mão de Almáquio.
— Liona! Eu sei de toda a verdade!
Almáquio não gostou e ordenou que os soldados o espancassem.
— Sevidegh! — tentei pular do palco, mas Almáquio me puxou grosseiramente para trás. Liam passou por mim e apertou minha mão.
Entramos na aeronave que estava detrás do palco e as janelas opacas não me deixavam ver o que acontecia do outro lado. As portas foram fechadas e Almáquio sorriu sarcasticamente, pedindo para que eu me calasse. Não sei por que, mas o aperto da mão de Liam me reconfortou.
— Lamento, Liona.
— Eu sei, também vou lamentar muito quando matarem seu pai, caso aconteça alguma coisa com Sevidegh, afinal, ele está refém da dimensão Ametista.
Ele gargalhou até perder o fôlego.
— Meu pai? Vem cá, pai! — Ele olhou para trás.
Atrás do banco em que Almáquio sentou-se, um capuz pontudo surgia vagarosamente, mostrando a face do Orientador.
— Oi, Liona. Desejando minha morte? Estou magoado com você.
— Deixará seu sobrinho morrer?
— Não é meu sobrinho, apenas casei com a tia dele.
A aeronave começava a subir aos poucos, deixando-me aflita.
— Seu filho destruiu sua vida trazendo o clone de sua esposa para a mesma dimensão que ela, e você não sofreu?
— Meu filho fez isso, porque a odiava, sentia ciúmes, e eu o perdoei — disse o Orientador insensível.

Levaram-me para a dimensão Rubi e fiquei presa em um dos aposentos por longas horas. Acabei cochilando até ser acordada por um estrondo lá fora. Girei a maçaneta e, assustada, olhei para os dois lados até ver um resquício de sombra de alguém no lado esquerdo. Voltei para o quarto e peguei a espada debaixo da cama. De alguma forma eu sabia que ela estava ali. Furtivamente percorri encostada na parede com a espada erguida acima da minha cabeça. A porta no final do corredor bateu. Apressei os meus passos e parei por um instante. Entreabri a porta até ter certeza de que maneira eu atacaria. A porta rangia e não teve outra opção, puxei-a abruptamente e baixei a espada como eu faria em uma batalha. Dei um grito ao ver Sevidegh, a lâmina da espada distava dele a milímetros. Soltei a espada no chão imediatamente.
Nada mais foi dito, nosso abraço foi a reconciliação de qualquer desentendimento.
— Viemos buscá-la. — Sevidegh disse. — Meu tio está ajudando-nos.
— Seu tio? A última coisa que ele fez foi ajudar. Não devia confiar nele. Apareceu na aeronave, rindo e despreocupado com você.
— Faz parte do plano. Ele não acreditou que eu viria atrás de você. Fui salvo pelo Liam.
— E onde ele está?
— Lá fora. Temos de ir. Confie em meu tio. Para dar certo, nossos amigos deverão se comportar como nossos inimigos.
Passamos pelas saídas dos fundos do castelo, mas Almáquio apareceu amarrando seus longos cabelos, acompanhado de seus soldados vermelhos. Liam desembainhou sua espada e estava mais próximo de Almáquio.
— Para aonde minha filha vai?
— Você não é meu pai!
— Se eu vou me casar com sua mãe, serei seu pai, querida.
— Delirando? Jamais se casará com ela.
— Anne apareceu à sua procura.
— Cadê minha mãe?
— Presa numa torre longe daqui.
— Você está mentindo!
— Dane-se! Eu vou me casar com ela e você verá. Prendam-nos!
Nós três ficamos sem saída, Liam e Sevidegh preferiram ceder, entregamos as espadas e fomos levados para a prisão no subsolo.
Enjaulados à própria sorte na escuridão, ficamos separados por celas.
— Um rato! — o bicho pulou para a cela de Sevidegh.
— Caramba!!! — Sevidegh se agarrou à grade e suas pernas escorregavam.
Liam não parava de rir com a reação de Sevidegh.
Em seguida, os guardiões encapuzados entraram com nossas bandejas. Mas o meu prato chegou vazio, pois um dos guardiões havia comido tudo.
— É pode comer, acho que está com mais fome do que eu — observei-o com certo nojo.
— Obrigada, Liona.
Reconheci a voz e puxei seu capuz.
— Belquier!
Os outros dois ditos guardiões também tiraram seus capuzes.
— O que vocês estão fazendo aqui? — assustei-me ao vê-los disfarçados.
— Conseguimos entrar com a ajuda do Orientador — disse Tiziana.
— Eu sabia que meu tio estava do nosso lado — comemorou Sevidegh.
Os três abriram as celas e saímos com a garantia do Orientador, que nos esperava na aeronave lá em cima. Segundo a Tiziana, o Orientador disse que nenhum soldado da dimensão Rubi estaria presente e nós seríamos conduzidos pelos soldados da dimensão Ametista.
A janela da aeronave possuía o contorno de pedras ametistas.
— Eu não queria que você acreditasse na minha inocência, Liona. Eu tive de fazê-la achar que eu era um traidor. Tudo combinado para que você fosse libertada e que desintegrássemos as forças de Almáquio. Ele sempre foi contra a unificação, conseguiu apoio para que jamais houvesse relacionamentos entre pessoas de dimensões diferentes, porém ele construiu uma máquina de ressonância.
Descobrimos que mais soldados de Rubi estariam infiltrados na dimensão Safira a mando de seu irmão mais novo, general Almirante. Depois foi descoberto que a dimensão Esmeralda pertencia à dimensão Rubi.
A aeronave desceu em frente ao palco, fixei meus olhos para aquele aglomerado de pessoas e encontrei Almáquio beijando a mão de minha mãe.
— Sua mãe está se casando com Almáquio. — O Orientador confirmou o que minha visão comprovava.
A porta da aeronave se abriu e eu corri em direção a eles.
— Mãe!!! Não!!!
Ela se virou para mim.
— Filha? Eu tive de fazer isso para voltar a vê-la.
— Perdão, mãe! — quanto eu mais corria, mais distante de minha mãe eu ficava. Ela usava seu vestido branco com pedras preciosas em seus cabelos: diamante, esmeralda, safira, rubi e ametista.
— Eu fiz o que você ordenou, Almáquio. — Era a voz do Orientador.
— Obrigado, pai.
— Ele chamou o senhor de pai? — Sevidegh se espantou.
Eu os ouvia, mas não parava, corria para o interminável, Liam tentava me alcançar, pegou a espada de um soldado próximo da multidão, e só o vi erguer a espada contra mim e o brilho da lâmina.
— Isso acaba agora! — Liam exclamou.
Minha visão embaralhou.
Segunda Fase
Capítulo Quatorze – A realidade virtual
Nova dimensão
— Que palhaçada, Liam! — ouvi uma voz feminina reclamar. — Por que fez isso? — ela continuava repreendendo Liam, mas eu não enxergava nada, estava tudo escuro.
Só reconheci a dona da voz quando tiraram os óculos de meus olhos. Ao seu lado, com uma expressão assustadora, Liam me encarava com os braços cruzados. Ergui meu corpo para se levantar, mas Antônia, a neurocientista que falava, apertou meus ombros firmemente.
— Não devia ter feito isso, Liam. A história estava fluindo, mas você a interrompeu. — Ela olhou para Liam, irritada.
— Mãe, a senhora já passou dos limites, não concordo que continue brincando dessa maneira com a garota.
— Faz parte do experimento. — Ela se voltou para mim e sorriu. Desculpou-se pela ação repentina de Liam.
— O que aconteceu? — Eu não compreendia por que eles estavam discutindo, então a neurocientista explicou o experimento em que eu participava.
— Veja bem, estamos acostumados a ouvir sobre telepatia, mas não a encará-la como algo normal em nossas vidas, até porque não se pode conduzir dados de um cérebro a outro sem o uso da tecnologia. Por isso, queremos encontrar meios acessíveis para a concretização desse feito e estamos trabalhando nisso.
Ela segurou minha mão e me puxou, conduzindo-me à sala ao lado. Outros cientistas nos esperavam, sentei-me à mesa redonda de vidro. Antônia esclarecia as ilustrações dos slides no telão.
A primeira imagem era de uma pessoa deitada, com os eletrodos na cabeça e sua atividade elétrica cerebral sendo registrada por EEG (eletroencefalograma) e transmitida para o monitor.
No segundo slide, a ilustração mostrava uma pessoa se comunicando através dos pensamentos com outro voluntário em outro laboratório. Através do monitor central, os cientistas visualizavam os dados transitando de um ponto a outro.
— Mas o que foi que aconteceu exatamente comigo? — levantei-me subitamente e questionei sem entender o motivo de eu estar lá.
Antônia contorceu o rosto e me respondeu a contragosto.
— Na verdade, você estava num mundo que era possível ser visto através dos óculos de simulação virtual, entretanto com alguns ajustes exclusivos, selecionamos os voluntários para se comunicarem com você. Um banco de dados foi preenchido com todas as informações necessárias de cada voluntário entrevistado e daí conseguimos reestruturar cada personagem que esteve em contato com você.
Dito isso, Antônia voltou-se para seus slides e prosseguiu a explicação:
— Os resultados da teclepatia são incríveis; relatórios mostraram a capacidade de voluntários poderem aprender habilidades inéditas em suas vidas, sem vivê-las diretamente. Com isso, é possível aprender a dirigir um carro, pilotar um helicóptero. Também, é possível degustar algum alimento atípico de seu cotidiano e cheirar as mais diferentes fragrâncias de flores sem conhecê-las fisicamente.
Assistimos ao documentário titulado “As novas fases da tecnologia”, com duração de vinte minutos, em suma, mostrava tudo que havia sido dito por Antônia.
Após a reunião, saímos da sala e fui levada de volta ao laboratório.
— O robô está pronto? — Antônia perguntou ao Liam.
Liam demorou responder.
— Sim, mãe.
— Então, traga-o. Liona, você terá uma surpresa.
Liam entrou numa sala interna àquele laboratório e, em minutos, minha ansiedade acabou ao ver um robô em forma de esqueleto humano.
Meus olhos afixaram naquilo; Liam empurrava o suporte de rodas que carregava o robô androide.
— Ele está atrelado a você, querida. Todos os seus movimentos físicos serão compreendidos por ele, entendeu? Seus pensamentos também. Suas intenções, sentimentos serão registrados no software. Então, não pense em matar alguém, pois o robô a obedecerá antes que você possa desistir. Detalhe: O robô não deverá ficar distante de você por mais de dois metros.
— Eu não quero passar por isso. Quero voltar para minha casa, por favor, empreste-me um telefone — implorei.
— É um experimento, Liona. Você ficará conosco por alguns meses.
Eu olhei para a porta fechada e corri até ela, mas o robô me seguiu e segurou meu braço.
— Bem, agora quem está controlando a máquina sou eu, mas, em breve, será você. — Antônia sorriu sarcasticamente, segurando um computador portátil.
— Cadê Nemestrino? Eu vim com ele — perguntei indignada em ser mantida naquele lugar sem meu consentimento.
— Ele a deixou conosco.
Liam mantinha a cabeça baixa e os dedos das mãos entrelaçadas às costas.
— Liona, não insista. Deixe-me continuar com os testes, eu preciso fazer um relatório de acordo com o funcionamento do chip implantado em sua nuca.
— Eu quero sair!!! Me deixe sair daqui!!! Sua monstra! — urrei exasperada. Passei a mão em minha nuca e senti o pequeno chip sob a pele.
— Liam, acalme-a — disse Antônia, saindo sem se importar com meu desespero.
Liam não pôde se aproximar de mim, infelizmente, o robô possuía um sensor de proximidade e Antônia não deixaria que ninguém ficasse a menos de um metro de distância de onde eu estava.
— Liona, escute-me. — Liam se afastava do robô, que já estava programado a agredir fisicamente quem se aproximasse. — Eu não quero vê-la assim. Esqueceu que somos amigos? Criamos uma amizade sem mesmo nos conhecermos. Conversamos, salvamos a vida um do outro, portanto sou de confiança.
— Sua confiança não passou de manipulação — retruquei.
— Infelizmente, não poderemos conversar. Saiba que eu não quero que me trate como inimigo, eu não sou.
— Então, tire-me daqui! — pedi mais uma vez sabendo que ele seguiria as ordens de sua mãe.
— Tenho de sair, mas voltarei. Não faça nenhuma loucura, você tem um amigo. — Ele abriu a porta e a fechou, deixando-me sozinha e olhando para o chão. Aquela realidade era difícil de encarar, tudo o que eu mais desejava era reencontrar minha mãe e pedir desculpas pela minha teimosia.
Aproximei-me da janela e olhei para baixo, porém não havia coragem e estratégia que me fizesse sair daquele lugar. Decidi confiar em Liam e esperar sua chegada.
Algum tempo se passou e eu ainda permanecia ali naquela sala, que lembrava um hospital. O robô permanecia estático. Por enquanto, nenhum movimento era correspondido. Parecia que ele estava desligado. A minha atenção nele foi desviada pelo barulho de chave destrancando a porta; ao ver a maçaneta sendo girada, agachei-me rapidamente e me escondi debaixo da cama.
— Liona? Onde está? — reconheci a voz e, então, saí debaixo da cama arrastando-me.
— Bráulio?
— Está bem? — ele veio até mim e me ajudou a se levantar.
— O que está acontecendo comigo, Bráulio?
— Eu vim resgatá-la.
Ele me levou até a janela e olhou para cima, fez um gesto com a mão se comunicando com alguém que estaria em cima do prédio.
— Tem de ser pela janela. — Ele concluiu. — Sem pensar muito, Liona.
Ele havia trazido equipamentos de escalada. Entregou-me uma cadeirinha para vestir, em seguida, ele colocou a metade do corpo para fora e olhou para cima, em direção ao topo do prédio e fez sinais com os dedos. Bráulio puxou a corda e clipou o mosquetão na cadeirinha e, com cuidado, ajudou-me a escalar o prédio.
— Não tenha medo, entendeu? — Ele disse como se eu tivesse opção.
Não olhei para baixo, concentrei-me em segurar a corda, estávamos no último andar, então não demoraria muito para que eu chegasse ao topo do prédio.
Em seguida, outra corda foi jogada para Bráulio subir. Chegamos um pouco depois da chegada do helicóptero. Quem o pilotava era Sevidegh.
— Como você conseguiu entrar no prédio? — questionei enquanto entrava.
— Liam. Agradeça a ele — respondeu Bráulio.
Sevidegh ainda não havia se pronunciado. Senti-me como se eu ainda estivesse em outra dimensão. Aquelas pessoas eram conhecidas, mas eu não conseguia conversar normalmente com elas; o silêncio prolongado de Sevidegh me incomodou e eu não deixei sequer uma palavra escapar. Bráulio se ocupava de seu notebook. Ele estava no assento detrás.
O helicóptero desceu no heliponto do prédio Safira, segundo Bráulio. Através da janela, vi Liam balançando os braços acima da cabeça.
Saímos da aeronave e não aguentei, abracei-o e agradeci pela ajuda.
— Eu não lhe disse que era seu amigo? — disse Liam feliz em saber do êxito de minha fuga.
— Eu consegui distrair minha mãe e desligar o robô remotamente — continuou.
Bráulio ordenou que eu voltasse para o helicóptero, mas eu ainda não entendia por que. Agora éramos quatro pessoas.
Bráulio comentou a possibilidade de Antônia rastrear o chip.
Durante o voo, o silêncio se manifestou mais uma vez, mas a simpatia de Liam me trouxe esperanças de alguma conversa amigável se espalhar entre nós. Um outro helicóptero avançava em nossa direção, ele sustentava uma haste de ferro que, por sua vez, segurava um estofado vermelho.
— Conseguiram nos encontrar — disse Sevidegh, inclinando o helicóptero para despistá-los.
Liam abriu a porta, pois reconheceu sua mãe pilotando o helicóptero, ele balançava o braço e pedia a ela que parasse. Agarrado ao estofado, o robô pertencente a mim, estava numa posição pronto para saltar, contudo ele precisaria de menos distância entre nós.
— Mãe!!! Pare com isso! — Liam persistia em fazer Antônia parar, mas o helicóptero inclinou para a esquerda e Liam se desequilibrou.
— Liam!
Meu braço não o alcançou e ele caiu sem eu poder ajudá-lo. Aquilo não era um acontecimento fictício, realmente Liam caiu.
O meu desespero foi tão grande que, sem perceber, eu ainda esticava o braço, aproximando o corpo para fora do helicóptero, quase saltei, se Sevidegh não tivesse me puxado e fechado a porta.
— Temos de resgatar Liam!!!
— Está louca?! — exclamou Sevidegh.
Vi o desespero de Antônia, ela gritava pelo filho, e aterrissava com seu helicóptero; implorei para que Sevidegh fizesse o mesmo, porém ele se negou. Bráulio tentou me acalmar, mas eu ainda sacudia Sevidegh.
— Pare!!! Solte-me! — Sevidegh tentava se desvencilhar. — Não vê que não adianta mais? Liam morreu e estamos fugindo da mãe dele. Se quisesse evitar isso, não devíamos ter resgatado você.
Aquela verdade despejada por ele, feriu-me profundamente, ajeitei-me no assento e me calei com a lágrima e a culpa. Antônia e seu robô desapareceram. Fechei os olhos e evitei olhar para a realidade. Liam não estava morto em batalha. Quando pousamos no heliponto do prédio Esmeralda, Sevidegh me chamou com rispidez.
— Desce, Liona. — Ele ordenou.
— Liona, não fique com medo, estamos no laboratório Esmeralda e seu chip será retirado — disse Bráulio, ajudando-me a descer; enxuguei as lágrimas com as mãos, tentei me recompor. Bráulio permaneceu no helicóptero, que partiu levantando a poeira abaixo de seus pés. Olhei em volta à procura de uma solução. Meus olhos estacionaram diante de uma mulher magra, alta, com cabelos curtos e lisos. Ela não disse seu nome, mas quando já estávamos no elevador, ela me alertou que iríamos a um galpão.
— Qual seu nome?
— Giordana.
O primeiro pé que pisou no galpão não quis deixar o outro dar o próximo passo. A mulher que aguardava a nossa chegada com o cigarro na mão na altura de seu nariz, chegando à “bituca”, era Antônia.
A aspereza de sua voz feria meus ouvidos, ela chorava pela morte de Liam, seu filho. Culpava-me pelo ocorrido.
— Agora, de uma vez por todas, você não viverá mais sem ser monitorada. Traga o robô!
De repente, um carro vermelho entrou no galpão, olhei para o motorista e o reconheci imediatamente; usava óculos escuros, saiu do carro, trajando uma camiseta branca, com cachecol bege e calça jeans desbotada. Ele era conhecido de Antônia, pois ela deixou transparecer um mero sorriso ao vê-lo. Ao se aproximar dela, abriu os braços para acolhê-la. Senti uma pontada de traição no ar; aquele homem demonstrava seriedade em suas palavras quando admitia amar minha mãe, porém estava abraçando a inimiga, que está fazendo sua filha de refém. Nemestrino não me viu ou preferiu não me encarar diretamente. Os sussurros dos dois nãos eram audíveis, mas eu não desviava meus olhos, que permaneciam afixados naquele casal suspeito.
Dei largos passos para me aproximar rapidamente dos dois.
Nemestrino me avistou e largando-se dos braços de Antônia, veio ao meu encontro surpreso em me ver ali.
— Você está bem, Liona? — ele parecia realmente preocupado comigo.
— Está diferente, Nemestrino. — Não foi somente as roupas modernas que me surpreenderam, mas a sua voz suave e benévola.
— Sua mãe está bem. Ela está comigo. — Ele disse como se adivinhasse a minha preocupação com ela.
— Antônia, por favor, deixe-me levar Liona. — O pedido de Nemestrino não foi bem aceito, Antônia sentiu-se menosprezada, puxou seu braço e o levou até a cozinha improvisada, no canto à frente em que era possível ver um frigobar, mesa e cadeiras, além de um armarinho.
Ela demonstrava decepção com Nemestrino; aqueles dois tinham um passado. Antônia enxugou as lágrimas e respirou fundo, amarrou os cabelos pretos e pegou um isqueiro para acender um novo cigarro, retirado do bolso de seu jaleco branco.
— Eu já mandei irem atrás de Sevidegh, não se preocupe, Antônia — comunicou Nemestrino.
Antônia tragava o cigarro com ódio e expelia a fumaça.
— Como se capturar Sevidegh trouxesse meu filho de volta. — Ela retrucou.
— Então, não irá atrás de Sevidegh? — Nemestrino perguntou mesmo sabendo da resposta de Antônia.
— Lógico que irei!!! Quero vivo ou morto! Ele tem de pagar pela morte de meu filho! — Ela berrou. — Nemestrino, eu só vou libertar Liona quando eu prender Sevidegh.
— Deveria se importar com sua saúde, ainda mais sendo uma neurocientista — falei sem pensar.
— Cale-se! — Antônia retorquiu ainda descontrolada.
Nemestrino, silencioso, beijou a testa de Antônia e sussurrou algumas palavras que a deixaram quieta. Ela caminhou até um dos computadores.
— Cuide-se. E eu cuidarei de sua mãe — Nemestrino me abraçou decepcionado em me ver ainda ali.
Tive de tolerar ao vê-lo entrar no carro. Antônia não desgrudou os olhos dele.
Giordana ofereceu um copo de água, ela aconselhou que eu dormisse num sofá, no canto da parede. Segui seu conselho e procurei relaxar, tirar a tensão do corpo. Liam eclodiu em meus pensamentos.
— Acorde, Liona. Não é hora para descansar. Preciso encontrar meu filho.
Aquela voz pertencia à Antônia, contudo ela não estava em meus pensamentos, eu não conseguia vê-la. Abri os olhos e a vi sentada na cama ao meu lado. Fazia algumas horas que Nemestrino havia ido embora e a minha esperança também.
— Eu sei que você não teve culpa, Liona. Eu quero que Sevidegh sofra.
— Não, Antônia. Sevidegh não teve culpa.
Seus olhos vermelhos de tanto chorar não me ouviriam e não cederiam às minhas razões de defender Sevidegh.
Ela se levantou da cama em silêncio, mas logo seu celular começou a tocar.
— Encontrou? Ótimo. Traga-o para mim. — Ela desligou e não falou mais nada.
O barulho de motor anunciou a chegada de outro carro, desta vez, preto. No assento do passageiro, com a boca sangrando e com hematomas no rosto, tratava-se de Sevidegh. O motorista era Bráulio, que também carregava pequenas marcas acima da barba. Os dois haviam lutado. As mãos de Sevidegh estavam amarradas e foi retirado do carro grosseiramente por dois seguranças de Antônia.
Ajoelhado, sangrando e suando, Sevidegh permaneceu cabisbaixo, mas Antônia ordenou que ele se levantasse; sem condições de obedecê-la, os seguranças o ergueram com brutalidade e ela apertava seu pescoço. Com a outra mão, ela o esbofeteava.
— Pare, Antônia!!! — avancei nela, tentando segurar seus braços, contudo seus seguranças impediram minha passagem.
— Não se intrometa!!! Caso contrário, eu farei sua mãe me odiar pelo resto da vida. Aqui você não tem voz. — Ela sentenciou sua fúria.
Antônia voltou a bater em Sevidegh; um novo barulho de motor anunciava a chegada de mais alguém. Estiquei o pescoço para ver quem estava dentro do carro se aproximando. Nemestrino e minha mãe, consegui discernir seus rostos.
Antônia não se importava com mais nada, continuava a bater no rosto de Sevidegh. Nemestrino correu até segurar seu braço e impedi-la de prosseguir com as agressões.
— Solte meu braço, Nemestrino! — ela fuzilava seus olhos.
— Pare com isso, Antônia, antes que você se arrependa mais uma vez na sua vida. — Nemestrino exigia que ela parasse.
Fui até Sevidegh e me ajoelhei ao seu lado, supliquei à Antônia que me deixasse cuidar dos ferimentos dele.
— Liona, vamos embora. — Minha mãe me puxava pelo braço.
— Mãe, não vou sair enquanto eu não levar Sevidegh comigo, ele precisa de um médico. — Eu olhei para Nemestrino.
Bráulio não se movia, apenas observava.
— Ele ficará preso no depósito, mas se quiser, poderá cuidar de seus ferimentos e conversar pela última vez, é a única coisa que concedo. — Antônia sentenciou.
Bráulio ajudou Sevidegh a se levantar e o conduziu para o depósito.
Fomos até o local mal iluminado por uma lâmpada pendurada por fios soltos e Bráulio o colocou cuidadosamente no chão, em seguida, Giordana apareceu com uma maleta de primeiros socorros.
— Liona, você precisa sair daqui. — Bráulio molhava o pano no balde de água para limpar o rosto de Sevidegh.
— Não vou sair daqui. Você vai matá-lo.
— Não. Eu não machucarei Sevidegh. Ele precisa de cuidados e aqui ele terá, não deixarei que Antônia tome decisões prejudiciais a ele.
— Por que você o feriu?
— Não posso falar agora, mas nós conversaremos depois.
Giordana era a única pessoa na qual eu confiava, portanto sairia aliviada em saber que ela não deixaria que Bráulio ferisse ainda mais Sevidegh.
Quando saí do depósito, Nemestrino ainda conversava com Antônia e ela não deixava de olhar para minha mãe, que preferiu ficar dentro do carro. Nemestrino se despediu dela com um breve abraço.
Saímos do galpão e eu fechei os olhos aliviada em saber que estava indo para a casa. Dormi e perdi a noção de tempo, e quando abri os olhos, já estava em frente de casa. Minha mãe me entregou as chaves e pediu para ir na frente enquanto ela ainda conversava com Nemestrino.
Subi três degraus e parei diante da porta cor pistache. Destranquei a porta e entrei olhando para trás. Minha mãe deixou Nemestrino sem espaço para falar. A boca dela gesticulava aceleradamente e suas mãos inquietas inferia que ela discutia com ele.
Joguei-me sobre o sofá e senti meu corpo descansar e alongar.
O barulho do carro já anunciava a saída de Nemestrino, esperei a minha mãe por alguns segundos, mas sua demora me preocupou e ao sair de casa, não a vi na rua. Um carro azul se aproximava, e, com medo, tranquei a porta. Peguei meu celular e liguei para ela, mas ninguém atendia.
O tal do carro estranho estacionou em frente à minha casa e do carro saiu Sevidegh com o rosto ainda machucado, mas com curativos.
— Sevidegh!
Abri a porta para ele.
— O que está acontecendo? Nemestrino levou minha mãe e eu não sei o que fazer.
— Liona, eu preciso que venha comigo. Aqui não é seguro. Nemestrino está do lado de Antônia.
— E daí? Por que Antônia está contra mim?
Sevidegh não falaria mais nada, se eu ainda estivesse dentro de casa. Entrei em seu carro apreensiva e, então, ele pediu paciência.
— Por que evitou falar comigo no helicóptero? O que está acontecendo, Sevidegh?
Ele olhou de relance para mim e depois retornou a prestar atenção no volante.
— Não me pergunte mais nada, Liona.
Sem ter certeza sobre a pessoa que estava ao meu lado, restringi minha preocupação às ligações. Liguei alternadamente para minha mãe e Nemestrino até que Sevidegh se irritou e pegou o celular de minhas mãos.
— Devolva! — tentei pegar o celular dele.
— Pare, Liona! Não vê que estou dirigindo?! — ele jogou o celular pela janela.
— Infeliz! Por que fez isso?! — enraivecida, gritei.
— Se não quiser permanecer dentro carro, pule fora, mas não atrapalhe minha direção!
Destranquei a porta do carro, e ele acelerou o carro confiante de que eu não teria coragem de pular naquela velocidade. Tirei o cinto e empurrei a porta, respirei fundo.
— Feche essa merda, Liona!
Eu ainda segurava a porta, agora somente meu corpo a empurraria literalmente quando eu saltasse.
— Eu não vou desacelerar, Liona!
Olhei mais uma vez para Sevidegh e, de maneira inesperada, Sevidegh freou e fechou a porta.
— Liona, tenha paciência — disse Sevidegh calmamente.
Ele ofereceu uma garrafa de água.
— Obrigada, mas me diga para aonde iremos?     
— Diamante. — Foi sua última fala antes de atravessarmos o portão e subirmos a rampa para estacionar em uma das vagas disponíveis. Seu Escadas nos aguardava à porta de entrada do prédio.
— Minha neta — disse ele, manuseando a sua cadeira de rodas.
Ele se esforçou para se levantar, mas pedi para que não se incomodasse. Obstinado, levantou-se com a força dos braços para erguer seu corpo.
— Estou me recuperando, neta. Com um chip em minha cabeça e a cinta com revestimento. Começamos com testes em que um software controlava minhas pernas como se elas fossem robóticas e depois os comandos passaram a ser efetuados pelo meu cérebro. Vamos ao laboratório, tiraremos esse chip, Liona.
Seu Escadas voltou a se sentar em sua cadeira e nos conduziu até o elevador.
— Ele está lá em cima, Seu Escadas? — Sevidegh questionou.
— Sim. Ele está no oitavo andar — respondeu Seu Escadas, apertando o botão número oito.
— De quem vocês estão falando? — olhei para os dois, que se entreolhavam, escondendo a identidade da pessoa. — Por quê?
— Espere até chegarmos — disse Sevidegh, olhando para o espelho do elevador, ajeitando sua roupa e cabelo.
Quando chegamos ao oitavo andar e as portas se abriram, Giordana segurava um ramo de flores coloridas.
— Giordana?
— Podem entrar, ele está aguardando a sua visita, Liona. Eu levarei esse ramo de flores para colocar no vaso.
Ela entrou no elevador e nós, Seu Escadas, Sevidegh e eu, ficamos parados no corredor.
— Sigam-me — orientou Seu Escadas, aproximando-se em uma das portas. Bateu duas vezes.
— Não sei para que tanto suspense — suspirei irritada de não receber informação de nada.
— Sejam bem-vindos — disse o homem desconhecido, que disseram ser meu pai. — Liona? — Ele olhou para mim e estendeu sua mão. — Sou seu pai.
— Finalmente, pai e filha se encontram — disse meu avô, Seu Escadas.
— Entre e sinta-se à vontade.
Olhei para Sevidegh e depois para meu avô.
— Cadê minha mãe?
— Ela está aqui dentro, Liona. Tive a ajuda de sua mãe para que nosso encontro acontecesse.
Entrei no local, Sevidegh e meu avô vieram em seguida. No ambiente mal iluminado não havia ninguém. Chamei pela minha mãe, mas ninguém estava dentro da sala do escritório.
— Sua mãe está hospedada no quarto ao lado, filha. Antes, ela quer que eu converse com você. Meu pai e seu amigo podem ficar, quero que eles presenciem o meu nobre arrependimento de tê-la abandonado ao nascer.
— Espere um segundo. Eu soube que você não tinha conhecimento da minha existência. Como assim você me abandonou?
— É que para minha percepção foi considerado um abandono, afinal, deixei de ter contato com sua mãe e se eu a abandonei, então foi o mesmo que fiz a você.
Ele puxou uma de suas cadeiras estofadas para que eu me sentasse, mas preferi ficar em pé.
— Seu nome é Joseph, não é?
— Isso, filha. Prefiro que me chame de pai.
— Seu Joseph, eu não quero incomodá-lo, mas estou aqui pela minha mãe. Se ela está aqui, portanto me leve até ela.
— Liona, mas e a nossa conversa?
— Eu perdi qualquer entusiasmo em encontrar o senhor, por favor, perdoe-me. Eu só quero minha mãe.
Nitidamente abalado, Joseph pegou o telefone de sua mesa e discou o número.
— Anne, sua filha está aqui e quer vê-la. — Ele colocou o telefone no gancho e voltou a falar comigo.
— Tome cuidado, Liona. Eu salvei sua mãe das mãos de Nemestrino. Espero que possamos ser uma família.
— O senhor salvou minha mãe?
— Eu não deixarei que Nemestrino chegue perto de vocês. — Vê-lo chorar e dizer que protegeria minha mãe, fez-me correr aos seus braços e chamá-lo de pai.
— Obrigada, pai. O destino nos separou, mas o amor que sente pela minha mãe era tudo que eu precisava saber.
Seu Escadas permaneceu com seu filho e Sevidegh me levou até o quarto ao lado.
— Desculpe-me por ter sido inconveniente com você, Sevidegh.
— É meu trabalho suportar pessoas como você.
— Trabalho?
— Eu trabalho para seu pai e tudo que fiz até agora foi protegê-la.
A porta do quarto de minha mãe já estava aberta e ela me recepcionou com um grande aperto, mas sua têmpora estava ferida.
— O que houve, mãe?
— Levei um golpe de Nemestrino. Eu apaguei e ele me levou como refém até o laboratório de Antônia e foi graças ao amor de seu pai que me trouxe até aqui em consciência.
— Joseph é uma boa pessoa, mãe. A senhora deveria voltar para ele. Vocês precisam conversar sobre o passado e o futuro que pretendem ter.
Pude reconhecer a verdadeira alegria nos olhos dela. Ela se sentia mais segura em conversar quando falava de meu pai. Qualquer resquício de mágoa do passado havia desaparecido, tantos anos se passaram, mas o amor deles era verdadeiro e eu lutaria para que voltassem.
À noite, nós duas dormimos em camas postas lado a lado, porém acordei assustada, percebi que mais alguém estava acordado, pois vi a luz do corredor acesa pelas frestas da porta.
Furtivamente, saí do quarto. Olhei para os dois lados e não avistei ninguém.
— Liona. — Uma voz sussurrava no pé do ouvido, virei impetuosamente para quem me chamava. Meu coração acelerou e não consegui gritar, senti um pânico.
— Não grite — disse a mulher conhecida por dois nomes: Cleura e Euclediana. Ela ainda mantinha seus cabelos volumosos amarrados no topo da cabeça. Sua vestimenta contemporânea não passava de uma calça azul, blusa branca dentro da calça de cintura alta.
Apertou meu antebraço e me puxou em direção ao elevador.
— Solte-me! O que está fazendo aqui?
— Acompanhe-me, não posso explicar agora.
— Tenho de chamar minha mãe — disse, soltando-me da mão dela.
— Não dá.
O elevador abriu e Bráulio estava de braços cruzados, com seus óculos escuros.
Descemos até o estacionamento. Cleura ou Euclediana, não sabia como chamá-la, apressou-me para dentro do carro.
Para minha surpresa, o motorista era Rondon.
— Rondon. — Eu me inclinei para frente, apoiando-me no assento ao lado dele.
— Fala, Liona. — Ele sorriu e balançou a cabeça. — Vamos dar uma voltinha.
Ele saiu do prédio e seguiu caminho através de uma avenida.
— Lamento pela morte de Liam — disse Rondon, olhando para frente.
— Eu sinto que ele está vivo.
— Dentro de todos nós. — Rondon continuou.
— Não é dessa maneira que ele está vivo, Rondon.
— O helicóptero está nos esperando, Rondon? — perguntou Bráulio, sentado no assento ao lado do motorista.
— Não se preocupe, já contatei o piloto.
Pela janela, as luzes de prédios, casas, centros comerciais se distorciam com a velocidade do carro.
— Já chegamos! Descem do carro imediatamente! — Rondon ordenava aos berros.
Corremos contra a friagem e entramos num helicóptero maior com capacidade de dez pessoas.
Cleura sentou-se ao lado do piloto, que usava um boné.
— Por que não cumprimenta o piloto, Liona? — Ela aconselhou com um sorriso largo.
O piloto deixou escapar uma gargalhada, tirou o boné e deixou à mostra o volume castanho de seus cabelos crespos.
— Sentiram falta de alguma escada para subir, pessoal?
— Vovô! — surpreendi-me ao vê-lo. — O senhor não estava no prédio?
Ele não parava de gargalhar, só faltava quebrar os vidros das janelas.
— Chega, velho! — Cleura deu-lhe um tapa.
— Não se incomode, minha velha, estou feliz. — Ele respondeu e beijou Cleura.
Fiquei perplexa ao saber que eles estavam juntos.
— Tome cuidado para não sermos rastreados, Bráulio! — lembrou Seu Escadas, olhando para trás e sorrindo.
— Estou acessando a rede através de uma VPN. Ele disse que já está no prédio Ametista.
— Ele quem?
— Liam — respondeu Bráulio focado em seu notebook.
O helicóptero fez um voo rasante e assustou a todos. Seu Escadas, nem um pouco preocupado, gargalhou mais uma vez e estabilizou o voo quando se aproximava do heliponto do prédio Ametista.
O helicóptero pousou, então descemos ainda levando vento no rosto por causa das hélices, que gradualmente perdiam a velocidade. As luzes do helicóptero iluminaram Nemestrino agarrando Liam pelo pescoço e o ameaçando a jogá-lo do prédio.
— Solte Liam, Nemestrino!!!
— Cale-se, Liona! Menina irritante. Por sua culpa, nunca poderei ser feliz ao lado de Anne.
— Nemestrino, não faça isso, se não quiser se arrepender depois. — Bráulio se aproximava cautelosamente com as mãos erguidas.
— Por que eu me arrependeria? — arquejante, Nemestrino apertava o pescoço de Liam.
— Monstro!!!Solte Liam. — Não suportei, corri e passei por Bráulio, que tentou me puxar, mas eu desvencilhei dele e avancei em Nemestrino. Liam conseguiu socar as costelas dele e sair de seu domínio. Bráulio avançou para imobilizá-lo.
— Liona! — Liam massageava o pescoço. — Obrigado por me defender.
— Você está vivo.
— Agora sim. — Ele se aproximou e me abraçou.
— Eu o amo, Liam — falei sem pensar.

Terceira Fase
Capítulo Quinze — A verdadeira realidade
Realidade física
Novamente, tudo escureceu e a imagem de Liam desapareceu. Nós estávamos juntos, eu o abraçava e ele sorria, mas tudo foi desfeito pela obscuridade. Alguém retirava os óculos simuladores de meus olhos. Antônia estava ao pé da cama, rindo e dando instruções para outra pessoa que manejava uma câmera com iluminador.
— A filmagem acabou? — Antônia perguntou. —Tivemos uma boa audiência? Muitos internautas? — ela perguntou ao outro homem que estava no computador.
O homem confirmou com a cabeça e disse que mais de trinta mil pessoas assistiam online.
— Como você está, Liona? — ela se virou para mim, ajudando a me levantar e explicando que eu participava de uma experiência e que meus pensamentos eram traduzidos no monitor ao lado.
— Como assim? — perguntei sem entender.
— Querida, seus pensamentos foram lidos e transmitidos ao vivo para milhares de pessoas. E sabe o que foi emocionante? Liam e você. Acredita que ele também foi nosso voluntário?
Descobri que eu seria zombada por pessoas desconhecidas por ter meus pensamentos expostos.
Não quis ouvir mais nada de Antônia, a presença dela era insuportável, levantei-me atordoada e corri até a porta, entretanto ela pegou meu braço.
— Largue-me! Não ficarei mais um segundo aqui, chega!
Ela começou a rir de mim.
— Não se estresse! — Ela dizia enquanto perambulava de braços cruzados pelo laboratório. — Você foi mais uma das voluntárias a testar a telepatia computacional. Conseguimos fazê-la acreditar que já estava acordada e isso envolveu o público e você expressou mais os seus sentimentos, principalmente por Liam.
Ela continuava a tentar me convencer de que era algo extraordinário conhecer pessoas sem vê-las pessoalmente.
— Eu não devia ter assinado alguma autorização?
— Sim, mas Nemestrino é meu amigo de muitos anos e quando eu soube que você é filha de Joseph, então achei que seria interessante.
— Interessante o quê? Abalar minhas emoções? Fazendo eu conhecer meu pai num mundo virtual? Você não tinha esse direito!
— Desculpe-me, Liona. Minhas sinceras desculpas.
Virei a maçaneta e abri a porta. Percorri o corredor e avistei Nemestrino sentado com as mãos apoiando a cabeça.
— Direi à minha mãe que não deve confiar em você. — Ele ergueu a cabeça assustado ao me ver.
— Liona! E aí? O que houve? — Ele se levantou.
— Como pôde me deixar sozinha naquele laboratório?
Nemestrino desculpou-se e explicou a sua intenção ao me trazer naquele lugar.
— Antônia me garantiu que você iria se comunicar com seu pai através da telepatia computacional. Seu pai está longe daqui e Antônia sabe seu paradeiro. Eu tive de dizer tudo a ela e, ao se comover, garantiu que iria facilitar o encontro de vocês através da tecnologia. E como foi?
— Não sei. Conheci outras pessoas e só no final é que eu pude conhecê-lo. Só sei que eu via você como uma pessoa má, que agrediu minha mãe.
Nemestrino resistiu ceder minha passagem, ele implorou a minha permanência para suas explicações. Ele iniciou ao se desculpar pelo constrangimento, pois não sabia que Antônia fosse me enganar.
— Escute-me, Liona. Eu jamais machucaria sua mãe. Você fez parte de um experimento de realidade virtual, onde tudo poder ser manipulado.
— Nemestrino, você mentiu para mim.
— Eu fui enganado também. A verdade é que você me pressionou, portanto não reclame. E agora sua mãe vai me odiar.
— Depende. — A voz pertencia a ela e vinha detrás dele. Ele se virou e não perdeu tempo ao tentar abraçá-la.
— Por favor, Anne. — Nemestrino não deixava ela se aproximar de mim. — Eu sei que deve estar chateada comigo.
— Sai da minha frente, quero falar com Liona. — Ela o empurrava. — Recebi ligação de uma mulher e ela disse toda a verdade. Eu nunca irei perdoá-lo. Por que trouxe Liona para cá? Por que você quis que Liona odiasse Joseph?
— Não, eu jamais pediria isso. Antônia disse que teve notícias de Joseph, e que ele estava em um dos prédios desativados, e que aceitaria a se comunicar com a filha utilizando teclepatia.
— Eu não vou acreditar nisso quando temos telefone para facilitar a comunicação. Minha filha não é rato de laboratório para sofrer a exposição em que esteve diante de milhares de pessoas!
Sem mais argumentos, Nemestrino parou de insistir em segurá-la.
Presenciei suas lágrimas, ela não o deixava mais se explicar, ele gaguejava sem saber convencê-la. Minha mãe me arrastava pelo braço.
— Mãe, vamos ficar.
— Ficar para quê?
— A senhora precisa conversar com Nemestrino. Deixe-o se explicar. Por mais que ele tenha errado, ele a ama. Depois de ouvi-lo, sua sentença terá de ser aceita por ele.
— Está falando de um jeito diferente, Liona.
Ela coçou os olhos e seguiu meu conselho. Afastei-me dos dois e Nemestrino parecia desesperado. Antônia saiu não gostou de ter visto o momento em que Nemestrino abraçava minha mãe. Os dois se reconciliaram.
— Tentou destruir, mas fortaleceu. — Eu disse a Antônia quando passava por ela.
— Bem, vamos embora. — Apressei os dois e olhei de soslaio para Antônia, sua expressão era incrédula.
Descobri que Sevidegh, além de existir, era filho biológico de Antônia e Almáquio, que estavam separados. Sevidegh veio me visitar e se desculpar pela mãe.

E o dia de conhecer meu pai aconteceu no dia que Seu Escadas me convidou para um passeio e minha mãe foi junto. Pegamos um ônibus, conversamos pouco durante a viagem, meu avô deu o sinal de descer, e andamos pelas calçadas esburacadas até pararmos diante de um portão de ferro.
— Que lugar é esse, vovô? — perguntei a ele.
Antes que sua voz tomasse forma, o portão se abriu, um homem calvo de óculos escuros nos atendeu e fomos guiados através de um corredor obscuro e longínquo; era possível ouvir barulhos como golpes em paredes. Eu apertava a mão de minha mãe apreensivamente, a cadeira de Seu Escadas era empurrado pelo segurança.
O corredor era iluminado pelas lâmpadas fluorescentes tubulares afixadas no teto. Uma porta desceu e se transformou em uma rampa, facilitando a passagem de meu avô.
Emergiram várias pessoas, estudando próteses robóticas e robôs humanoides.
Outro homem surgiu usando um sobretudo, com os cabelos raspados rente à cabeça, aproximou-se de nós, agachou diante de Seu Escadas e beijou suas mãos, mesmo com óculos, seu semblante era familiar.
— Seja bem-vindo, pai.
Ele se levantou, encarou minha mãe e os dois eram conhecidos.
— Oi, Anne.
— Oi, Joseph. — Ela o cumprimentou com um breve aperto de mão.
Ele se virou para mim e parecia me reconhecer, deu um sorriso tímido.
— Minha filha? — Ele questionou ainda me olhando.
— Já sabe que ela existe? Ela se chama Liona.
O nosso cumprimento foram sorrisos envergonhados, seguido de um aperto de mãos. Ele esperava mais de mim, mas eu não conseguia abraçá-lo e chorar.
— Vocês são pai e filha — disse Seu Escadas, esperançoso.
— Meu pai falou sobre ela quando nos reencontramos. O tempo será nosso amigo — disse Joseph, chamando Austo.
A semelhança entre os dois era tão grande que ninguém seria capaz de dizer que não eram pai e filho. E já no meu caso, éramos muito diferentes, porém não faltava nenhuma característica minha que não fosse idêntica à minha mãe.
— Bem, foi bom revê-lo. Agora, vamos embora, não é, Liona? — Minha mãe não se sentia confortável, talvez, o passado ainda a machucava.
— Fiquem. — Joseph pediu. — Temos de atualizar as nossas conversas, Anne.
— Joseph, sua filha está aqui diante de você. Ela é a única coisa que nos liga.
Seu Escadas resolveu a encruzilhada da conversa escolhendo Antônia como o novo centro da conversa. Agradeci a ele em pensamento; ele sabia o quanto eu temia o rumo que aquela conversa terminaria.
— Estamos aqui para você conhecer sua filha, mas também para falar de Antônia. Ela esteve com nossa filha por um tempo e a fez passar por uma experiência sem autorização. Ela teve os pensamentos expostos para o mundo.
Joseph contorceu a boca.
— Melhor irmos — aconselhou minha mãe, que estava desconfortável.
Despedi-me de meu avô e tentei levá-lo comigo, mas ele preferiu ficar com seu filho e neto. As três gerações semelhantes e juntas.
Idealizei demais. Sonhei com um encontro em que meu pai chorava e me abraçava fortemente, mas até o encontro com a mentira de Nemestrino teve mais emoção.

                                                  Capítulo Dezesseis – O casamento
                                                            Dia especial para Anne
Não demorou muito tempo para Nemestrino pedir minha mãe em casamento. Ela entrou na igreja lindamente com seu vestido de renda, branco e longo, cabelos cacheados, além de carregar em seu pescoço o diamante que ela escondia por tanto tempo dentro da caixinha em seu quarto.
Em passos curtos, ela se aproximava segurando o buquê de rosas vermelhas. Entrou sozinha, mas acompanhada de todos os olhares admirados. Nemestrino não detinha as lágrimas, trajava paletó preto com sua típica gravata vermelha. O rubi de seu anel no dedo médio da mão direita reluzia.
Os dois deram as mãos e se atentaram às palavras do padre. Após o término da cerimônia, fomos ao salão de festas. Tomei uma taça de champanhe e dancei ao som de várias músicas antigas e atuais. Reencontrei parentes depois de tanto tempo sem vê-los. Saí do salão pelas portas dos fundos e fiquei na calçada lembrando de Liam e o constrangimento de meu nome na internet. Sevidegh saiu de um carro do outro lado da rua. Andei até ele e o aguardei na calçada. Ele foi convidado, exceto sua mãe.
— Não compareci à cerimônia, lamento. — Ele me abraçou.
— Não se preocupe.
— Eu vim atrás de minha mãe, Liona. Ela veio transtornada para cá.
— Sério?
— Ela está aí dentro?
— Não.
— Ela ama o Nemestrino e ainda não superou a separação.
— Eles foram casados?
— Antes de eu nascer. Ficaram casados por dois anos.
A história não teve continuação, pois Antônia saiu do salão pelos fundos, jogou a taça no chão, quebrando-a em vários cacos.
— Mãe? Por que está agindo como uma desestruturada? — Ele se aproximou dela, puxou seu braço e a levou em direção ao carro, que estava estacionado do outro lado da rua.
— Agora sua mãe vai me pagar, eu ainda vou pisar na ferida mais dolorida dela. — Ela me ameaçou ao passar por mim.
— Desculpe-me, Liona. — Sem jeito, Sevidegh carregava sua mãe nas costas.

No outro dia, acordei mais tarde, aproveitando o sábado, mas ninguém estava em casa e pelo que eu sabia, por enquanto, os recém-casados não viajariam.
Tomei o café preparado e deixado por minha mãe e havia um bilhete sobre a mesa.
“Filha,
Quando acordar, tome seu café e aguarde nossa chegada antes do almoço. Fomos resolver alguns negócios fora de casa.
Beijos
De: Anne”
Sentei à mesa e fiquei dobrando e redobrando o bilhete até perder as contas.
Passei pela sala e fui à janela para dar uma olhada no mundo afora; um carro estacionou ao lado da calçada, três robôs humanoides com olhos enormes e azuis-escuros desceram.
A tamanha semelhança com esqueletos impressionava, além da habilidade de se deslocarem no chão. Caracterizado em ser humano, um dos robôs pareceu perceber minha presença do outro lado; em desespero, subi as escadas e me escondi debaixo da cama. Tentei controlar minha respiração ofegante. Ouvi pisadas subindo os degraus, tampei a boca para que o som de minha respiração desesperadora fosse abafado.
A porta se abriu e o pé de metal reluzente adentrou-se mostrando suas falanges compridas.
Um momento de silêncio seguido por dois olhos fuzilantes encarando os meus amedrontados. O susto ao ver aquele robô se agachar e me olhar, paralisou qualquer movimento meu.
— Liona, venha conosco. Não há por que temer. — Aquela voz emitida por aquele robô era idêntica ao de Joseph. A mão biônica virada para cima estendida, significava ajuda.
— Joseph? — perguntei.
— Sim. Sou eu, seu pai. Levante-se daí.
Arrastando-me pelo chão, saí debaixo da cama e desamassei minha roupa incorporada pela poeira.
— Se a assustei, desculpe-me. Viemos para levá-la a um lugar seguro. Vamos, Liona.
Eu os segui. O robô que representava meu pai dirigiu o carro como faria um homem normal. Fui levada para um hotel distante, mandaram-me descer e avisar a minha chegada ao porteiro.
— Não fique com medo, filha.
— E minha mãe?
— Ela está com Nemestrino. Os dois estão bem.
Saí do carro e conversei com o porteiro que estava em sua cabine.
— Olá, meu nome é Liona. Disseram que eu deveria comunicar minha chegada ao senhor.
— Opa! Isso mesmo. Tome, aqui está sua chave e o número de seu quarto. — O porteiro me entregou uma chave dourada e um bloco de papel escrito à mão.

     Capítulo Dezessete — A dor da mentira
      Poucos dias, mas intermináveis
Perpassei o saguão do hotel, entrei no elevador que continha três pessoas, um homem ao celular, uma mulher de nariz empinado, com cabelos castanhos e longos, e um garoto mexendo no celular, olhei de esguelha para a tela do aparelho do menino e vi que ele tentava passar por obstáculos com seu robô de forma humana. Estremeceu-me aquela coincidência. O homem desceu no segundo andar, enquanto que a mulher, no quinto andar e o garoto permaneceu no elevador quando eu desci no sétimo andar. Olhei para o pequeno bloco amarelo com o número 74, então deduzi que seria o número do quarto. Por mais que eu tivesse a chave guardada no meu bolso esquerdo da calça, preferi bater à porta. Três batidas. Apertei a campainha. Um homem de óculos escuros com uma jaqueta preta saiu do elevador. Olhei rapidamente. Percebi sua aproximação, mas achei que ele pararia no quarto ao lado, 75. Entretanto, ele parou ao meu lado e, com uma chave dourada, abriu a porta do quarto 74.
— Em breve, irão implantar o cartão magnético. — Ele esperou que eu entrasse antes dele.
Hesitei.
— Entre, não tenha medo. Sou Alessandro, prazer. — Ele estendeu a mão para mim.
— Prazer. — Retribuí o aperto de mão. — Eu preciso ficar aqui?
Ele olhou para os lados do corredor e insistiu a minha entrada, alegou que não poderia dar explicações enquanto eu não entrasse. Obedeci.
Alessandro se sentou numa poltrona tom de areia, retirou o seu celular do bolso direito e ficou absorto nele por alguns minutos até que eu terminasse de averiguar o quarto de hotel.
Parei na sua frente e ele guardou o celular. Encarou-me e disse:
— Você não ficará sozinha. Giordana ficará com você por alguns dias. — Ele se ergueu da poltrona e foi até a porta. Fez menção de sair, mas antes me aconselhou a se acalmar.
— Giordana é confiável e você sabe que seu pai está fazendo de tudo para protegê-la. — Sorriu e saiu.
Sentei-me na poltrona em que ele havia estado e fiquei distraída com uma mesa de vidro. Nela, estava um telefone fixo. Passei o dedo indicador no vidro e procurei por poeira, mas não tinha. Fiz isso à toa, porque de longe dava para ver o brilho da limpeza.
A campainha tocou e acabei me assustando; olhei pelo visor da porta e reconheci Giordana.
— Seja bem-vinda — disse Giordana, entrando no quarto sem ser convidada. — Oh, sinto que fui um pouco mal-educada, aliás, você deveria estar me dando boas-vindas. Tem alguma coisa para beber? — Ela achou o frigobar e pegou um refrigerante gelado.
— Sou meio doidinha, mas pode confiar.
Jamais pensei que ela fosse diferente da Giordana que conheci no experimento.
— Você viu o cara interessante que esteve aqui? — fiquei na dúvida se ela estava falando de Alessandro.
— Alessandro?
— Você também achou ele interessante...
— Foi o único que esteve aqui. — Franzi o cenho.
Giordana terminou de beber seu refrigerante e se jogou na cama.
— Essa é minha! — Sem tirar os calçados, ela ficou alisando a cama, bagunçando os lençóis.
— Fique à vontade — digo a ela.
A apreensão de passar alguns dias ao lado de Giordana diminuiu ao conhecê-la melhor. Três dias passei ao lado de sua companhia, foi o tempo marcado. Giordana arrumou suas malas no quarto dia e se despediu de mim após tomarmos café. Implorei para que ela ficasse e dissesse o paradeiro de minha mãe e Nemestrino, mas ela soube me distanciar dos verdadeiros problemas com suas histórias engraçadas. Giordana trabalhava para o meu pai, seu papel naquele hotel era me trazer tranquilidade.
— Foi bom passar esses poucos dias com você, garota. — Beijou meu rosto e deu-me um abraço. – Alessandro virá para visitá-la, mas tenho certeza que já se acostumou em ficar aqui, então espero que supere mais o dia de hoje sozinha. Promete que vai aguentar?
— Não tenho escolha — respondi desanimada.
Ela me deu um último abraço antes de atravessar a porta e me deixar a ver teto.
Duas horas depois, enquanto eu assistia à televisão, a porta se abriu e eu saltei do sofá e me deparei com Alessandro com suas típicas vestimentas escuras e seus óculos escuros. Ele tirou os óculos e os pendurou na gola da camisa branca.
— Desculpe-me por entrar sem apertar a campainha ou bater à porta. — Ele fechou-a. — Eu vim saber como está.
— Sentindo-me sozinha.
— Posso ficar e lhe fazer companhia. — Ele sorriu e se sentou ao meu lado no sofá.
— Vou ficar aqui até amanhã? — perguntei apreensiva.
— Sim. Amanhã será o último dia. Escute-me, eu vou lhe passar o número do meu celular. Assim que suas malas estiverem prontas, ligue para mim e eu virei buscá-la. — Ele disse entregando seu cartão e o celular que eu usaria para ligá-lo.

Acordei cedo com o barulho do alarme. Às seis horas da manhã, enrolei para sair da cama, mas com muito esforço e bocejos, levantei-me quase caindo.
Ouvi uma barulheira de gritos e pancadas surdas, então fui até a sacada e vi o porteiro lutar contra um homem. Eles socavam um ao outro e gotas de sangue eram perceptíveis no chão. Os seguranças do hotel foram amarrados. Saí do quarto, corri pelas escadas, talvez, não era ideal usar o elevador. No quinto andar, encontrei Tiziana, Belquier e Clausto sentados nos degraus. Belquier e Clausto jogavam xadrez e Tiziana estava no celular.
— Oi! — cumprimentei-os, mas não esperava que eles soubessem quem eu era.
— Liona! — Tiziana me olhou com seus olhos escuros e brilhantes.
— É tão bom reencontrá-los, pena que não nos conhecemos de verdade.
— Sabemos tudo sobre você. E é tão legal vê-la pessoalmente, aliás, tornamo-nos amigas.
— Oi, prazer. — Clausto deu aceno rápido e envergonhado.
— Essa é a doida que se assumiu para o Liam? — perguntou Belquier, olhando atentamente para as duas peças rainhas que possuíam. — Sua vez, moleque!
Clausto saiu fugindo com seu rei das duas rainhas. Belquier moveu sua rainha e o rei de Clausto ficou em xeque pela diagonal.
— Não ligue para ele, Liona. — Tiziana me chamou para subir dois degraus acima dos garotos e me abraçou.
— Você soube da novidade?
— Que novidade? — perguntei sem compreender.
— Liam se casará com Sira. Tive a oportunidade de conhecê-los. São legais. — Ela continuou.
— Desejo felicidades a eles e lamento por constrangê-los.
— Não fique assim, na internet tem uma turma que está zombando de você, mas tem outra que está torcendo para que você fique com Liam. Você gosta dele de verdade?
— Não — respondi, cansada da mesma história.
De repente, lembrei-me que eu deveria ligar para Alessandro. Digitei seu número no celular e aguardei.
Duas chamadas e nada. Persisti até entrar na caixa postal.
— Ele não atende! — reclamei em voz alta.
— O que foi, Liona? — Tiziana indagou, olhando os garotos terminando o jogo.
— Vou ligar novamente.
Primeira chamada, segunda chamada, terceira chamada e pronto.
— Alô? — A voz do outro lado era rouca.
— Por favor, gostaria de falar com Alessandro — disse com medo de ter acontecido algo com ele.
— É você, Liona?
— Sou.
— Então, volte para seu quarto, pois seu amiguinho está aqui e dependendo da sua demora, ele pode não estar mais. Escute a voz dele.
— Liona!!! Não venha, fuja!!! — e o telefone desligou.
— Alessandro! Tenho de correr daqui.
— O que houve, Liona? — Tiziana sentiu a minha angústia.
— Alessandro, meu amigo está em perigo e preciso de ajuda.
— Será que podemos ajudar?
Belquier e Clausto guardavam as peças de xadrez.
— Tiziana, fique com este celular e ligue para minha mãe. É a única coisa que peço.
Abracei cada um dos três e corri para alcançar o sétimo andar. Deixei lágrimas nos degraus inferiores. Apressei o quanto pude, mas a falta de fôlego veio pesadamente sobre mim. Alcancei a porta 74, e com as mão tremendo, a situação me deixou entre fugir ou entrar. Abri a porta e me deparei com Alessandro machucado e as mãos algemadas.
O maior robô de todos, aproximou-se, e em sua face havia uma tela, e era possível ver que se tratava de uma tela embutida mostrando Antônia em tempo real.
— Liona, se quiser deixar esse homem vivo, por favor, acompanhe-nos. — Era possível ver que ela estava no laboratório Rubi.
— Sim. O que querem comigo? Deixe Alessandro em paz.
—Vamos. — O único ser humano veio ao meu encontro, conduzindo-me para fora do quarto.
— Preciso falar com ele. — Tentei me desvencilhar do homem, mas só pude ver Alessandro boquiaberto.
Nossos olhos se encontraram e não quiseram mais se separar. O robô de Antônia ficou e o medo de algo ruim acontecer com meu amigo não saiu da cabeça.
Entramos no carro e seguimos rumo ao laboratório Rubi. O silêncio me sufocou.
Talvez, não nos veríamos tão cedo, mas Alessandro não sairia de meus pensamentos.

Antônia estava do lado de fora do carro, braços cruzados, seu típico jaleco branco e blusa laranja. Seus cabelos esvoaçantes, brilhavam e seus lábios comprimidos significavam tensão. Retirei-me do carro e parei diante dela, esperando suas instruções.
— Alessandro ficará bem?
— Sim. Eu jamais faria algum mal contra alguém. Apenas ameacei para tê-la de volta.
— Por que você precisa de mim, Antônia?
Não devia ter questionado; Antônia sempre amou Nemestrino e a única forma de atraí-lo era me atacar. Ela faria o que estivesse ao alcance de suas possibilidades para atrapalhar o casamento de minha mãe.
Segui seus passos de volta ao laboratório, de volta àquela cama fria, de volta àquelas aparelhagens de telepatia artificial.
Lembrei-me de Sevidegh e quis saber onde ele estaria.
— Por que você quer acabar com o casamento de minha mãe?
— Nemestrino.
— Não importa muito se vocês tiveram um passado, porque ele não faz mais parte do seu presente.
Ela se irritou, mas se calou. Enquanto eu esperava alguma maneira propícia para fugir, ela não saía de frente ao computador. Mais de trinta minutos se passaram, e eu só querendo uma resposta de verdade. De maneira inesperada, Sevidegh abriu a porta e soltou uma exclamação.
— Mãe! O que está fazendo com Liona?!
— Nada, filho. Quem disse que Liona estava aqui?
— Não importa! Já disse para deixá-la em paz. Ela não tem a ver com sua loucura, mãe.
— Loucura? Está me chamando de louca?
Antônia não soube superar e acabou deixando uma lágrima escorrer.
— Seu pai chegará de viagem e não quero que ele saiba disso. Saia da minha frente, Sevidegh.
Enfurecida, Antônia passou por eles.
— Quem disse a você que eu estava aqui? — olhei para ele.
— Alessandro. Ele estava muito preocupado e me disse quando eu fui buscá-lo do hotel.
— Vocês se conhecem?
— Sim. Vamos sair daqui. — Saímos daquela sala e fomos em direção ao elevador. Descemos no térreo e avistamos Alessandro ser carregado pelos seguranças robôs.
— Solte-o! — Sevidegh ordenou.
Os robôs se viraram para Sevidegh e não obedeceram às suas ordens e o levaram à força para outro corredor. O robô, que segurava Alessandro, deixou-o jogado no chão e veio me agredir, empurrando-me para longe. Quase bati a cabeça na parede, mas quando ele continuou a vir para cima de mim, Alessandro entrou no meio e acabou sendo empurrado brutalmente. Havia fraturado a clavícula.
— Alessandro!
Ajoelhei-me ao seu lado e o abracei cuidadosamente. O robô avançou e parou.
— Estão bem?
Nemestrino surgiu preocupado, ajudando-me a se levantar.
— Ele precisa de um médico.
Alessandro ainda gemia de dor.
— Sevidegh conseguiu controlar a mãe dele. Antônia estava controlando aqueles robôs remotamente. Você está bem, filha?
— Estou sim, Nemestrino, mas o Alessandro está ferido. — A ambulância não demorou a chegar.


A visita ao hospital foi tranquila, encontrei Alessandro disposto a voltar ao trabalho, porém as recomendações médicas foram claras: ficaria algumas semanas em repouso. Encontrei-o com a tipoia, sentado na cama e entediado, mas que ao me ver, abriu um largo sorriso. Simpático, sua voz doce me cativou e mesmo com pouco contato, consegui me apoiar nele.
Ele agradeceu pela visita, mas quem devia agradecimentos era eu. Deixei-o descansando.
No corredor, deparei-me com minha mãe e Joseph discutindo, tentei calá-los, pois a altura de suas vozes ultrapassava o limite aceito naquele ambiente. Encarei-os por tempo suficiente para minha mãe acusá-lo de ter sido abandonada.
Lembrei-me que ela estaria disposta a aceitar essa separação na época, caso fosse necessário, afinal, ela o estimulou a ir atrás do filho de sete anos. Foi a promessa dele que alimentou suas esperanças. Ele voltaria ou daria notícias, uma única palavra seria suficiente para ela se sentir bem e aceitar que jamais seria possível reencontrá-lo.
— Eu pensei em várias hipóteses: você poderia ter se apaixonado novamente por Rosmira ou pela distância, temia que você pudesse ter problemas judiciais, caso ela fosse vingativa. Eu só precisava de uma última mensagem para entender o nosso término.
Naquele momento, lembrei-me do aspecto físico de Rosmira e, principalmente, de seu nome e não poderia ser coincidência o nome “Rosmira” ser justamente igual ao da mulher de meus pensamentos manipulados no teste de simulação. Antônia sabia da existência dela.
— Não foi por causa de nenhuma dessas duas hipóteses, Anne. — Ele se pronunciou. — Nemestrino foi atrás de mim dizer que vocês dois estavam juntos e que teriam uma filha. Foi isso que me fez desistir de nós.
Minha mãe colocou a mão no peito incrédula com a revelação de Joseph.
— Nemestrino não faria isso. — Minha mãe rebateu. — Somos casados. Quando ele soube de Liona, deu todo o apoio de eu ir atrás de você e contar a verdade, mas eu não tinha seu contato — ela respirou fundo — ele sabia onde você estava? — ela já chorava, com a certeza de que meu pai não mentia.
— Mãe, Nemestrino já pediu perdão pelos erros dele, com certeza, essa é mais uma das loucuras que ele fez. Perdoe-o novamente.
Ela me encarou enfurecida e deu um grito abafado.
— Como você pode me pedir isso, Liona? Foi por causa dele que você ficou distante de seu pai. — Ela dizia enraivecida.
— Mãe, eu digo isso, porque estou cansada. Na verdade, nunca senti falta de meu pai, eu sempre tive a senhora, as coisas da vida são surpreendentes e estou farta de ficar me estressando com mentiras, possibilidades ou descobertas. Eu só quero ir para a casa.
— Você não gostou de mim, Liona? — Joseph perguntou, entristecido.
— Joseph, eu passei por momentos que acabaram com a minha expectativa de conhecê-lo. O nosso encontro foi frio.
— Me dar um abraço é um pedido inaceitável?
— É para o tempo que você deve fazer esse pedido.
Eu passei pelos dois e segui em frente, sem me preocupar de virar para trás; sentia-me cansada e indignada com os últimos acontecimentos. Meus pensamentos e meu nome estavam jogados na rede e pessoas de todas as regiões comentavam várias coisas em relação a mim, enfim, a vergonha de ser exposta me incomodava e eu queria me esconder dentro de algum lugar que não lessem meus pensamentos. Aguardei minha mãe fora do hospital e fomos embora sem tocar no assunto; o assunto era delicado para ela.


No café da manhã, ela não poupou Nemestrino, lançou ofensas e pouco permitiu que houvesse explicações. Ele assumiu ter feito de tudo para separá-los: Anne e Joseph.
— Eu fiz tudo isso, Anne. Quando Joseph partiu para conhecer seu filho, eu fiz de tudo para que ele não voltasse. Anne, fui eu que aconselhei Rosmira a ameaçar e exigir que ele fosse atrás do filho, que ela tinha mesmo depois do garoto ter sete anos.
Os punhos cerrados de minha mãe eram o reflexo de seus sentimentos aflorados que ela tanto impedia de demonstrar.
— Nemestrino, eu quero divórcio. — Foi sua sentença final.
— Não faz isso, comigo, Anne. Estou sendo sincero com você. — Ele implorava de joelhos como havia feito na última vez na escola.
— Eu o perdoei, mas até o perdão têm limites. Você não é digno de estar ao meu lado. Seu amor pode ser verdadeiro, mas não é honesto. O amor que vale a pena, é o amor incondicional, é quando amamos sem fazer mal ao próximo; é quando amamos sem receber nada em troca; é quando amamos fazendo a coisa certa. Joseph, talvez, não me amava como você, mas ele não me faria sofrer como você está fazendo. Não se brinca com a existência de um filho. Retire-se da minha frente, retire-se da minha vida. Você lutou tanto pelo meu amor, mas o transformou em ódio.
Nemestrino arrumou suas malas e desceu com ela ao lado do corpo, soluçando e chorando.   
Anne, a mulher forte, caiu em prantos, sentou-se na cadeira e debruçou sobre os braços dobrados, apoiados na mesa.


No dia seguinte, comparecem ao cartório e o encontro não foi amigável, na realidade, não houve uma palavra de cumprimento trocada entre eles. 
Nemestrino hesitou em assinar, mas como não conseguia mais segurar as lágrimas, decidiu assinar antes de demonstrar seu sofrimento.
Mas não demoraria muito para acontecer o segundo encontro, pois três dias depois, encontramo-nos em um grande evento de tecnologia. Chegamos acompanhadas por Joseph, que havia oferecido carona.
Aproveitei que Joseph conversava com minha mãe e me afastei para averiguar um jogo virtual em que os jogadores entravam em cabines e eram escaneados para a criação de seus avatares.
Depois eles iam para as plataformas e executavam movimentos para desviar de obstáculos, além de poder aprender golpes de luta, com os óculos de simulação virtual e o jogo acontecia em tempo real.
Minha atenção foi tirada quando Sevidegh veio me cumprimentar.
— Estou feliz por você estar aqui, Liona!
— Obrigada.
— Peço desculpas pela minha mãe, mas ela está arrependida pelos últimos acontecimentos.
— Ela criou aquele jogo realista com escaneamento tridimensional?
— Sim.
Em seguida, nossa conversa foi interrompida por Liam e Sira, que vieram nos cumprimentar.
— Olá — saudou Sira, com um sorriso.
— Finalmente, estou conhecendo a famosa Liona — disse Liam.
— Eu gostaria de não lembrar disso, Liam — falei, envergonhada.
Pedi licença e me retirei, pois a última coisa que eu gostaria de lembrar era a vergonha na internet.
Enquanto isso, Nemestrino amassava uma garrafa de plástico vazia, ele estava incomodado por ver minha mãe conversando alegremente com Joseph.
— Oi, Nemestrino.
— Oi, Liona.
— Lamento por tudo. Eu não estou com raiva de você. Mentiras do passado não me afetam.
— Obrigado pelo seu perdão.
— Um dia, todos nós superaremos essas dificuldades que nos afligem.
— Eu amo sua mãe, mas para o bem dela, eu vou me afastar e viver minha vida.
— Dê um tempo. Somente ele poderá apaziguar a situação.
— Não, Liona. Infelizmente eu perdi sua mãe. É uma dor que terei de carregar dentro de mim.

Capítulo Dezoito — A conferência de Robótica
“Confie em seu avô, ele será seu instrutor a partir de hoje. Fiz uma viagem e não sei quando retornarei, mas não fique triste comigo. Sou sua mãe e quero seu bem.
Assinado: Anne. ”
Li o bilhete e liguei para meu avô, duas chamadas e atendeu com a voz embargada de sono.
— Alô, vô! Aqui quem fala é Liona e eu não sei o que está acontecendo, minha mãe deixou um bilhete dizendo que viajaria e era para eu contar com o senhor. — Aguardei alguns segundos e ele desligou o telefone. Estranhei e saí de casa, minha única alternativa era a escola. A biblioteca ainda estava fechada, só restava eu permanecer encostada no portão gradeado. Seu Escadas apareceu e, com a chave, abriu o cadeado.
— Entre sem perguntar nada. — Ele disse enquanto entrava na frente.
Na biblioteca, Seu Escadas foi à escada e abriu o primeiro degrau para pegar uma pasta transparente e levou até a sua mesa. Ele me entregou duas folhas.
— Leia.
Na primeira folha, eu teria que colocar meus dados pessoais e na segunda folha, tratava-se de um regulamento.
— Esclareça, vô. — Coloquei as folhas de volta à mesa. Ele limpou seus óculos velhos com a armação quebrada e me entregou uma caneta esferográfica azul.
— Sua mãe quer que você permaneça num colégio, afinal, você perdeu o último ano. É só assinar.
— Onde fica esse colégio?
Ele esperou um pouco e ao fingir uma tosse, retornou mais acelerado em suas palavras.
— Assine imediatamente, Liona. Não tenho tempo para explicar agora.
Coloquei os meus dados como pedia o formulário e guardei as duas folhas comigo. Seu Escadas ordenou que eu voltasse para casa.
Abri a porta de casa com esperança de encontrar minha mãe, porém só encontrei o vazio.
Antes de colocar o pé no primeiro degrau, tocaram a campainha. Um homem desconhecido de óculos escuros, com roupa preta, entregou-me um papel, requisitando a minha presença no endereço indicado no papel. Ele não falou mais nada, virou-se e entrou no carro. Fechei a porta e liguei para meu avô.
— Vovô, eu recebi o endereço do novo colégio, certo?
— Ah, garota chata. — Ele riu. — É isso mesmo, amanhã alguém irá buscá-la. — E desligou sem se despedir.
Xinguei-o em pensamento e arrumei meus pertences e os coloquei numa mala e aguardei o dia seguinte.


Acordei assustada com o despertador do celular, arrumei-me rapidamente e peguei a mala e esperei a campainha.
Às oito horas da manhã, a campainha tocou e meu coração estremeceu. Peguei a mala do chão e abri a porta. Cleura estava à minha espera sorrindo e trajando calça e blusa preta. Seus cabelos, uma característica extravagante deu espaço ao mero coque discreto.
— A senhora?
— Por quê? Tem algo contra mim? Por acaso já nos conhecemos? — Ela desfez seu sorriso e encarnou Euclediana. — Está pronta?
— Sim. Levarei esta mala.
— Não perguntei o que você irá levar, apenas me siga até o outro lado da rua, um carro nos aguarda.
Consenti com a cabeça. O tempo havia esfriado e senti falta de um casaco. Atravessamos a rua sem se preocupar com a passagem de carros, porque como eu havia dito antes, aquela rua era deserta e parecia abandonada.
Entramos no carro e eu não perguntei nada, apenas encostei a testa na janela e olhei o caminho que passávamos. Pensei em ligar para meu avô, mas, ultimamente, ele não se sentia confortável em receber minhas ligações, então era melhor não o perturbar.
— Tomou café? — Cleura virou-se para trás, aguardando minha resposta.
— Não. A ansiedade não deixou.
Ela pegou uma garrafa térmica e despejou café quente numa xícara e me entregou, além dos biscoitos de polvilho.
— Quando chegarmos, você almoçará. — Ela disse, ajeitando-se em seu assento e me deixando à vontade com o pacote de biscoitos em meu colo. Tomei um gole de café e quase o joguei sobre ela e o motorista, pois estava sem açúcar.
— Tem algo para adoçar o café? — perguntei, envergonhada.
Ela me entregou três saquinhos de açúcar e eu agradeci sem dizer mais nada durante o resto da viagem.
Quando esvaziei o pacote de biscoitos, já havíamos chegado. Não consegui visualizar o nome do imenso prédio de mais de doze andares, contudo se assemelhava ao prédio Rubi.
Entramos no estacionamento e descemos do carro. Peguei minha mala, que estava ao meu lado. No saguão, Cleura conversava com o recepcionista e eu olhava ao redor daquele lugar iluminado por lustres de cristais esverdeados. Cleura me conduziu ao elevador e o motorista permaneceu no carro.
— Não tenha medo de falar, tenha medo de ter medo, entendeu? — Ela disse quase rindo da própria fala.
— Desculpe-me, mas se eu começar a falar, será para perguntar e acho que a senhora não vai responder.
— Tem razão. Detesto excesso de perguntas.
Paramos no quinto andar e ela entregou a chave de meu quarto.
— Você dividirá o quarto com duas meninas, faça amizades. Até mais.
Ela ficou dentro do elevador e eu saí com o número do quarto na chave. Entrei e as duas garotas jogavam xadrez entre duas camas. Elas olharam para mim sem reação e eu acenei para as duas.
— Sou a nova colega de quarto de vocês.
— Oi. — Uma delas, com cabelos volumosos e pele parda, cumprimentou. — Meu nome é Márvia.
E a outra de óculos e cabelos cacheados nas pontas levantou a mão. — Meu nome é Flamínia.
— Meu nome é Liona. — Foi a minha vez de se apresentar. — Minha cama deve ser aquela. — Apressei-me para a única cama arrumada. As outras estavam amassadas e com as malas abertas e roupas espalhadas.
— A bagunça assusta, mas nós somos nobres — disse Márvia rindo. — Não se acanhe com a nossa presença, estamos aqui faz um dia.
— Obrigada. — Agradeci pela simpatia. — Devo admitir que tenho trauma de xadrez.
— Por quê? Não sabe jogar e vive perdendo, eu também — disse Flamínia, tentando jogar sua rainha contra o bispo do rei adversário.
— Não é bem por isso, mas está valendo.
A porta se abriu abruptamente e um menino entrou, escondendo-se de alguém, fechou a porta e se agachou, apontou para nós e pediu que ficássemos quietas.
— Oh garoto, sai daqui! — Márvia se levantou e empurrou o menino para fora do quarto. — Você não pode entrar no quarto das garotas, Evêncio!
— Perdi o CPO23 — disse o garoto insistindo em entrar.
— O que é CPO23? — questionei.
O garoto não disfarçou a estranheza da minha pergunta.
— É Computador com Programação Ocular e vinte e três é porque foi criado nesse dia. — O garoto se exibiu.
— E o que é isso? — ainda não fiquei convencida da explicação limitada.
— O que ela está fazendo aqui? Nem sabe o que é CPO23 — disse o menino.
— Cale-se, Evêncio Júnior! — Márvia o pegou pelo braço e o jogou para fora do quarto, mas não conseguia fechar a porta, o menino não deixava. — Não ligue para ele, não passa de um pirralho malcriado. CPO23 é uma porcaria de robô em formato de olho, que não tem nada a ver com o acrônimo idiota.
— Porcaria nenhuma! Faça melhor! Ganhei medalha por causa dele. Vou vender e ficar rico! — O rosto do garoto estava cor de pimenta por tanta força que fazia para manter a porta entreaberta.
— Sai, Evêncio! — Márvia tentava tirar a mão do garoto, que tampava a lateral da fechadura.
— É Júnior! — O garoto gritou de volta.
Flamínia parou ao meu lado, divertindo-se com a situação.
— São irmãos e brigam todos os dias.
— Evêncio, desgruda da porta! — Cleura chamou sua atenção.
— Oi, dona Cleura Euclediana.
— Gosta de pronunciar nomes longos? Então, vamos ver se gosta de castigos longos.
— Leve-o daqui, por favor — disse Márvia, fechando a porta. — Finalmente, livre!
Achei uma bolinha preta no tamanho de uma bola de gude e peguei para ver melhor.
— Essa é a CPO23— informou Márvia.
— Marca as horas. — Na bolinha havia um display com a hora atual.
Recebemos o uniforme no final do dia, uma blusa e calça preta.
— Estamos no tempo de experiência, então ainda poderei me livrar daqui — comentou Márvia, experimentando seu uniforme.
— Tempo de experiência?
— Você não sabe de nada? Caiu de paraquedas? — Márvia zombou, desacreditado de minha pergunta.
— Tempo de experiência serve para conhecermos este lugar e escolher se desejamos permanecer, estudar aqui ou sair e voltar para os nossos lares reconfortantes — explicou Flamínia.
Duas batidas à porta interromperam nossa conversa. Márvia, suspeitando ser seu irmão, abriu preparada para chutar o garoto se fosse necessário.
— Eu disse para sair!!!
Mas era outra pessoa do outro lado, um rapaz alto que quase levou um chute dela.
— O que pretendia fazer, Márvia? — O rapaz fez uma expressão de aborrecimento.
Ela disfarçou e logo se afastou para deixar o rapaz entrar.
— Pensei que fosse o insuportável de meu irmão. Este aqui é Fernão — apresentou Márvia, apontando para o rapaz com o polegar.
— Acho que posso me apresentar sem sua ajuda. — Ele retrucou e se aproximou. — Cleura me disse sobre você, seja bem-vinda. — Ele amenizou sua expressão facial, tornando-a mais amigável e estendendo a sua mão.
— Obrigada. Como posso chamá-lo?
— Fernão. Não há um pronome de tratamento direcionado a mim. Bem, espero que se sinta à vontade. — Ele se retirou.
Márvia fechou a porta e respirou aliviada.
— Eu nem sei por que estou aqui — falei em voz alta.
— Vai saber. Não podemos falar muito, porque pouco sabemos — respondeu Flamínia.

De repente, a porta voltou a se abrir com um baque e era Evêncio novamente, com seus cabelos arrepiados e olhos assustados.
— Vocês não sabem, mas acabei de ser flagrado. Estou procurando o bendito CPO23, mas está difícil.
— Evêncio, você ainda vai levar advertência! — Márvia ralhou, puxando-o pela gola da camiseta.
— Me solta! E meu nome é Júnior!
Marvia foi à sua mala aberta sobre a cama, e retirou um papel rosa dobrado, e entregou ao seu irmão.
— É a carta de nossa mãe. Como irmã mais velha, ela deseja que eu cuide de você, porém estou cansada de tolerar suas travessuras, então leia todos os dias e reflita sobre seu comportamento.
O garoto pegou o papel e colocou no bolso de sua calça. Chegou perto da porta e ouviu alguém se aproximando, correu para debaixo da cama de Flamínia.
Alguém bateu à porta e, do outro lado, Cleura nos chamava para a refeição.
— Vão lá, façam um pratinho para mim — disse Evêncio ainda debaixo da cama. — Vou ficar aqui, porque lá fora estão atrás de mim.
— Moleque! — Márvia bufou e abriu a porta.
— Quem é moleque? — perguntou Cleura, procurando alguém diferente de nós três.
— Nada, senhora Cleura.
— Desçam para almoçar.
Márvia consentiu com a cabeça e foi a primeira a sair do quarto, em seguida, Flamínia e, antes que eu seguisse as duas, lembrei-me do CPO23 e joguei em direção ao Evêncio, que agradeceu.

Fomos ao refeitório, lembrei Márvia de levar uma marmita para seu irmão. Ela deu risada e concordou. Sentamos à mesa e observei as pessoas ao redor, uniformizadas e caladas. O silêncio era entediante, só ouvia os talheres e louças tilintando.
Após terminada a refeição, voltamos ao quarto e Márvia chamou pelo seu irmão, mas ele dormia ainda escondido debaixo da cama.
— Acorda, moleque! — O grito de Márvia o assustou tanto que fez com que batesse a cabeça na ripa da cama.
— Aí! — O garoto gemeu e saiu aos poucos ainda com sua CPO23 na mão.
Entreguei sua marmita e sua irmã o expulsou para fora do quarto.
— Pare de trazer problemas, ok? Eu sou sua irmã mais velha e não quero ser atribuída com tamanha responsabilidade. — Márvia fechou a porta antes que o garoto pudesse respondê-la ou agradecer pela comida.
— Você foi rude com seu irmão — comentei
— Sério? Eu posso dá-lo de presente, quer?
Alguém batia à porta, e Márvia socava o ar cansada de abrir a porta e receber visitas desagradáveis. Fernão estava do outro lado, de braços cruzados e encarando nós três.
— Oi, Fernão. Você de novo. — Ela disfarçou a cara emburrada.
Ele suspirou e empurrou Márvia para o lado e adentrou o quarto.
— Liona, o Bráulio a aguarda em seu escritório no décimo terceiro andar. — Ele se virou e saiu do quarto.
— Nossa, nem deu tempo para convidá-lo para um café — ironizou Márvia.
— Bráulio? — Não sabia que ele estava lá. — Ele está aqui.
— É um barbudo que só usa óculos escuros. Ele é bravo igual a mãe dele, a dona Cleura — disse Flamínia rindo.
— Eu já o conheço e vou ver o que ele quer, com licença.
Márvia e Flamínia insistiram em me acompanhar. A primeira coisa que eu perguntaria a Bráulio seria sobre a minha mãe.
Márvia me indicou sua sala e disse que me esperaria com Flamínia no corredor.
— Obrigada. — Bati à porta duas vezes. Bráulio veio me atender, e voltou à sua cadeira giratória, e acenou para que eu entrasse.
Sentei-me defronte a ele e o esperei escrever nos papéis brancos sobre sua escrivaninha. Depois ele parou, colocou a caneta sobre a mesa e entrelaçou os dedos.
— Bem, hoje é seu primeiro dia e espero que se sinta bem. Talvez, esteja se perguntando o que veio fazer aqui. — Ele se ajeitou na cadeira e pensou para continuar. — Sua mãe está bem e ela quer o mesmo para você. Isso é temporário, mas pode ser permanente, caso você decida.
Inquieta, permaneci calada e paciente com as pausas e delongas de Bráulio.
— Do que você sente falta, Liona? — ele continuou.
— É meu primeiro dia, ainda não dá para sentir falta, mas, com certeza, é de minha mãe e meu avô.
— E seu pai?
— Meu pai? Não tem como sentir falta de alguém que eu não tive convívio. Não houve tempo para estabelecer um laço.
— E para o seu avô teve?
— Meu avô veio atrás de mim, ele lutou para me encontrar e, em pouco tempo, ele conseguiu transmitir todo o sentimento de anos.
— Guarda mágoa de seu pai?
— Não é mágoa, Bráulio. Meu pai nem sabia da minha existência, contudo nosso encontro foi frio e sem sentido, tudo ao contrário das minhas expectativas que terminaram quando Nemestrino fingiu ser meu pai.
Bráulio colocou seu celular sobre a mesa.
— Ele está ouvindo tudo — informou Bráulio.
Levantei-me da cadeira e, com expressão de indignação, dirigi-me à porta, saindo enfurecida de lá. Márvia e Flamínia vieram ao meu encontro e após ter dito sobre a conversa com Bráulio, Márvia aconselhou a não me preocupar.
— Ele está me vigiando através de Bráulio e eu não sei por quê.
— Quando eu não sei das respostas, eu nem me preocupo com as perguntas, porque senão vamos ficar imaginando inúmeras coisas que não vai chegar a lugar algum — disse Márvia.


No dia seguinte, recebemos o regulamento e fui informada que à tarde visitaríamos os laboratórios de robótica. Nas primeiras linhas do regulamento, dizia que cada laboratório se especializava em um ramo e que os robôs criados eram rotulados de acordo com o número de função, isto é, observa-se a série alfanumérica do autômato e verifica o seu significado no regulamento. Um exemplo é o robô para identificação facial ou reconhecimento de voz ou ainda o robô, que seria usado para imitar movimentos humanos, chamado de locomoção evolutiva.
De volta ao nosso quarto, aprovetei para erguntei para as meninas o que elas achavam de tudo aquilo. Márvia não me respondeu e Flamínia respondeu:
— Interessante.
— Interessante?! — Evêncio abriu a porta abruptamente. — É o máximo! Vocês não conseguem entender aonde eles querem chegar? — O menino entrou no quarto e rodopiou. — Não haverá apocalipse zumbi! Vai ter apocalipse das máquinas. — O garoto não parava de sonhar acordado e bagunçava a cama de sua irmã, que o pegou pela gola da camisa e o empurrou para fora do quarto.
— Solte-me! Deixe-me falar!
— O que você quer, pirralho? — Sua irmã já soltava faíscas pelas ventas.
— O regulamento é fantástico. Vamos aprender a criar máquinas poderosas, ensiná-las e inseri-las na sociedade.
Arregalei os olhos e, estupefata, tinha lógica no que o menino falava.
— O que é, menino?! Vai dizer também que existe vida mais inteligente que a nossa em outro planeta? — Márvia ironizava.
— Se tivesse vida mais inteligente que a nossa em outro planeta, eles já teriam chegado aqui há muito tempo.
— Vai ver eles não são intrometidos que nem você! — Márvia resistia e empurrava a porta contra Evêncio.
— Deixe-o entrar, Márvia. É seu irmão e deve estar se sentindo sozinho.
Márvia suspirou e conseguiu trancar a porta.
— Aqui é proibido o uso de celulares, computadores, isso é inadmissível. — Márvia mudou de assunto.
Flamínia disse que não aguentava mais ficar enclausurada dentro daquele quarto e avisou que estaria no pátio.
— Mais tarde, estarei de volta. — Flamínia girava a chave para abrir a porta. — O pátio é um ambiente a céu aberto e as pessoas se reúnem para conversar, estudar e fazer caminhada.
Somente o tempo conseguiria trazer algumas respostas que eu necessitava. Fiquei chateada com minha mãe, mas a única coisa que me importava era seu bem estar.

O término do tempo de experiência estava próximo. Pude me familiarizar com as pessoas naquele lugar, mas evitava encarar Bráulio. Durante esse tempo, fiquei sem notícias de minha mãe, mas recebi a visita de Seu Escadas uma vez, porém foi por causa de Evêncio, que havia consertado um celular antigo dos anos 90. Então, liguei para meu avô, que me atendeu na primeira chamada.
Quando o vi atravessar o saguão do prédio andando com a ajuda de uma bengala, meus olhos se encheram de lágrimas.
— Ver o senhor andando me emociona. — Enxuguei os olhos.
— Como conseguiu entrar em contato comigo? — Ele questionou, queixando-se. — Por que me ligou? O que aconteceu?
— Eu só queria ver o senhor e fazer algumas perguntas. O que eu estou fazendo aqui? O que aconteceu com a minha mãe?
Seu Escadas me abraçou e, em voz baixa, respondeu:
— Anne está bem e você deveria estar também. Quando você sair daqui, vocês duas poderão conversar, tenha paciência.
Ele se afastou de mim e retornou à saída. Ele se locomovia sem dificuldade, distante e frívolo.
Dias depois quando a minha estadia completou dois anos, recebi a visita de Sevidegh, que entrou convicto a me convencer desistir daquele lugar.
— Dois anos sem contato com você. Foi um tempo difícil para mim — falou Sevidegh.
— Pois é, muita coisa deve ter mudado.
— Virei professor de Educação Física e me casei.
— Sério? Em dois anos você fez tudo isso?
Sevidegh riu.
— Já está acabando seu tempo de experiência?
— Sim e decidi ficar.
— Não posso acreditar nisso, Liona. Você gosta deste lugar? Ficar preso com um monte de máquinas? Isso aqui é para quem ama robôs e não quer ter uma vida normal.
— Isso é preconceito, Sevidegh.
— Preconceito é julgar sem conhecer, eu conheço este lugar e detesto. Minha mãe queria que eu estivesse na equipe Rubi, treinando robôs e os transformando em soldados fiéis.
— E a minha escolha é loucura?
— Liona, eu preferi o mundo afora e você deveria preferir também. Eles falam que vocês são os primórdios da geração posterior, ou seja, no futuro, haverá a profissão de treinar robôs, pessoas que não terão um convívio social normal.
Sevidegh apertou minhas mãos e lamentou a minha decisão.
— Só vim vê-la. Joseph autorizou minha visita.
— Por que Joseph?
— Ele comanda a equipe Safira, você não sabia disso?
— Não.
Despedi-me de Sevidegh e o vi sair do prédio, ainda com gosto amargo, porque ele tinha razão quando disse que eu precisava sair daqui.
Saber que Joseph era quem comandava o lugar em que eu estava vivendo, deixou-me confusa, entrei no escritório de Bráulio, furiosa e sem autorização
— Seu pai ainda não está preparado.
— Mas sabe tudo de mim!
— Não o julgue.
— Eu decidi que não vou ficar.
— Por favor, Liona. Você está no final da experiência, mas Joseph prefere que você permaneça.
— Ele não vai tomar as decisões por mim.
— Não seja teimosa, Liona. Não adianta, você vai ficar. Seu pai quer que você faça parte da equipe dele.
— Mas cadê ele? Você não está cansado de ser porta-voz dele?
Bráulio não respondeu, então passei por ele e fui ao elevador. Deparei-me com Evêncio, que brincava com seu CPO23, o display mudava de cor.
— Que houve, Liona?
— Você tem de esconder aquele celular, mas antes ligue para esse número.
Peguei a CPO23 e digitei o número de celular de Sevidegh e salvei. Evêncio havia implementado a função bloco de notas em seu dispositivo e ele havia colocado botões nela também.
— O que é isso?
— Ligue para esse número e diga a Sevidegh planejar algo para me tirar daqui.
— Você quer ir? Por quê?
— Vou embora daqui.
— Não há como fugir, Liona. Aqui tem um sistema de segurança irredutível.
— Evêncio, eu sei que alguém lá fora pensará em algo.
— Só há uma maneira de fazer algo aqui dentro enquanto seu amigo Sevidegh a espera lá fora. Bento, meu amigo, conhece um veterano lá fora.
Fomos atrás de Bento e fui surpreendida ao saber que este conhecia Alessandro.
— Eu ligo para ele e falo — prometeu o garoto da mesma faixa-etária que Evêncio.
Noutro dia, acordei às cinco horas da manhã e me apressei para chegar ao refeitório antes de todos. Reunidos em uma das mesas, Evêncio e Bento cochichavam. Aproximei-me deles e perguntei se eles haviam ligado para Alessandro. Por um momento, eu me arrependi, pois Alessandro trabalha para Joseph, mas eu confiava nele.
— Falei até sobre Sevidegh — disse Bento.

O tempo passou e Bento não recebia notícias de Alessandro, temi em pensar que este pudesse ter falado algo a Joseph. Andei até o centro do saguão dourado, com mosaico circular no centro. A cúpula estava acima da minha cabeça e era a minha saída, descobri que ela se abria. Abaixei a cabeça lentamente até ver Alessandro, apressado, atravessando as portas da entrada. Ele passou por mim e não me cumprimentou, subiu as escadas laterais do lado direito e a sala de segurança abriu ao reconhecê-lo. Ele conseguiu entrar e foi acompanhado por dois seguranças.
E eu continuei no ponto central e, acima da minha cabeça, as partes que formavam a cúpula se afastavam; a iluminação natural adentrava o local e Alessandro saiu da sala de segurança, apoiou-se no peitoril e gritou do alto:
— Liona, agarra-se à corda e saia imediatamente!
Em pé, à porta do helicóptero, Sevidegh me chamava para subir a escada de corda, que era jogada. Seu comprimento era mais de quarenta metros.
— Tem certeza que é seguro?
— Sobe logo! — gritava Sevidegh.
— E se eu cair?! Quem vai se espatifar no chão será eu, não vou me arriscar, seus malucos!
— Então, fique aí! — Sevidegh autorizou o piloto a subir. Sem pensar duas vezes, corri e alcancei a corda, que balançava.
— Liona! — Evêncio se aproximou e também se jogou na corda, que já distava do chão meio metro.
— Desce, Evêncio!!!
— Eu quero me divertir! — O garoto não tinha medo e balançava mais ainda a corda. Em seguida, os seguranças começaram a aparecer.
— Mais rápido!!!
Meu corpo ultrapassava a cúpula. Através da janela, Fernão socava a própria mesa.
Consegui entrar no helicóptero e, logo, Evêncio também entrou mais animado do que eu.
— Por que está aqui, menino? Não era para ter feito aquilo! — queixei-me.
O menino se desculpou, mas era tarde demais e Sevidegh não voltaria para levar Evêncio de volta.
— Eu queria ficar, mas minha irmã irá reclamar minha ausência.
— Ou vai comemorar — retruquei.
— É verdade. — Ele deu risada.
A preocupação girou em torno de Alessandro, entretanto Sevidgh garantiu que ele ficaria bem e entraria em contato conosco.
O garoto fazia perguntas ao piloto e dizia que seria um quando crescesse, pois já havia fugido.
— E para aonde iremos? Tem algum doce aí? Estou com fome e quero brigadeiro.
Sevidegh tirou uma bala amassada de seu bolso esquerdo e jogou para o menino, que pegou enojado.
— De amassada, basta minha cara todas as manhãs. — E o menino jogou a bala pela janela.
— Não faça isso, Evêncio! — briguei com ele.
O piloto explicava as operações feitas no painel para tentar calar o garoto. Sevidegh colocou leite numa tigela verde e depois acrescentou biscoitos de polvilho e entregou a ele.
— Eu não vou comer biscoitos com leite.
— E eu não vou aceitar crianças mimadas como você. Passe fome ou coma isto. — Sevidegh empurrou a tigela para o menino, que quase derramou leite em sua roupa.
Após quinze minutos de espera e anseio, chegamos ao heliponto Esmeralda.
— Nenhuma mensagem de Alessandro? — perguntei a Sevidegh, que visualizava seu celular.
Descemos do helicóptero e nos despedimos do piloto. Evêncio havia esvaziado a tigela e ao redor de sua boca estava sujo de leite.
Antes de descermos as escadas para a cobertura, outro helicóptero pousava e Sevidegh agitava os braços ao reconhecer a pessoa que pilotava.
— Liona! — Aquela voz eu conhecia e só poderia ser uma pessoa: Alessandro.
— Fala, Alessandro! Obrigada! — Abraçamo-nos.
— Ainda bem que Bento me ligou. Ele é irmão de meu amigo — disse Alessandro, afastando-se de mim e cumprimentando Sevidegh com um abraço.
— Que machucado é esse? — perguntei ao Alessandro, que parecia ter levado um soco.
— Fernão.
— Caramba
— Não me diga — zombou Sevidegh. — Aquele cara é folgado.
Alessandro me aconselhou a ficar no prédio Esmeralda ao lado de meu avô.
— Meu avô está estranho.
— Ele sabe que você está fora do prédio Safira. Ele quer que você fique no Esmeralda.
E Alessandro não mentiu, pois mesmo que a recepção tenha sido fria, Seu Escadas esperava pela minha chegada. Mas nossa conversa não durou muito quando meu avô viu pelas câmeras a chegada de Joseph. Escondi-me atrás de outra porta que dava a uma sala interna.
Joseph entrou e comentou sobre a minha fuga. Seu Escadas não se mostrou surpreso, porém conseguiu acalmá-lo.
— Espero que Liona volte logo e que eu possa me desculpar — disse ao se despedir de meu avô.
— Ele foi embora, mas não inteiramente.
— Por que diz isso? — indaguei.
— Porque eu acho que ele sabe que você está aqui. Há câmeras por toda parte e conhecendo meu filho, ele averiguou todas elas até ter certeza que eu não estaria mentindo sobre alguma coisa.
— E por que ele não disse nada?
— Ele respeita sua decisão. Se você se sentiu enclausurada em Safira, ele quer se desculpar.
— E o que eu faço? Ele pertence a este lugar, então devo ir.
— Liona, eu sou responsável por este prédio, mas meu filho acredita que ele está no comando, portanto acho melhor você ficar, não vamos demonstrar nosso conhecimento acerca de sua esperteza.
— Eu não sei o que estou fazendo aqui.
— Problema seu — replicou meu avô, rindo da minha cara. — Nem eu sei o que meu filho está fazendo, mas eu sei que devo fazer do meu jeito.
— Mas do que o senhor está falando?
— O prédio Esmeralda não seguirá os passos do prédio Safira! — meu avô se levantou abruptamente. — Eu estou andando com a ajuda do chip e você é a única pessoa que sabe disso, por isso não me traia.
— O senhor compareceu ao prédio Safira e como tem certeza de que eu sou a única pessoa a saber disso?
— Acho que você deveria comer alguma coisa. Aproveita, tem uma feira na geladeira.
— O que está acontecendo de verdade? Para que tudo isso? Aqui também têm robôs iguais ao de Safira?
— Mais ou menos isso — ele respondeu.
Meu avô, um grande aprendiz de Lino Menezes, mostrou-me um artigo escrito por este.
“Não perderei a lucidez quando tudo for manipulado por inteligência artificial; saberei encarar a nova realidade e usufruirei de tudo que eu tiver direito para me sentir no futuro, muitas vezes, temido.
Já pensamos em juízes capazes de serem integralmente justos, detectando mentiras do réu com responsabilidade por meio de um sistema inteiramente confiável.
O uso da robótica na medicina será indispensável, principalmente, em cirurgias, isso evitaria muitos erros médicos, que são frequentes, além da maior precisão de uma incisão. Atualmente, certos médicos já realizam operações remotamente.
Queremos robôs enfermeiros espalhados, sempre atentos e previsíveis aos seus pacientes. Um robô enfermeiro não descansaria e atenderia às necessidades imediatamente. Quando eu ficar velho, quero ser cuidado por algum robô de minha equipe, tenho certeza de que ele será mais benévolo do que pessoas. ”
Seu Escadas me aconselhou a ligar para minha mãe, e foi o que eu fiz. Liguei e ela atendeu aliviada por saber que eu tinha um lugar para dormir.
— Filha, nós precisamos conversar. Pensei que Joseph tivesse conversado com você.
— Pois é. Eu vou ficar bem, mãe. Ficarei com vovô por mais tempo.
Então, a partir desse dia, tornei-me um membro da equipe Esmeralda. Os robôs corriam, observavam os movimentos de seus treinadores e aprendiam a memorizar e aperfeiçoar tais habilidades. Os seus globos oculares vermelhos assustavam, mas faziam reconhecimento de identidade pela face da pessoa. Eles também estavam conectados à internet por tempo ininterrupto. Com isso, eles obtinham e armazenavam informações e os transformavam em conhecimento. Acabava adquirindo sua própria personalidade, porém com limitações, pois treinar robôs como indivíduos diferentes poderia sair do controle e trazer certos problemas.
Capítulo Dezenove — A volta
Lino Menezes
“Cautela para as máquinas pensadoras, capazes de ensinar, mas também de destruir! Fechem as portas e as janelas de vossas casas e se atentem para o apocalíptico acontecimento: os robôs evolutivos vão dominar o mundo e escravizar os humanos. O perigo está em aperfeiçoar o cérebro artificial e, com isso, produzirem em grande escala seus semelhantes e resultar em uma sociedade mais inteligente. Não se percam nessa tolice que as mídias querem implantar nas pessoas leigas. O futuro é logo ali, mas não aqui, então parem de amedrontar os que necessitam da evolução tecnológica. Chega de esperar os próximos vinte, trinta anos para fazerem alguma coisa, não temam, arrisquem-se para presenciar. Nossos próximos dizem que enquanto o Homem for superior à máquina não correremos riscos, mas ninguém está estudando em vão, senão é para atingir a mesma linha de inteligência humana. Se os robôs aprenderem qualquer espécie de conhecimento, então eles ganharão autonomia rapidamente e trabalharão sem interferência humana. A preocupação real de muitos cientistas é que os robôs incorporem sentimentos maléficos, e não direi que é impossível, pois até isso pode ser aprendido e programado dependendo do benefício do momento. E, assim como as pessoas, os robôs poderão ser divididos entre o bem e o mal. Enfim, tudo é possível até que se provem o contrário. Assustador mesmo é se quiserem criar robôs androides, robôs com formas humanas, pois o ser humano é um organismo mais complexo que qualquer ser vivo e se o robô se comportar exatamente como um, então deveremos tomar cuidado. ” — Discurso de Lino Menezes em um trecho de um documentário sobre a robótica no futuro. ” — O vídeo foi encontrado facilmente na internet e, até então, interessei-me pela vida e obra de Lino Menezes, avô paterno de Alessandro. Assisti ao documentário após presenciar uma discussão entre Joseph e meu avô. Meu pai estava indignado ao saber que Lino não estava morto. Que engraçado, conheci sobre o homem quando ele estava morto e no outro dia, estava vivo.
Naquela mesma tarde, fui visitar Joseph, meu pai. Talvez, ele me recebesse friamente, porém não custava tentar se aproximar, seria uma prova de minha maturidade.
Ele me atendeu com um mero sorriso e um aspecto desolado. Entrei e atravessei o corredor como na primeira vez e em vez de entrar na sala espaçosa voltada para estudo da biônica, paramos em sua sala de estar. Sentei-me em uma poltrona cor de jabuticaba e ele permaneceu em pé, hesitando em ir até a cozinha preparar algo para eu beber.
— Tem certeza de que não deseja pelo menos um copo de água? — Ele insistiu.
— Obrigada. Não quero nada, não — respondi. — Sente-se também — aconselhei-o a se sentar no outro sofá.
Ele consentiu com a cabeça e sentou-se no sofá de três lugares e com os cotovelos apoiados em cada perna, entrelaçou os dedos e se inclinou para frente, demonstrava nervosismo.
— Estou surpreso com sua visita, Liona. — Ele começou — Espero que possamos conversar como pai e filha.
— O senhor teve dois anos para conversar comigo e preferiu Bráulio como intermediário. E agora, será que o senhor está preparado? — Eu disse, encarando-o.
— Lamento. Eu não queria que você soubesse de mim, talvez você não permanecesse tanto tempo se descobrisse que eu estava próximo. — Ele falou com a voz sem muita firmeza.
— Não tenho nada contra o senhor.
— Eu errei, Liona. Sinto muito, mas acabei me perdendo dentre os projetos e, principalmente, na correria de conseguir finalizá-los até o dia da apresentação.
Compreendi do que ele falava, tratava-se da apresentação ao exército. Não somente a Safira, mas Esmeralda, Ametista, Diamante e Rubi estavam na correria tecnológica de avançar na inteligência artificial, cada uma querendo ultrapassar a outra.
— Os meus projetos foram jogados no lixo, Liona, ou melhor, aproveitados pelos meus traidores — disse Joseph, cabisbaixo, referindo-se ao aparecimento repentino de Lino Menezes.
— Por que diz isso?
— Eu estava coordenando o projeto. A pedido do meu pai, fiquei responsável pelos laboratórios de Safira, mas o centro de pesquisa passa agora para Lino Menezes, que poderá usufruir tudo que já foi construído. E as noites perdidas? Ninguém quer dividir comigo. Eu nem me toquei de que o investimento saía das próprias mãos de Lino e absolutamente nada faz parte de mim.
Seu Escadas alimentou a ambição de Joseph e o fez se dedicar inteiramente para a ciência e tecnologia para depois pedir a sua renúncia. Lino Menezes veio para unificar aquilo que lhe pertencia de direito. Ele apenas fez suas formigas trabalharem noite e dia, em equipes separadas, pois sabia que a concorrência alimenta a inteligência e a criatividade humana.
Nossa conversa foi breve, mas eu pude consolá-lo com um abraço e dizer que o considerava como um pai. E terminei dizendo para não guardar rancor de meu avô.
— Ele é seu pai. E esse sentimento de traição vai passar e se não passar, não vai ser se entregando à derrota que você conseguirá se erguer.
— Obrigado, Liona. Seu apoio já foi um amparo. Eu sei que os outros vão se assustar com a verdadeira intenção de Lino Menezes. Continuarei com a minha vida e meus projetos, com certeza. Nada pode parar, não adquiri conhecimento inutilmente.
Dito e feito. Não demorou para Joseph tentar se vingar e acusar Lino de forjar a própria morte. Mas Lino Menezes tentava transformar sua atitude em uma excludente de ilicitude, ou seja, de que houve necessidade e que não poderia ser caracterizada criminalmente.
Eu já havia voltado para minha casa fazia algumas semanas, pois eu não concordava com meu avô, que havia acobertado Lino Menezes. Num dia desses, quando retornei da casa de meu pai, encontrei Almáquio.
— Por onde esteve, Liona? — questionou minha mãe desconfiada com a minha saída tão cedo.
— Eu fui visitar meu pai. O que Almáquio está fazendo aqui?
— Acho melhor eu ir embora, Anne. Obrigado pelo café.
Almáquio se levantou e eu o acompanhei até a porta.
— Não deixe eu pensar que você está gostando de minha mãe — sussurrei.
— Somos amigos, Liona. Aliás, eu estou do lado de seu pai e diga a ele que sou o novo responsável pelo prédio Diamante. Se você ver seu pai, pode confirmar a ele que Bráulio e Fernão estão do nosso lado, mais ninguém pode ficar sabendo.
Quando retornei, minha mãe falou sobre a nossa mudança em outra cidade.
— Está contado os dias que ficaremos aqui — ela disse enquanto arrumava a mesa.
— Não sabia disso.
— Claro. A senhorita ficou mais fora de casa nos últimos tempos.
— Vamos nos mudar quando?
— O dono buscará a chave semana que vem, mas irei antes para deixar a casa pronta.
— Mãe, eu posso aproveitar essa casa nestes últimos dias? Eu gostaria de aproveitar um pouquinho mais, seria interessante morar aqui sozinha só nesta semana enquanto a senhora termina de arrumar as coisas na outra casa.
— Não vou deixá-la sozinha e o trabalho não vai ficar nas minhas costas, não!
— A senhora arruma o que puder, depois eu ajudo no resto.
— Você seria a primeira a sair daqui.
— Só esta semana, mãe.



Todos os dias, eu visitava Joseph e foi pela manhã, no dia seguinte, quando minha mãe já havia saído, que vi Alessandro na casa de meu pai, os dois fizeram as pazes.
— Alessandro está cuidando de mim. Estou desleixado comigo mesmo e nem abasteci a despensa da casa, ele trouxe mantimentos.
— De que lado você está, Alessandro? — questionei-o.
— Não cobre isso dele, Liona. Lino é avô de Alessandro e eu o entendo, pois eu também seria fiel ao meu avô.
— Tem razão. Almáquio disse que está do seu lado, pai. Fernão e Bráulio também.
— Eu já sabia disso. Chegou atrasada, filha. Bráulio e Fernão fingirão ser seguidores de Lino.


Capítulo Vinte — A vizinhança vazia
O silêncio e o mistério
Entrei no quarto e deixei o abajur ligado, depois deitei-me na cama pronta para dormir, mas era a primeira noite que eu dormia sozinha, então o medo despertou. Olhei para o teto semiescuro e aguardei alguns minutos para fechar os olhos. Um lampejo fora de casa, percebido pela janela de meu quarto, chamou minha atenção. Ergui meu corpo e sentei. Depois vários lampejos amarelos na rua. Aquilo acelerou meus batimentos e me trouxe o tremor do medo, pois a única pessoa viva, moradora daquela rua curta só podia ser eu. Saí da cama e fui à janela. Afastei as cortinas. De repente, as casas vizinhas da frente começaram a piscar como se a pessoa ligasse e desligasse o interruptor de todos os cômodos simultaneamente. Sozinha dentro de casa, eu não conseguia me mover e deslocar para outro lugar, não havia possibilidade. As luzes amarelas não paravam de piscar e eu não parava de me amedrontar. Não dava para gritar numa rua sem civilização. Lentamente retornei para a cama decidida a dormir e ignorar aquilo.
Não consegui. As luzes não paravam. E eu não dormi. A meia-noite se aproximava, faltava menos de dez minutos. Ouvi um estrondo lá fora e foi suficiente para eu pular da cama novamente e descer as escadas.
Estiquei o braço e os dedos da minha mão se aproximavam da porta. Abri a porta e, parada, não enxerguei nada de anormal, na verdade, não consegui visualizar mais nada, exceto o que podia ser iluminado pelo luar, pois as casas da frente pararam de acender e desligar as luzes.
Na visita pela manhã, contei ao meu pai sobre a experiência nada agradável da noite anterior. Aproveitei para tomar café em sua casa na companhia de Alessandro, sentado em uma das cadeiras em volta da mesa circular da cozinha. Expliquei aos dois sobre as estranhas casas da frente. E frisei no momento de dizer que as elas estavam vazias. Os dois se entreolharam desconfiando da minha narrativa e Joseph perguntou:
— Filha, você bebe?
— Claro. Bebo suco, água e muito café — respondi, tomando mais uma xícara de café.
Alessandro começou a rir sem parar.
— Filha, estou falando de bebida alcoólica — explicou Joseph.
— Não! Oras! Não estou mentindo, eu sei muito bem do que estou falando — respondi, transtornada. — Melhor eu ir embora. Já vejo que vocês voltaram a ser amigos. — Levantei-me irritada com a expressão de zombaria de Alessandro ainda rindo.
— Pare Alessandro — sussurrou Joseph a Alessandro. — Não pense de que estamos duvidando, mas é difícil de acreditar.
— Então, vocês não acreditam. Está bem. Deve ser fruto de minha imaginação.

Esperei a próxima noite para dormir. Deitei na cama e fechei os olhos, mas o sono permanecia distante, então abri os olhos por um instante e presenciei os mesmos lampejos de ontem. Peguei o celular e comecei a filmar da janela. O engraçado era que não havia sombras de pessoas.
Decidi descer e quebrar alguma janela de uma das casas. Girei a maçaneta cuidadosamente, diminuindo a respiração, o rangido da porta foi se prolongando até...
— Alessandro! — exclamei, observando-o.
— Oi. — Ele disse olhando para as casas. — Confesso que isso assusta.
— O que veio fazer aqui? — perguntei.
— Tive de verificar a veracidade de sua loucura e sinto-me assustado. — Ele apontou para o final da rua e eu sem entender, desci os degraus da entrada e avistei Joseph, que estava boquiaberto com a situação.
Aproximamos dele e ele pediu um cabo de vassoura.
— Temos de entrar nesta casa. — Joseph disse empenhado em descobrir o que seria esse fenômeno.
De repente as luzes pararam de aparecer e fomos iluminados apenas pelo luar, pois nem postes de luz existiam naquela rua.
— Como sua mãe teve coragem de alugar uma casa neste tipo de lugar? — questionou Joseph, impressionado.
Convidei-os para entrar, e eles aceitaram.
— Tem o quarto da mamãe que já foi desocupado, podem dormir lá.
— Acho melhor dormimos aqui na sala, fica mais próximo da porta. — preferiu Alessandro, apontando para o sofá.
— Ah, você diz no caso de as luzes voltarem a acender.
— Sim. Assim dá para sair correndo — riu Alessandro.
— A casa será entregue semana que vem, talvez eu questione o dono — comentei.
Entreguei cobertores e travesseiros ainda deixados em casa. Alessandro dormiu no sofá, enquanto Joseph dormiu no colchão ao lado.
— Se precisarem de alguma coisa, estarei lá em cima — avisei, subindo os degraus de volta ao meu quarto.
Ainda consegui escutar os dois conversando.
— Eu nem sei o que vim fazer aqui. Estou com medo — disse Joseph a Alessandro.
— Qualquer coisa, eu vou sair correndo sem olhar para trás — respondeu Alessandro.
— Vocês ainda estão com medo? — falei inesperadamente com a voz mais alta do que de costume.
— Liona! — Joseph gritou com a mão no peito. — Não apareça de supetão! Este lugar não me agrada.
De repente a campainha toca, Joseph se cobre inteiramente com o cobertor e Alessandro hesita em correr para a cozinha.
— Quem é? — perguntei antes, mas ninguém respondeu. Não falei, apenas segui meu coração e abri a porta, deparando-me com Tiziana e Belquier.
Deixo-os entrar antes de interrogá-los. Belquier segurava sua bola de futebol contra o peito, ofegante. Tiziana cumprimentava Joseph e Alessandro. Ofereci água para Belquier, que tomou quase derramando o líquido em sua roupa.
— Moramos perto daqui, na verdade, nunca passei por aqui, sempre costumou ter uma lenda de que os moradores desta rua são fantasmas.
— Então, galera, vou aproveitar e pedir táxi, acho melhor ir. — Alessandro se levantou.
— E só agora eu descubro isso? — perguntei indignada.
— Olha, se a bola não tivesse parado aqui — disse Belquier—, mas Tiziana se lembrou do seu endereço dado pelo Sevidegh e insistiu para que viéssemos visitá-la.
— Agradeço a visita.
— E eu agradeço a hospitalidade, mas devo partir — insistia Alessandro, aproximando-se da porta.
— Os fantasmas estão lá fora, Alessandro — brincou Joseph. — Desse tamanho e com medo de fantasmas...
— Deve ser mentira — concluiu Tiziana.
— Vocês não viram as luzes das casas ligando e desligando. Desde ontem — comentei.
Belquier e Tiziana se entreolharam apavorados. O garoto apertou ainda mais a bola contra seu peito e arregalou os olhos de medo.
Ouviu-se um estrépito lá fora e Belquier quase parou de respirar enquanto Alessandro correu de volta e se escondeu atrás do sofá.
Todos se voltaram para a inesperada reação de Alessandro, menos Belquier que parecia ter ido embora sem seu corpo. Joseph riu tanto que quase se engasgou e começou a tossir sem parar. Fui à porta e todos me impediram de abri-la.
— Preciso saber o que está acontecendo.
Alessandro permaneceu agarrado ao sofá, olhando de espreita. Belquier deixou sua bola cair no chão; Tiziana não se moveu, mas aguardava com os olhos ansiados em saber quem estava do outro lado. Joseph foi à cozinha beber água. E eu abri a porta com muita rapidez e não vimos nada. Não havia nada.
— Quem está aí? — citei a típica frase de filmes de suspense ou de terror mesmo.
— Não há ninguém.
Belquier quase me derrubou, passando por mim numa carreira, ele foi pelo lado direito até o final da rua.
— Ele deixou a bola — avisou Tiziana, pegando a bola. —Vou atrás dele.
Tiziana, mais tranquila, andou sem medo, carregando a bola de futebol. Esperei ela sumir de vista para fechar a porta.
Alessandro disfarçou, saiu de trás do sofá. Joseph voltou a se deitar.
— Bem, agora vamos dormir definitivamente. E parabenizo a coragem de Alessandro. Tem certeza de que ele era seu segurança, pai? — ironizei.
— Não sou segurança de fantasma — retrucou Alessandro, ajeitando-se no colchão.
Joseph riu e desejou “boa-noite”. Subi a escada em direção ao meu quarto.
Quando amanheceu, pensei ter sido a primeira a acordar, mas Joseph já preparava o café e esperava Alessandro chegar com os pães. Desci para a sala ainda bocejando.
— Está quase tudo pronto. Só falta o pão, Liona — informou Joseph, sentando-se na cadeira e suspirando.— Ainda digo: não sei como sua mãe e você moravam aqui.
Alessandro entrou na casa ainda receoso, suando frio e olhando para os lados.
— A padaria é muito longe — disse, entregando-me a sacola. — As casas são graciosas, mas desde ontem, tornaram-se assombrosas.
— Não existe fantasma, Alessandro — garantiu Joseph.
— Devo ir contra sua proposição, meu caro. Existem fantasmas. Eu já presenciei há muito tempo quando ainda era criança.
— Vamos parar com de falar nisso, minha coragem tem limite — respondi, tentando desvencilhar os dois do assunto.
— Minha vontade é de falar mal de Lino Menezes, mas com respeito ao seu neto, prefiro me calar – disse Joseph, fatiando o pão.
— Meu avô deu uma mudada, nem o reconheço mais.
— O que ele fez? Pintou o cabelo para ficar mais jovem? — brincou Joseph, com a boca cheia.
— Eu digo em relação ao comportamento. Éramos amigos, mais próximos, mas agora ele evita confiar em mim.
— Ele sabe que você voltou a falar comigo? — perguntou Joseph, terminando seu primeiro pão e indo para o próximo.
— Não. Preferi não falar para ele. Se eu tivesse falado, com certeza, isso não me intrigaria.
— Seu avô é esperto. Se ele não é vidente, ele dá um jeito de ser — comentou Joseph.
— Só se ele estivesse me monitorando, e isso ele não faria — desacreditou Alessandro, que ainda nem tinha tocado no pão.
— Bem, eu não havia falado, mas descobri que o investidor dos projetos era de uma indústria automobilística, o pseudônimo do dono era Menezes Di Carlo, coincidência, não acha, Alessandro?
— Mas você não está querendo dizer que...
— Seu avô. E eu não sabia disso, porque meu pai se responsabilizou por quase tudo e eu confiei nele e, hoje, estou fora da equipe Safira e meus trabalhos serão apresentados pelo seu avô. Eu deveria conduzir o projeto, mas fui enganado. — Joseph ironizou um sorriso e partiu para o terceiro pão de sal.
Alessandro balançou a cabeça positivamente e não voltou a falar de seu avô novamente durante o café.
Antes de ir embora, acompanhado por Alessandro, Joseph me aconselhou a entregar a chave ainda hoje se fosse possível.
— Não se preocupe, pai. Irei entregar no dia certo. E não tenho mais medo, não. Vou dormir e ignorar quaisquer sinais esquisitos.
— Então, está bem. Meu conselho já foi dado.
Eu os vi se afastar pelo lado esquerdo em que era mais perto de chegar à avenida. E eles já tinham pedido um táxi.

No dia marcado, o dono da casa compareceu, minhas malas já estavam prontas. A campainha tocou, e eu fui atender já com a chave na mão. Ele usava um chapéu panamá preto. Lino Menezes. Ele sorria e zombava de ter sido o responsável em implantar sistemas inteligentes nas casas da frente e controlá-las para acender e apagar a luz, além de fazer ruídos. Aquela pequena rua com suas oito casas pertencia ao Lino Menezes. Todas elas. Sem pensar muito, peguei minhas malas e entreguei a chave.
— Que pena! Você era uma boa inquilina, querida — ele disse enquanto entrava na casa sorrindo.
Não me virei, continuei andando e carregando as duas malas, uma em cada lado e fui até o táxi, que me aguardava em frente.
Entrei no carro e cumprimentei o taxista, mas ele não respondeu; apenas entreguei o endereço da minha casa nova. Ele olhou para trás, e eu gritei; as portas estavam trancadas. O taxista era um robô.
— É melhor parar de gritar, afinal, essa rua não costuma ter muito morador, não é, querida? — O robô era Lino Menezes, que o controlava remotamente. Seu rosto aparecia no ecrã. O motorista deu partida e não me comunicou para aonde iríamos.
— Vamos para o Esmeralda? — perguntei, tentando obter alguma resposta.
Nenhuma resposta. Apenas a agonia do silêncio. As portas do carro foram destravadas quando chegamos ao local desconhecido. O local era um imenso globo, com luzes ao redor, contornando-o. A plataforma que sustentava o carro cedia para outro solo. Ao descer do carro, a plataforma se ergueu novamente à sua posição.
Perambulei por aquele lugar até me atentar ao portão ainda fechado. Houve-se um estampido e ele se ergueu, revelando uma fileira de robôs androides com mais de um metro e oitenta de altura. Parecidos com esqueletos, revestidos de músculos sintéticos, eles avançaram em minha direção; tentei correr para alguma saída, mas era inútil. Eles continuaram se aproximando, até eu me sentir encurralada.
— Ahhhh!!!
Joguei-me no chão e tampei meu rosto, mas eu ainda conseguia ver seus pés se avançando para perto de mim. Um deles cessou e estendeu a mão para mim.
— Obrigada — agradeci mesmo sem saber se eu seria entendida e, pela minha surpresa, ele consentiu com a cabeça como se compreendesse o que eu havia dito. Em seguida, eles começaram a imitar meus movimentos.
— O que vocês estão fazendo? — perguntei sem entender.
— O que vocês estão fazendo? — eles repetiram em uníssono com suas vozes guturais.
Uma música eletrônica começou a tocar e as máquinas deixaram de me ver como um controle e se movimentaram, dançando. As luzes ao redor do globo mudavam de cor e, semelhante a uma pista de dança, os robôs me rodeavam. O som da música aumentou e me obrigou a tampar os ouvidos. Encolhi-me. Quando a música parecia terminar, outra já veio em seu lugar. Lembrei do celular no bolso da minha calça, peguei-o e procurei o número de meu pai. De repente todas as luzes se apagaram e só a música continuou. Os robôs não eram mais perceptíveis, o que me fez ficar estática e com medo de ser esbarrada por algum. Seus olhos voltaram a iluminar como bolas vermelhas flutuantes. Voltei para o celular e liguei para Joseph.
— Atenda logo, pelo amor de Deus — eu murmurei baixinho para que ninguém me ouvisse, mas era falível, pois os robôs repetiam a mesa coisa: “Atenda logo, pelo amor de Deus”.
Caixa postal. Joseph não atendeu. Não pensei duas vezes e liguei para Alessandro.
— Alô.

— Alô, Alessandro?
— Aqui quem fala é Lino Menezes.
Desliguei imediatamente o celular, que escorregou da minha mão.
As luzes se acenderam e eu pude ver aqueles olhos focados em mim. Eles não falavam, mas me rodeava de mãos dadas entre eles. Olhei para o chão e avistei meu celular, mas um dos robôs pisou sobre ele até quebrá-lo. Uma pisada foi suficiente para destruir o único meio de pedir ajuda.
Gritar não era mais possível. A música parou. Os robôs voltaram para trás do portão ainda aberto, seus antigos lugares, enfileirando-se lado a lado. Pude suspirar aliviada. O portão desceu e tampou cada um deles. Ver meu celular naquele estado e não poder recuperar nada, fez meu estômago doer de raiva por aquele velho intrometido. Lino estava por toda parte, um morto que ressuscitou em tudo que é lugar. Senti o chão me levantar para cima, quase perdi o equilíbrio sob os meus pés.
A parede do globo ergueu, e deixou a luz de fora adentrar, e eu pude visualizar as árvores. Eu estava no meio de um belo jardim. Concluí que se tratava de um jardim bem cuidado, com os portões gradeados. Apressei-me para sair debaixo daquele globo, que logo abaixaria novamente.
O zumbido, acima da minha cabeça, fez-me erguer os olhos e avistar aeronaves descendo.
— E aí, Liona? — alguém falou e eu fiquei procurando o dono da voz que parecia ser masculina.
— Liona!!!— aquela voz repetia meu nome e eu girava, vasculhava em tudo, até algumas flores caíam no chão.
— Quem está falando? Responda-me!
— Aqui embaixo!!!
Vi uma espécie de um mini-robô humanoide de trinta centímetros.
— Mas o que isso significa?
— Sou eu, Joseph. Estou aqui para espionar aquele velho que está tramando e utilizando os meus robôs, os quais criei com tanto esforço.
— Liguei para você desesperadamente. Eu estive com eles. São tão assustadores.
— Ninguém deve saber que estou aqui. Agora vá. Antes que o globo retorne e feche tudo, deixando-nos sem respostas.
— E você? Não vai entrar?
— Darei o meu jeito, pois se eu entrar com você, pode ter certeza, serei pisado igual ao seu celular.
— Como você sabe que meu celular foi destruído?
— Câmera é tudo, minha filha. Eu trabalhava lá dentro.
Segui seu conselho e me apressei para entrar.
Sob os meus pés, um tremor quase me desequilibrou; o chão começou a ceder. Em volta de mim estavam inúmeros autômatos androides. Eles se diferenciavam pela cor do componente externo, na região da omoplata, correspondentes ao azul, verde, lilás, cinza e vermelho.
De repente as luzes se acenderam e pessoas uniformizadas, cada um representando sua cor, entravam e algumas delas eram conhecidas: Márvia, com sua cara emburrada e cabeça cabisbaixa, tentando abafar um bocejo de sono; Flamínia olhava mais para seu lado do que para frente e parecia mais acordada que Márvia; Evêncio, com seu sorriso, achava graça de tudo, marchava como um soldado e, quando me avistou, deu um grito de chamar a atenção dos outros.
— Liona! Você por aqui? — ele falou sem se preocupar em quebrar o protocolo do silêncio.
Eles se aproximavam, e eu não me movi. Evêncio continuava a exclamar.
— Mas que biscoito era aquele? Deu-me uma dor de barriga, que me fez ficar no trono longas horas, xingando você e o Sevidegh em pensamento. Que baita diarreia de lascar!
— Psiu! Cale-se, moleque nojento! — repreendeu-o Márvia, irritada. — Oi, Liona. — Ela se deu conta da minha presença e acenou sem muita vontade.
Outras luzes se acenderam, iluminando o resto do lugar e transformando-o em agradável.
Bráulio entrou carregando um microfone em uma das mãos.
— Sejam bem-vindos! Estamos aqui reunidos para a demonstração de habilidades de seus exércitos de autômatos.
O General de Exército, Horácio Irineu, entrou, cumprimentando a todos e recebeu os cumprimentos de Bráulio.
—Vossa Excelência — cumprimentou Bráulio, ansioso. — Começaremos as apresentações em breve, senhor.
O General subiu os longos degraus e se sentou numa cadeira estofada no alto.
Eu não consegui encontrar Alessandro, mas avistei Fernão. Ele olhou para o relógio, mas logo ficou satisfeito ao ver uma pessoa encapuzada entrando. Não demorou nem cinco segundos para a pessoa revelar seu rosto. Lino Menezes. O velho gostava de se exibir e rir na frente de todos como se alguém havia contado alguma piada. De repente, ele iniciou uma dança e as luzes o focaram. Ele era o centro de todos, mas quando vi a miniatura do robô, controlado remotamente pelo Joseph, avizinhar os pés de Lino, não pensei duas vezes, tive de aceitar a vergonha e começar a dançar como ele.
— Sai, garota! O que está fazendo? — ele parou, chateado. — Dê-me licença.
— Eita! — respondi e chutei o robô para longe.
— Vamos parar com essa idiotice de dança — ordenou Bráulio, entediado. — Vamos sair pelo corredor até o pátio lá em cima. Vamos para o exterior e observá-los. — Ele apontou para os robôs ainda estáticos.
Então, subimos as escadas em espiral até parar no jardim lá fora, onde eu havia encontrado Joseph, ou melhor, seu mini-robô, que agora estava sendo chutado por alguém. A nossa passagem era corredor e escada alternadamente até ficarmos cansados.
— Não sei por que estamos desfilando feito idiotas para nada — comentou Evêncio em voz alta. Márvia deu um peteleco em sua cabeça.
— Ai!   
O portão começou a se erguer vagarosamente e cada um saiu apressadamente a comando de Bráulio.
Estávamos no pátio, meus olhos percorreram até parar diante do cubo transparente, um cronômetro ao seu lado estava prestes a zerar. Os robôs estavam entrando em fileiras, e ninguém podia se aproximar, somente os diamantes negros, robôs raros, avançados e só existiam três deles, que resguardavam o cubo de vidro. Para chegar até lá, eu teria de andar um pouco mais de dois metros. De alguma forma, Evêncio entrou e quando eu percebi, ele já estava preso, pois o cronômetro havia zerado.
— Opa! Evêncio está lá dentro!
— A primeira etapa consistirá em habilidade física — comunicou Bráulio.
— Meu irmão!!! — desesperava-se Márvia.
Tentei me aproximar, mas os diamantes negros impediram-me. Um deles me empurrou. Não consegui me desvencilhar deles.
— Bráulio, faça alguma coisa! Evêncio!
— O que esse Moleque tem na cabeça? Para fazer coisa errada, esse pirralho se torna inteligente!
Avistei Evêncio tentando pegar seu CPO23 entre os pés biônicos, que chutavam a bolinha robótica.
— Não sei o que fazer. A fechadura eletrônica obedecia ao cronômetro. Só destravaria quando marcasse vinte e cinco minutos.
Os robôs corriam e desviavam de obstáculos, mas a próxima etapa seria a luta e Evêncio poderia se machucar, pois seria localizado e tratado como ameaça. Dois minutos para começar a etapa mais perigosa.
— Lino e seu avô sabem abrir o recinto.
— E onde eles estão?
— Saíram.
Bráulio foi até à central para fazer os comandos, e o cronômetro marcava quatro minutos.
Senti uma mão apertar meu ombro e virei assustada, mas ao ver Joseph pessoalmente, respirei aliviada.
— Pai, o que está fazendo aqui? Eu não posso conversar agora com o senhor, veja aquele menino preso no cubo de vidro. E ninguém sabe abri-lo. Não encontro Lino nem meu avô.
Joseph usava um microfone auricular e pegou um controle remoto do bolso da calça e acionou um botão que fez a porta de vidro destrancar.
Sem pensar muito nas consequências, entrei no enorme recinto de vidro, apressei Evêncio a se levantar e sair imediatamente, no entanto sua maior preocupação era o seu CPO23, que se encontrava entre os pés robóticos. Empurrei-o para fora. Os robôs estavam aglomerados na minha frente, e o cronômetro marcou cinco minutos, então qualquer corpo estranho seria suscetível ao ataque. Objetos foram aparecendo, com identificadores embutidos. Alguns não poderiam ser atacados de acordo com o tipo de identificador, se o número de série terminasse em par, o objeto deveria ser protegido. Mas eu não possuía identificador e tampouco sabia se mesmo assim eu seria poupada, pois não sabia a restrição de ataque.
Os robôs inciaram a luta e eu tentei sair do alcance deles, mas tentei pegar a bolinha robótica, que não parava de rolar por todo o espaço. Um dos robôs focou em mim e não descansou enquanto não me destruísse. Fugi dele entre os outros autômatos, agarrei a CPO23, comecei a subir a escada, mas o robô me puxou até me derrubar no chão. Ele me ergueu e me jogou contra a parede de vidro, meu nariz bateu com tanta força que senti uma dor e uma tontura. Corri desesperadamente no sentido contrário ao robô que me agrediu. Subi a escada quase tropeçando e as gotas de sangue sujava cada degrau. Do outro lado, havia um escorredor no qual me joguei. A CPO23 permanecia protegida sob meus dedos. Ouvi o grito de desespero de Joseph. Não consegui abrir os olhos, a dor latejava.
Alguém me erguia do chão, levantei minha cabeça e vi o Orientador, puxando-me. Ele perguntava como eu me sentia. Os robôs haviam sido desligados. Ele me arrastou sobre seus ombros, meu pé doía quando eu tentava apoiar no chão.
— Emergência! — meu pai gritava desesperado, tentava estancar o sangue do meu nariz com um lenço.
Uma maca foi trazida para mim. Virei a cabeça para o lado quando vi Seu Escadas chegando e andando com o auxílio de uma bengala.
— O que aconteceu com Liona? — ele quase se desequilibrou ao ver meu estado, mas Joseph, irritado, discutiu com ele.
Lino Menezes, que vinha em seguida, lamentava pelo incidente.
— Ninguém devia estar dentro com os robôs.
Joseph quase avançou em Lino, se não fosse o Alessandro, que ficou entre os dois.
— Eu vou atrás dos meus direitos, Lino! Eu vou acabar com essa palhaçada! Vou processá-lo! Saia daqui!
Lino Menezes veio até mim e pediu desculpas. Ele apertou minha mão. Fui levada imediatamente a uma sala hospitalar. Fiquei sozinha em companhia de um robô, que cuidava de meus machucados.
— Obrigada. Já me sinto melhor.
A boca virtual do robô enviesou através de seu ecrã.
Alessandro entreabriu a porta e pediu licença para entrar, o robô autorizou.
— Está melhor? — ele perguntou enquanto se sentava em uma cadeira ao lado do leito. — Lamento pelo meu avô. As coisas saíram do controle.
— Por que tudo isso? Por que perdemos o controle do futuro? Até que ponto chegaremos, Alessandro?
A porta foi escancarada por Lino Menezes, que entrou em desespero e alertou sobre a chegada da polícia federal.
— O que você estava fazendo lá dentro? Quer complicar minha vida?! Você terá de falar que a responsabilidade foi sua!
Atônita, tentei me levantar, mas Alessandro me impediu.
— Por favor, vô — Alessandro pediu para que Lino não entrasse e fosse embora, deixando-me descansar com meu nariz quebrado.
— Não sei dizer sobre isso, mas sei que o Ministério Público intervirá e essa é a maior preocupação de Lino, dependendo do seu depoimento, além de esconder suas verdadeiras intenções já escritas e enviadas para alguns interessados.
Alessandro explicou que, seu avô, Lino Menezes, o qual ele sempre respeitou e admirou, estava focando em vender robôs androides capazes de lutar e atirar com armas. A princípio, o foco seria na segurança pública, mas seria complicado obter autorização e investimento suficiente. A vontade de ter uma máquina perfeita, incansável, imortal e com uma inteligência superior e flexível, fez com que Lino planejasse algo que trouxesse seguidores até ele. A concorrência, o dinheiro e a avaliação foram os elementos perfeitos. Mas nenhuma autoridade deveria tomar conhecimento disso, o governo e a mídia poderia atrapalhar e interferir, alegando falta de ética profissional na área.
Alessandro, com cuidado, abraçou-me e pediu desculpas por não ter evitado que eu me machucasse.
— Estou bem, Alessandro. Só foi um nariz quebrado e uns hematomas pelo corpo.
— Achou isso pouco? — ele riu e me abraçou mais forte.
— Ai!
— Está vendo?

    Capítulo Vinte e Um — Os robôs não morrem
O incerto dia
Robôs de todas as equipes foram confiscados para o azar de Lino Menezes, que teve problemas com a justiça e teve seu rosto estampado em jornais, revistas de ciência e tecnologia.
Lino Menezes não ficou calado, explicou sua versão em uma entrevista:
“ Sei que a senhorita Liona foi agredida por uma das máquinas e isso fere uma das leis de Asimov, mas foi um acidente, ela entrou no local proibido, entretanto está viva e os ferimentos foram tratados por um robô, e isso ela não pode esquecer. Assim como os humanos ferem, eles também curam.”
Fui conhecer a casa nova e me adaptei rapidamente, esquecendo da antiga com seus problemas.
— E os laboratórios?
— Está fechado e sob responsabilidade da polícia federal.
Projetar robôs não é crime, mas criá-los para ferir pessoas é. Uma pauta que voltou e as discussões não pararam, e foi necessária discutir a necessidade de uma legislação severa na área robótica.
A campainha tocou quando eu estava pensando no que iria estudar e trabalhar. Minha mãe correu às pressas para atender por saber quem estava do outro lado da porta.
Ela abriu e o abraçou fortemente até os dois perderem o ar. As lágrimas rolaram nos olhos dos dois apaixonados. Nemestrino e Anne estavam novamente juntos.
— Oi, Liona — ele me cumprimentou.
— Está tudo bem para você, filha?
— Depois dessa cena de novela, a senhora vem me perguntar? — ri e confirmei com a cabeça, deixando-os a sós.
— Liona, espere! — Nemestrino interrompeu meus passos em direção ao quarto.
— Diga, Nemestrino.
— O Orientador pede desculpas por nunca ter falado direito com você. Ele perguntou de você.
— Eu esqueci de agradecê-lo. Como ele está? Onde mora?
— Meu pai está bem.
Perplexa, arregalei os olhos e fitei Nemestrino até ele se explicar.
— Orientador é meu pai.
A partir daquele dia, descobri que o Orientador era pai de Nemestrino. Encontrei-me com ele quando todos nós se reunimos num jantar em casa. Minha mãe preparou espaguete com molho de tomate.
Não houve muitas falas durante o jantar, entretanto o Orientador prometeu um almoço especial para amanhã.
Despedimos de Nemestrino e Orientador e garantimos a nossa presença no dia seguinte.
Faltava quinze minutos para meio-dia, e, no carro, alterandamente, Nemestrino e minha mãe se olhavam.
— Cuidado com o volante, Nemestrino — avisei.
— Não se preocupe, Liona.
Finalmente, chegamos à casa do Orientador. Em frente a um imenso portão preto, Nemestrino ligou para seu pai e, em minutos, o portão se abriu, revelando uma mansão lilás, com quatro andares.
— Sejam bem-vindos a minha casa secreta, ninguém sabe de sua existência, ningueém que nós conhecemos, claro — recepcionou o Orientador, com o braços esticados.
— Qual é o seu nome, Orientador?— perguntei, cansada de chamá-lo por um codinome.
— Pode me chamar de pai do Nemestrino, há! — ele riu e depois nos conduziu para dentro de sua mansão.
Vale ressaltar que o interior de sua casa lembrava a central da Ametista. Se Antônia desenvolveu o ambiente virtual para a telepatia computacional, então ela sabia sobre tudo e todos, então aquela residência não era secreta como dizia o Orientador.
— Antônia já fez uma visita, certo?
— Por que está falando de Antônia, filha?
— Não vai responder minha pergunta, senhor Orientador, pai do Nemestrino?
— Ela esteve aqui sim, Liona. Afinal, trabalhei ao lado de Lino Menezes, Bráulio, Antônia e Seu Escadas. Você reconheceu este lugar, não foi?
— Esteve no experimento de realidade virtual, aquele que odiei.
— Sim. Aqui foi um dos primeiros laboratórios na década de 90. Depois da suposta morte de Lino, eu decidi ficar na equipe Ametista, na verdade, vou explicar o início de tudo, afinal, você ainda deve estar confusa. No primeiro laboratório, trabalhava Antônia, Seu Escadas era sócio de Lino, Bráulio e Nemestrino. Antônia saiu da empresa antes de Lino fingir a morte, tudo indica que ele contou com ela para esse disfarce. Dois anos após a morte de Lino, Nemestrino e Antônia se casaram e ficaram pouco tempo juntos, mas foram sócios da empresa Rubi. Bem, antes que eu me esqueça, o laboratório se dividiu em outros, e eu os criei, colocando nomes de Esmeralda, Rubi, Ametista, Safira e Diamante. Depois, Antônia se separou e se casou com Almáquio, um professor no curso de Engenharia Mecatrônica. E Joseph foi trabalhar com Seu Escadas.
— Como você conheceu meu pai, mãe?
— Eu era vendedora de eletrônicos, e ele foi comprar alguns componentes. Nemestrino, quando se separou de Antônia, foi morar numa casa ao lado da minha.
— E por que tanta coincidência?
— Porque eu morava na rua Eucalipto.
— Aquela ruz vazia, onde Lino é dono?
— Sim. Ele fez de tudo para manter seus seguidores por perto — continuou Orientador. — E sua mãe, bem, sabia sobre Lino, afinal, ele era dono da loja e através dela, ele descobria exatamente o que era comprado, além de saber sobre seus compradores, ou melhor, seguidores de Lino Menezes.
Ergui meus olhos até parear com os de minha mãe e ficamos nos encarando em silêncio.
— E não conhecia Seu Escadas? — encarei-a até os olhaos lacrimejarem.
— Não, eu não o conhecia e nem sabia que Joseph era filho dele.
— Seu Escadas soube que você era filha de seu filho na reunião que Lino propôs sob minha responsabilidade de avisá-los sobre a avaliação dos robôs. Antônia queria afastar Nemestrino de Anne, então contou a verdade para seu avô e depois disso, você já sabe, né. A equipe Ametista ainda não morreu, tenho a maioria dos robôs comigo, e eles estão avançando cada vez mais, estao ligados ininturriptamente, chegando às habilidades complexas, por isso se quiser pertencer à Ametista, será bem-vinda, Liona.
— Chega disso! Fale para seu pai parar, Nemestrino! — minha mãe se levantou bruscamente.
— Pai, pare!
— Esclareça mais, Orientador.
— Pode me chamar de senhor Di Carlo. Este é meu nome.
— Menezes Di Carlo?
— Não tenho parentesco com Lino Menezes, apenas os sobrenomes são iguais. Nós dois tivemos um desentendimento, então acredito que ele virá disposto a me derrubar, pois eu ainda estou de pé.
— Vamos embora, Liona!
— Mãe!
— Vamos agora!!!
Ela saiu transtornada e não esperou por Nemestrino, que deu-lhe a chave do carro.
— Por que a senhora não me deixa entrar para a equipe Ametista? Preciso estudar e trabalhar.
— Aquilo não é lugar para trabalhar, não quero que você se machuque novamente, e vamos ser realistas, trabalhar num local escondido?
— Está bem, mãe.
Minha mãe estacionou o carro na garagem e disse que iria cochilar um pouco, então fui para meu quarto e fiquei pensando na proposta de Di Carlo, o Orientador. Peguei meu celular e liguei para ele. Dois toques.
— Alô.
— Eu aceito. Sou eu, a Liona. O que devo fazer agora?
— Não quero problemas com sua mãe.
— Sou adulta e tenho de assumir minhas responsabilidades.
— Você só está no começo da fase adulta, prefiro que converse com sua mãe.
— Vamos conversar nós dois antes, pode ser? O quanto antes melhor. Minha mãe está cochilando neste momento.
— Irei buscá-la. Nemestrino já saiu.
Desliguei o celular e preferi esperá-lo fora de casa. Na calçada, abaixei-me e me encostei na parede. Os carros passavam, e eu os contava e categorizava pelas cores. Muito diferente da rua Eucalipto, que poderia se chamar rua Fantasma.
Um carro preto estacionou do outro lado da rua e eu me atentei bem ao motorista, mas os raios solares atrapalhava. O motorista era um homem que desceu do carro, usava óculos escuros e um sobretudo. Ele se aproximou, e percebi que ele estava querendo chegar até mim. Levantei-me e abri a porta de casa; ele gritou, gritou meu nome.
— Sou o motorista de Di Carlo. Por favor, entre no carro.
Ele era familiar, mas era difícil ver a identidade do homem, ele usava aparatos para se esconder. Entrei no carro apreensiva, mas confiante de que eu chegaria ao destino correto. Quase desci do carro em movimento quando entrei na rua da minha casa antiga.
— Por que o senhor está passando por aqui?
Ele não respondeu, mas parou em frente a minha casa.
— Desce do carro! — ele ordenou.
— Onde está Di Carlo? Não era para estarmos na casa dele?
O homem, cujo nome eu desconhecia, retirou o chapéu, peruca e os óculos. Lino Menezes, o tal em pessoa estava diante de mim, com um sorriso largo.
— Por isso achei familiar sua voz e seu jeito.
— Podem levá-la.
Dois robôs, aparentemente da equipe Safira, levaram-me a força, empurraram-me até um guindaste. Não consegui abrir os olhos e gritava desesperadamente. Subi dentro de uma gaiola e ao atingir 40 metros de altura, entrei em desespero.
Meu medo amenizou um pouco quando avistei o Orientador sair de um carro, que havia acabado de chegar.
— Solte-a!!! O que está fazendo, Lino? — o Orientador correu para tentar me salvar, mas Lino Menezes gargalhou e falou que as ruas foram bloqueadas e ninguém mais entraria.
— Vou explicar direitinho para você, meu antigo amigo — iniciou Lino —, você conseguiu entrar, porque eu autorizei, mas agora você vai entrar em contato com quem for e através das câmeras, poderá se orientar para salvar Liona. Você chamará seus androides e os controlará para iniciar o resgate. Caso contrário, ela vai cair e não tem “air bag”.
O Orientador respirou fundo e pegou o celular; escutei-o falando com Alessandro, orientava-o para trazer as máquinas e acessar aos vídeos em tempo real para planejar alguma maneira para me tirar daqui.
Durante os vinte minutos seguintes, Lino e Di Carlo discutiam incessantemente, passado e futuro se cruxavam mais que o presente. Poucos metros separava os dois, e o ar caloroso da discussão fazia Lino querer avançar.
— Não ficará do meu lado? — perguntou Lino.
— Eu já disse que os meus interesses divergem dos seus — retrucou Di Carlo.
— Mentiroso. Eu sei que você não vai deixar para lá o que começamos.
Várias motos chegaram, e os robôs saltaram, esperando as próximas ordens. Remotamente, Orientador se comunicava com alguém pelo seu celular.
— Está a caminho? Ótimo. Se der errado, teremos o “air bag”.
Um helicóptero sobrevoava sobre mim, uma corda descia até encostar na gaiola, o piloto era um robô humanoide e descia outro pela corda. Ele se agarrou às grades e outro robô, no chão, enchia o “air bag”.
O robô tentava abrir a gaiola, mas Lino, que se espreguiçava, avisou que se a gaiola fosse aberta, eu cairia.
— O que você quer, Lino? Deixe Liona sair, é perigoso ela cair dentro da gaiola.
— A gaiola poderá ser aberta por baixo, onde ela está pisando, é por lá que poderá sair.
Di Carlo se apressou a dar as instruções e o robô, logo, ordenou para a corda descer mais até ele alcançar o piso da gaiola e desparafusar e pedir para eu manter a calma.
— Liona, agarre-se às grades para sustentar seu peso, pois eu não sei o que poderá aconteder de agora em diante — avisou a voz gutural do robô.
Respirei fundo e o obedeci. Minhas mãos suadas, atritavam com os ferros e escorregavam.
— Está bem! Chega! — gritou Lino. — Não quero machucar ninguém — ele continuou.
Mas era tarde demais, eu já havia caído e o robô segurou meus braços e ficamos suspensos pelo ar. Fechei os olhos e senti a corda se erguendo até o helicóptero.
Finalmente, eu pude respirar aliviada quando o helicóptero pousou no meio da rua.
— Você prefere trabalhar sozinho, Di Carlo?
— Eu não concordo com você, Lino. Você passou de todos os limites e está colocando vidas em risco.
— Não há inovação sem risco, sem ousadia, sem medo nas veias.
— Você não precisa arriscar vidas para crescer. Eu vou denunciá-lo! Dessa vez, a polícia vai prendê-lo.
— Então, vamos nós dois. Eles estão atrás de nós e se você facilitar, o seu trabalho e a sua equipe Ametista vai ser dizimada. Eu caio, mas vou me apoiar em você.
Os dois se olhavam até saírem faíscas de ambos olhares irritados.
— Está bem, você ganhou, Lino. Eu vou ficar quieto, mas não se intromete com Liona nunca mais.
— Ok. Então, devolve meu neto. Dispensa Alessandro. Não o quero na sua equipe! — sentenciou Lino.
— Eu não sou marionete, meu avô. O senhor não pode decidir o meu caminho — discordou Alessandro, que vinha se aproximando.
— Você é meu neto! Fui seu pai por toda a vida, não pode ser ingrato comigo!!!
— Eu sou seu neto e filho, mas não sua propriedade!
Um carro palio preto surgiu imediatamente e a pessoa que saiu do carro foi Liam, com cabelos mais longos e trajes escuros. Ele tirou seus óculos e revelou olhos castanhos claros. Chamou Lino, que entrou no carro e não quis mais conversar com o próprio neto.
E só restou nós três, perplexos. O Orientador nos apressou para sair da rua Eucalipto, enquanto ele organizava toda a bagunça deixada por Lino, eu aproveitei para consolar Alessandro.
— Não deixe que seu relacionamento com seu avô seja danificado. Vocês precisam conversar.
— Não adianta, eu não posso fazer nada. Meu avô é teimoso e ele está decidido a iniciar uma guerra cibernética.
Eu segurei suas mãos e insisti para que ele não desistisse do Lino, mas ele se desfez em lágrimas, lamentando romper um laço tão forte.
— Me perdoe, Liona — ele me abraçou, soluçou e gritou.
— Chorar alivia a dor.
Dias depois, pude me reencontrar com meu avô, que, de maneira esperada, ficaria ao lado de Lino Menezes. Vê-lo levantar da cadeira de rodas lentamente e ser auxiliado por um robô mais alto do que ele, fez eu querer entrar definitivamente na equipe Ametista. A tecnologia não é perigosa, mas quem a conduz pode ser. Iniciava-se a guerra cibernética.

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