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Minhas experiências com o Santo Daime
Marcelo Henrique

Agora, sei que o corpo é mesmo um templo:
Em mim, eu sinto sensações intensas,
Eu sinto “forças”... sinto até “presenças”
E, em formas vagas, quase que as contemplo.

(MARCELO HENRIQUE in “Pequena Canção da Vida”)

                                                                                                         

Escrevo a maior parte deste relato (exceto a parte final) decorridas apenas 30 e tantas horas após haver participado dos trabalhos de uma sessão de cura no dia 05 de março de 2006 (domingo), numa comunidade localizada no município de Camanducaia/MG, sendo, portanto, a minha segunda experiência com a ayahuasca (o “vinho das almas”!) ou, simplesmente, o chá do Santo Daime, já que minha “iniciação”, chamemo-la assim, ocorreu em janeiro do mesmo ano, sem quaisquer ocorrências dignas de nota, exceto a estesia, o bem-estar, a comunhão com o mundo que me cerca – essa percepção interior que nós chamamos de “insight”, outros, espiritualizando o conceito, chamariam de êxtase, mas que a comunidade do Daime chama de “miração”... Reportando-me àquela primeira vez, depois de um estado que eu definiria como semitranse (por mim atribuído, é necessário que se registre, às inegáveis propriedades enteógenas da folha, “Chacrona”, e do cipó da Amazônia, “Jagube” –, enfatizando que “enteógeno” é uma coisa e “alucinógeno” é outra bem diferente!), ancorei no mundo e no meu corpo totalmente feliz e refeito com a nova experiência, rotulando, eu próprio, a amálgama de sensações que os meus sentidos lograram experimentar como sendo apenas uma “viagem” boa, ressaltando, bem me lembro, que fora melhor do que ver golfinhos em Trindade. Não agora! Não desta vez!

Escrevo sobretudo para mim, para eu me lembrar do pouco que perpassa em minha mente, à maneira de lembranças difusas ou estilhaços de memória, querendo resgatar o que me for possível neste momento em que ainda não conversei com amigos mais próximos que, partícipes da mesma sessão, hão de haver testemunhado momentos cuja lembrança não possuo para montar o meu próprio quebra-cabeça mental.

Ao contrário da primeira vez em que, logo após a primeira dose do chá, eu estive, no início, como que sufocado (faltava-me quase o ar!), sentindo e “vendo” (efeitos da alucinação, por certo... será?!) as vísceras fervilharem, advindo deste estado um incontrolável enjôo que me fez vomitar o “nada” que havia no estômago, deixando-me em frangalhos, desta vez foi diferente: bebi, serena e calmamente, a primeira dose do chá, retornando ao meu lugar, no círculo de orações, relaxando corpo e mente, abstraindo-me, astralizando-me, ouvindo os hinos que, como se fossem verdadeiros mantras, penetram nos ouvidos e na mente das pessoas – a impressão que se tem é que os hinos “conversam” com cada um de nós. Tentei me concentrar, evitando a dispersão mental, feliz comigo por estar, até aquele momento, experimentando uma inexprimível paz de espírito!

Segunda dose! Lembro-me de que, tendo fechado os olhos para beber calmamente, até demoradamente, a dose do chá que me foi servida, vi (mentalmente) um “fundo” violeta e supostas velas acesas. Abri os olhos... e nada! Terminei de beber o chá e retornei ao meu lugar.

Aí, tudo começou. Senti um formigamento no queixo, perdendo, quase, o controle da própria boca, da mandíbula, sensação já experimentada também na primeira vez. Uma sede insaciável se apoderou de mim... Uma quentura na nuca e nas costas! Uma força enorme rondando o meu ser, perceptível na forma de arrepios! De repente, um invencível impulso fez com que eu me erguesse e, saindo do círculo de orações, batesse palmas e, concomitantemente, os pés no chão (sobretudo a perna esquerda, se bem me lembro!). Isso também já havia ocorrido na primeira vez, mas eu havia conseguido “me controlar”. Desta vez, contudo, iria passar por uma nova experiência que me faria rever meus frágeis conceitos acerca da doutrina do Daime e de todo o ritual que o cerca...

Lembro-me, antes de ser praticamente “expulso” do controle do meu corpo, de que me senti mais forte, até maior em termos de estatura física, uma sensação de que seria possível (e naquele momento até necessário) voar; neste momento, vi-me impelido a bater os braços com toda a força (na mente, uma tênue intuição de penas como se eu tivesse asas, não sei definir ao certo...). Realmente, a partir disso eu perdi totalmente o controle sobre meu corpo – isto é inegável! –, como se eu houvesse sido empurrado para o banco de passageiros de um veículo, à mercê, portanto, do motorista, do condutor... que, naquele momento, não mais era eu.

Tenho que admitir, sou forçado a admitir que outro ser esteve, digamos, “incorporado” em mim, algo involuntário para mim e, talvez, para a entidade. Digo isso porque, nos raros momentos de consciência (e foram realmente raros!), pude sentir uma imensa raiva, uma dor terrível, uma angústia. Na hora, achei que tais sentimentos fossem contra mim. Mas não... Compreendi, horas depois, refletindo já em minha casa, que a dor, a raiva e a angústia do tal espírito, da entidade enfim, eram porque se sentiu “aprisionado” no meu corpo.

Lembro-me, vagamente, de uma “consciência dupla” – meus sentimentos e os dele (a) compartilhados. Neste momento, ao mesmo tempo em que pude sentir uma imensa raiva transformada em verdadeira ira – o que me fez dar murros em pilastras e paredes, sangrando os punhos, machucando minhas mãos –, foi possível sentir, também, e isto me pareceu significativo, um imenso, incomensurável amor pela natureza! Um grande amor pelos elementos e, impedindo essa integração, a prisão-corpo... o que enraiveceu aquela alma, que não era a minha. Estou certo disso...

Vomitei... vomitei muito! Só me lembro de estar vomitando; lágrimas caíam, tanto era o desconforto gerado pelo enjôo e pelo sofrimento interior.

Na luta por retomar o controle do próprio corpo, auxiliado pelos chamados “fardados” – os orientadores sempre a postos para ajudar, orientar e, se for o caso, socorrer –, sobretudo por Rodrigo Dozzo, um dos fiscais “fardados”, que mais se destacou como meu anjo tutelar, havia momentos de lucidez, à semelhança de pequenos “flashes”. Meu amigo “Lucas” (nome fictício) me disse algo no sentido de que eu deveria me aproximar de uma enorme cruz que há naquele local. Bastou eu ouvir isso e olhar para ele e percebi que “Lucas” continuava falando comigo, já que mexia os lábios, mas eu fiquei totalmente surdo à sua voz, ou seja, fui impedido de ouvir o que ele tentava me dizer. Só pude dizer: “Eu não consigo te ouvir!”, antes de novamente perder a consciência.

Fui levado para próximo da cruz... Havia limites como se fossem riscos de luz formando losangos no gramado. Eu me sentia preso, cercado por tais luzes.

Houve momentos de extrema compaixão que eu senti (mas não era, bem o sei, um sentimento meu) por haver me machucado. Uma compaixão, um dó que quase me (o) levou às lágrimas. E perdi a consciência novamente!

Em dado momento, ainda sentindo aquela “força” dentro de mim, tentei me aproximar do círculo de orações, retomando o meu lugar. Para minha surpresa, ouvi uma espécie de rugido ameaçador, um ronco de fera mesmo, e percebi que partia de outro amigo; era como se fosse um aviso para que eu (a entidade) não me (se) aproximasse do círculo. Incrível e assustador!

O que me confundia era que, quando um dos “fardados”, provavelmente Rodrigo, me chamava pelo nome, Marcelo, tentando mexer com meus brios, no sentido de que cabia a mim o domínio de meu “aparelho” (termo utilizado por eles), eu era compelido a retomar o controle da situação. Em certos momentos, uma outra conversa, mais ríspida, mais austera, era com a tal entidade, advertindo-a de que aquele “aparelho” não lhe pertencia, que não poderia, portanto, machucá-lo, que poderia “trabalhar” à vontade, mas sem interferir na harmonia do todo etc. O que consegui ouvir foi uma ou outra fala fragmentada pelo entra-e-sai do estado consciente. Nestes instantes, eu via “Lucas” num dos bancos de madeira mais afastados, olhando para mim, o que me deixava confuso: o que estaria ele fazendo ali, se deveria estar dentro do círculo de orações? Sua presença ali, fora do círculo de orações, não faria sentido... Estaria também “passando mal”? Seria mesmo o “Lucas” ou apenas uma ilusão?

Já de volta ao círculo, tentei, firmemente, me concentrar no hinário, às vezes conseguindo, outras vezes me dispersando... e perdendo o controle, novamente: as letras se “embaralhavam”, se misturavam; acompanhar a leitura dos hinos e das orações era missão praticamente impossível, porém, conforme eu pude perceber, extremamente necessária. Desconcertante isso! Constrangedor até! Eu me senti uma espécie de “boneco de carne”...

À noite, já em minha casa, tentei dormir. O cansaço era grande, o desgaste ainda maior. Ouvi, nitidamente, uma voz que me mandava ficar acordado. Não consegui. Passei a noite inteira rememorando, inconscientemente, alguns daqueles terríveis momentos, sentindo, uma vez mais, dor e angústia, sentindo-me novamente advertido pelos “fardados”. Uma noite de pesadelos, enfim!

Uma grande batalha fora travada. Não tenho dúvida de que o que eu tive foi uma espécie de “vivência iniciática” baseada no trinômio amor-perdão-sofrimento.

Retornei uma terceira vez, no intervalo de apenas uma semana, participando de uma celebração diferenciada das duas primeiras, seja pelo horário (desta vez, foi à noite!), seja pelo dirigente, seja pelo hinário seguido. Quando a dispersão espiritual (e com ela uma gama de forças cujo controle então desconhecia) ameaçava me tomar, dominando meus sentidos, ouvi a voz de Rodrigo, o fiscal já mencionado: “Marcelão, concentre-se no hinário; o segredo é a respiração, mano!”. E foi o que eu fiz: tornei-me leve, diáfano, envolvido por uma energia boa. Voltei renovado, sentindo-me como se houvesse passado por uma sessão com um competente massagista. Acabara-se a dor nas costas; extinguira-se o peso quase físico que há uma semana eu vinha sentindo...

Inúmeras experiências se sucederam. Experimentei, evidentemente, novas sensações, enriquecendo-me e me fortalecendo. Poderia enfocar, detidamente, o aspecto do fenômeno, do prodígio, através da momentânea alteração dos sentidos, mas não o considero o mais importante, o essencial – faz parte, mas é, digamos, pirotecnia do espírito! O que importa é a transformação interna, quando ocorre. E esta é definitiva!

Embora creia que nenhuma beberagem tenha o condão de aproximar o homem de Deus – daí a real importância das orações, da intenção e dos objetivos retos e elevados que levamos em nosso coração e em nossa mente –, também sou forçado a crer que o Daime abre, de alguma maneira, uma espécie de “portal”, acessando como que um atalho para a Espiritualidade, à maneira do que meus ancestrais (sou descendente de índios!) praticavam através do Xamanismo. Pelo que senti na pele, pelo que vivenciei e continuo vivenciando, afirmo enfaticamente: não se trata de um “barato”, de mera alucinação. Até porque todo tipo de droga (lícita ou ilícita), pelo que sei, à medida que é consumida, altera, tanto quanto se deduz, o estado de consciência do usuário, ou seja, quanto mais se consome, mais alterado fica. Isto não ocorre com o Santo Daime, não por esse parâmetro quantitativo: o indivíduo pode tomar três, quatro doses de Daime e não se sentir “tocado” no âmago de seu ser... outro, tomando apenas uma dose mínima (meio copo americano, até menos...), pode, como aliás ocorre, se sentir tocado por essa força inexprimível; é uma experiência individual, estritamente espiritual, e somente os buscadores que passaram por ela poderão apreender o real sentido de minhas palavras sem a prevenção natural do cético, nem o fanatismo dos que não têm os pés bem firmes no chão.

Como “resumo da ópera”, como se diz, o que fica claro para mim é que a ayahuasca, aqui chamada de Santo Daime, mas também utilizada, contemporaneamente, na União do Vegetal e mesmo no Xamanismo, sendo uma “planta de poder”, tem o condão de, na estrita observância de seu uso ritual, abrir os chakras – que são, espiritualmente, os pontos de energia vital – numa velocidade-relâmpago que muitos passam à vida inteira perseguindo, sem êxito, em estudos e meditação.

As experiências acima descritas têm me tornado melhor como gente, como ser humano; sinto-me mais generoso – e não apenas com aqueles que me amam e aos quais eu amo, pois isto, além de natural, seria muito fácil. Também me sinto novamente próximo da oração – este maravilhoso diálogo com Deus! E não me refiro, aqui, apenas às velhas e desgastadas rezas que me fizeram decorar, aos nove anos de idade, no catecismo... Tem de haver uma conexão sincera com as forças do Alto! Nossa alma é que tem de estar de joelhos...

Os punhos já não doem. A alma, sim, por vezes dói quando constato minha pequenez se fracasso – o que freqüentemente ocorre – na simples missão de ser bom, de praticar o bem!


Marcelo Henrique – Amparo/SP – E-mail: mhpoeta@yahoo.com.br


Biografia:
Marcelo Henrique, poeta e escritor, reside em Amparo/SP. E-mail: mhpoeta@yahoo.com.br Site: http://www.mhpoeta.xpg.com.br

Este texto é administrado por: Sérgio Vale
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