Como foi dito na introdução, este livro não é um trabalho acadêmico. Pouco espaço é dedicado às referências bibliográficas e pouco valor é dado à tentativa de respaldar as idéias em literatura. Porque então dedicar uma seção à Piaget? Esta pergunta é ainda mais importante se lembrarmos que nenhuma seção foi dedicada a Freud, sendo este autor tão ou mais importante para a psicologia do que Piaget o é para a educação ou o aprendizado. Cabe lembrar que psicologia e aprendizado são dois dos pilares nos quais se apoia o presente livro.
A resposta à pergunta formulada acima é simples. Piaget é um humanista e a visão dele tem muita coisa em comum com a visão aqui apresentada. Em contrapartida, Freud é um cético e sua visão do ser humano é extremamente negativa e apresenta poucos pontos em comum com a presente cosmovisão. Não quero, de forma alguma, diminuir a enorme contribuição de Freud para o entendimento da psique humana. Certamente Freud foi muito mais revolucionário do que Piaget e a importância de fatores como sexualidade, inconsciente, sonhos, repressão e sublimação nos distúrbios psíquicos, deve muitíssimo a Freud. Acontece que o foco do presente livro não são os distúrbios psíquicos, mas sim uma cosmovisão terapêutica, e aí a contribuição de Piaget é maior. O foco em Freud é como curar doentes, ou seja, o foco é no remediar. O foco em Piaget é em prevenir a doença, ou seja, em como criar homens sãos.
Nos parágrafos a seguir, vamos descrever brevemente as idéias principais da epistemologia genética de Piaget, em especial, as idéias que tem ligação com o material que está sendo aqui apresentado. Cabe lembrar que Piaget trabalhou também com educação infantil e isto será quase que inteiramente deixado de lado.
A teoria de Piaget parte da idéia de que o desenvolvimento humano é um longo processo que surge de uma interação entre o ser e o mundo. Ele contesta a suposição da psicanálise de que este desenvolvimento é fruto de instintos (pulsões ou Triebe) bem como a suposição do behaviorismo de que o ele é resultado do mecanismo estímulo-resposta [1].
Piaget teve como tarefa principal examinar a gênese do conhecimento e por isto a sua teoria é conhecida como epistemologia genética. Ele verificou que o desenvolvimento do conhecimento ao longo da vida de uma pessoa passa por mudanças qualitativas além das quantitativas. Assim, existe uma mudança do concreto para o abstrato, do simples para o diferenciado. Ao longo do tempo, o conhecimento torna-se mais sistemático, flexível e adaptado às circunstâncias, ou seja, à realidade.
É o indivíduo que constrói o conhecimento e é a verificação da inadequabilidade de certas concepções para explicar fatos e experiências do dia a dia, que nos leva a corrigi-las. É por isto que a teoria de Piaget é denominada de construtivismo. A inteligência é a construção de estruturas que permitem uma cada vez melhor adaptação às situações que se apresentam. Peças básicas destas estruturas são os esquemas segundo os quais objetos e experiências são ordenados e relacionados.
O esquema (ou estrutura) fornece um padrão ou um modelo segundo o qual conhecimentos e comportamentos são conectados. Por exemplo, um destes esquemas permite fazer a conexão entre um biscoito e uma mordida cautelosa, bem como entre uma maçã e uma mordida firme. Aqui existe uma conexão entre um conhecimento (cognição) da natureza do alimento e um comportamento (forma da mordida). Evidentemente existem esquemas que fazem conexões puramente a nível de cognição (por exemplo, quando se escuta algumas notas musicais e as associamos a determinado compositor, ou quando determinada idéia nos leva a pensar em outra) ou puramente a nível de comportamento (por exemplo, quando se leva um pisão no pé e se reage com um grito).
Uma situação que surge é adaptada a um esquema através dos mecanismos de assimilação e acomodação. A assimilação é a incorporação de uma nova experiência a um esquema pré-existente. Neste caso a estrutura cognitiva (esquema) existente é suficiente para lidar com a experiência e percebê-la de forma adequada.
Existem, no entanto, situações em que é preciso modificar o esquema pré-existente. Por exemplo, a criança desenvolve desde cedo um esquema para agarrar/pegar. Quando ela se depara com um líquido, passa a ser necessária a criação de um novo esquema que, no caso de uma bebida, pode ser o de sorver com a boca, ou, apanhar com a concha das mãos. Aqui trata-se de acomodação, ou seja, trata-se de criar um novo esquema ou modificar um esquema antigo. A acomodação se dá sempre que um fato ou uma experiência não conseguem ser trabalhados / entendidos através da assimilação. A acomodação implica em um certo estágio de desenvolvimento, na medida em que um novo esquema não pode ser criado se não existirem condições para tal. Por exemplo, o novo esquema de apanhar com a concha das mãos só pode ser criado se a criança já tiver habilidade manual para realizar este tipo de operação.
Nenhum comportamento parte da estaca zero. Parte-se sempre de esquemas pré-existentes. É isto que caracteriza o construtivismo, ou seja, o saber é uma construção em que cada nova etapa leva em consideração as etapas já existentes. As estruturas que compõe a construção podem ser congênitas / inatas, ou então, adquiridas.
Na verdade, assimilação e acomodação ocorrem conjuntamente e, em maior ou menor grau, estão presentes em toda percepção. Quando a assimilação prevalece sobre a acomodação, ocorre um processo de centralização em si mesmo (fechamento) porque o indivíduo rejeita novas experiências que não se deixam enquadrar dentro de esquemas pré-existentes. O caso extremo é o do autista. Mas também as fantasias deixam se explicar pelo prevalecimento da assimilação. Quando se tecem fantasias, deixa-se de ver a realidade exterior e refugia-se em uma realidade interior (fantasia). A realidade passa a ser representada pela fantasia. Este é o processo utilizado por crianças muito novas que não tem condição de criar novos esquemas para lidar com novas situações.
Quando a acomodação prevalece sobre a assimilação, padrões comportamentais de outras pessoas passam a ser copiados ou reproduzidos. No caso extremo, passa a não existir um trabalho interior de associação da nova experiência a um esquema já existente. A cada nova experiência é gerado um novo esquema e, frequentemente, esquemas utilizados por outros, são copiados e reproduzidos. Ocorre um processo de descentralização ou de abertura.
Eu acrescentaria a observação de que estas duas tendências não necessariamente são excludentes. O sujeito pode se concentrar em esquemas pré-existentes e se recusar a conhecer tudo aquilo que entra em choque frontal com eles. Quando, no entanto, as circunstâncias o obrigam a lidar com uma nova situação, ele copia esquemas adotados por outras pessoas.
Equilibração significa a busca por um equilíbrio entre assimilação e acomodação. Segundo Piaget, somente com equilibração há cognição. Somente neste caso existe transformação da realidade, porque conhecimento é transformação.
O raciocínio desenvolvido nos parágrafos anteriores pode ser formulado de uma maneira mais geral e mais abstrata utilizando dialética e as categorias de sujeito e objeto. A interação do eu com o mundo se dá através da relação dialética entre assimilação e acomodação. A assimilação se dá quando um estímulo vindo do objeto é integrado em uma estrutura já existente no sujeito. Mas um objeto só pode ser percebido na medida em que existe uma estrutura capaz de percebê-lo. A acomodação significa a criação de uma nova estrutura ou a adaptação de uma estrutura já existente, de forma que a integração seja possível. Através da síntese dialética entre assimilação e acomodação resolve-se a cisão existente entre sujeito e objeto e gera-se conhecimento.
Não existe assimilação sem acomodação pois toda integração do estímulo à estrutura, ao mesmo tempo a modifica. Da mesma maneira não existe acomodação sem assimilação pois toda modificação ou adaptação de uma estrutura visa assimilar o estímulo. A acomodação é centrada no objeto enquanto que a assimilação é centrada no sujeito [2].
A equilibração, ou seja, a busca de um balanço entre assimilação e acomodação se dá em níveis cada vez mais elevados e as estruturas (ou esquemas) vão crescendo em complexidade, permitindo a incorporação cada vez maior de estímulos provenientes do mundo externo [3]. As estruturas do sujeito são acomodadas aos objetos, ao mesmo tempo que os objetos são assimilados às estruturas existentes no sujeito.
Vimos no capítulo anterior que conhecimento é movimento e este é resultado do embate de contrários. De um lado, temos a assimilação como um processo centrado no sujeito. Do outro lado, temos a acomodação como um processo centrado no objeto. Do embate destas duas tendências opostas temos, como síntese, o equilíbrio do qual resulta o conhecimento. O equilíbrio é provisório, pois logo surgem fatos novos tornando necessária nova busca de equilíbrio.
Piaget considera o ser humano como um sistema aberto. Ele deixa claro que o conhecimento é ativo, ou seja, só conhecemos aquilo com o qual interagimos, para o qual temos esquemas já desenvolvidos (assimilação) ou para o qual temos condição de desenvolver novos esquemas (acomodação). Piaget se baseia em uma visão biológica quando diz que o conhecimento é parecido com o sistema digestivo pois só colocamos para dentro aquilo que nos interessa e que temos condição de digerir.
À diferença de Piaget eu não consigo ver o problema da existência dissociado do conhecimento. Para mim, dissociar existência de conhecimento é metafísica, ou seja, é abandonar o domínio da realidade. Se o objeto existe é porque dele tive conhecimento, o que, de forma alguma, implica na necessidade de um contato físico ou sensorial com o objeto. A existência de uma galáxia distante, de uma anã branca ou de um buraco negro não chega a ser uma experiência sensorial, embora isto possa ser contestado, porque cálculos matemáticos e observações feitos através de aparelhos e instrumentação, podem ser equiparados a experiências sensoriais [4].
A percepção é uma construção. Esta é a razão porque a epistemologia genética de Piaget é classificada como construtivismo. Os olhos não são janelas por onde a realidade entra, mas, pelo contrário, a percepção da realidade é uma construção da qual os olhos fazem parte. A percepção que eu consigo ter de um certo objeto através da visão é totalmente diferente da percepção que uma jararaca consegue ter do mesmo objeto. Um exemplo mais realista é a percepção de um cego. Ele tem um conhecimento da realidade diferente de uma pessoa que consegue enxergar e este conhecimento do cego vai moldar a sua personalidade, os seus gostos e interesses. É conhecido o fato de só se ver aquilo que se quer ver, que interessa ver e que temos condição de ver. Este interesse e esta condição é fruto da nossa formação, das experiências que tivemos e do desenvolvimento dos nossos órgãos sensoriais. Se uso óculos de infravermelho eu tenho um conhecimento de uma floresta à noite, muito diferente do conhecimento da mesma floresta sem este recurso. Se esta experiência for repetida por um período prolongado, ela afetará a minha percepção da floresta, podendo inclusive afetar a forma de lidar com ela. A percepção da realidade é parte da nossa formação.
Para conhecer o objeto, há que interagir com ele, há que transformá-lo [5]. Conhecimento é ação. Ele depende do desenvolvimento do sujeito, da sua inteligência e é ela que conduz à objetividade. A objetividade não é uma propriedade restrita ao objeto, como consideram os empiristas, mas sim é o resultado de uma construção que envolve sujeito e objeto.
Em Piaget’s Theory, ele explica o desenvolvimento da criança, utilizando os conceitos de centralização e descentralização [6]. Durante os primeiros anos, a criança permanece centrada em si mesmo, no seu corpo e nas suas ações. O gradual equilíbrio entre assimilação e acomodação leva à descentralização, e a criança, progressivamente, aprende a conhecer outros pontos de vista e a interagir com outras pessoas, favorecendo a objetividade [7]. A componente social implica em uma visão coletiva do objeto, das coisas e dos acontecimentos. Reciprocidade e objetividade são sinônimos. Implicam em abandonar a visão egocêntrica da subjetividade [8].
Piaget, na pg. 120 do trabalho acima citado, narra a história de um esquimó que, perguntado porque sua tribo conservava determinados ritos, responde: conservamos os nossos velhos hábitos a fim de que o universo se mantenha. A dialética nos ensina que tudo se passa nos dois sentidos, causa torna-se efeito e vice-versa. O hábito não é tão somente uma adaptação ao meio em que vivemos, mas, é também, ele próprio, formador deste meio. O mundo é também constituído pelos nossos hábitos, e sem eles o mundo não seria do jeito que é.
Com respeito à centralização/descentralização é interessante comparar as diferentes perspectivas de Freud e Piaget em relação ao antropocentrismo. No final da palestra XVIII das Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Freud qualifica as mudanças históricas das posições antropocentristas, utilizando a palavra mágoa (Kränkung) [9]. O fato da terra não mais ocupar o centro do universo (Copérnico), o fato do ser humano não mais ocupar o centro da criação (Darwin) e o fato da psicanálise mostrar que o ser humano não mais é guiado pelo consciente, representariam mágoas que acometem a humanidade. Já Piaget mostra que, pelo contrário, estas são conquistas que representam crescimento. O centrismo, seja egocentrismo, etnocentrismo ou antropocentrismo representariam a infância e a imaturidade (veja pg. 122 da obra de Piaget citada acima).
Para Piaget, aprendizado e conhecimento são conceitos de significado semelhante. Trata-se da construção do mundo através da percepção. Esta percepção se aproxima do objeto, ou seja, o objeto é um limite. O aprendizado é uma adaptação do sujeito ao mundo que o cerca, mas é também uma adaptação do mundo ao sujeito, já que o mundo inclui o sujeito, a sua ação e percepção [10].
Na pg. 4 de Genetic Epistemology Piaget ressalta que conhecimento não pode ser baseado em raciocínio especulativo. Tem que se respaldar em fatos e em pesquisa psicológica [11]. Com esta afirmação Piaget ressalta a base empírica do conhecimento. O conhecimento, no entanto, não é tão somente resultado de estímulos externos como acreditam os positivistas. É necessário que estes estímulos sejam assimilados e acomodados pelo eu.
Epistemologia genética é soma de empirismo inglês com racionalismo Kantiano. Temos experimentação psicológica aliada à formalização. Nesta última, o ferramental lógico-matemático desempenha papel fundamental. De um lado temos o objeto, o mundo externo, a experiência. Do outro temos o esquema, a estrutura ao qual o objeto tem que ser assimilado. Piaget ainda junta Hegel a Kant quando ressalta a importância do movimento, da ação e da transformação da realidade.
Na pg. 6 ao falar da Epistemologia Genética Piaget faz uma bela síntese da sua teoria do conhecimento ao dizer que ali o leitor encontrará a exposição de uma epistemologia que é naturalista sem ser positivista, que coloca em evidência a atividade do sujeito sem ser idealista, que se apóia igualmente no objeto ao mesmo tempo que o considera um limite (portanto, existindo independentemente de nós, mas sem ser completamente alcançado) e que, sobretudo, vê no conhecimento uma construção contínua... [12] Aqui vale a pensa ressaltar que embora Piaget se apóie em Kant no que tange à formalização e à estruturação do conhecimento, dele se distancia no que tange ao idealismo. A rejeição do puramente especulativo, o respaldo na experimentação e a consideração de ação e interferência com a realidade, dão testemunho deste distanciamento.
[1] A parte inicial desta seção é baseada no trabalho de Kerstin Hecker, intitulado Jean Piagets Theorie der geistigen Entwicklung, acessado em outubro de 2018 em https://userpages.uni-koblenz.de.
[2] Veja também texto de autoria de Dennis Hohmann intitulado Jean Piaget – die kognitive Entwicklung in der genetischen Erkenntnistheorie, Escola Superior Vechta, 2006, consultado em janeiro e fevereiro de 2019 em www.dennishohmann.de.
[3] Aqui temos em Piaget implícita a idéia do todo uma vez que a incorporação cada vez maior de estímulos acaba resultando no todo, ou melhor, se aproximando dele.
[4] O que é um telescópio mais do que a extensão da nossa visão? Qual a diferença conceitual entre um telescópio e um simples óculos? Ambos se compõem de lentes. O computador nada mais é do que a extensão e o empoderamento do nosso cérebro. E o cérebro está ligado aos nossos sentidos. De uma maneira ampla podemos dizer que visão e tato participam dos cálculos de um computador, porque os cálculos nunca poderiam ser feitos sem que fossem vistos ou percebidos através dos sentidos. A construção de um pensamento se dá através da escrita, da fala ou da digitação. O cérebro pode pensar, mas este pensamento só consegue ser exteriorizado através dos sentidos. E qual seria o significado de um pensamento não exteriorizado? Mesmo em um caso hipotético futuro, em que eletrodos fossem instalados no nosso cérebro, podemos entendê-los como extensão dos nossos sentidos, da mesma forma que uma perna mecânica é uma extensão da perna normal.
[5] Aqui entra a dialética, apesar de Piaget não mencionar explicitamente este conceito.
[6] Veja J. Piaget, Piaget’s Theory, em Piaget and his school, Editores: B. Inhelder, H.H. Chipman, C. Zwingman, Springer Study Edition, 1976.
[7] A objetividade é uma tendência, um limite para o qual se tende à medida que o conhecimento aumenta.
[8] Veja Jean Piaget, Para onde vai a educação? Editora José Olympio, 20. Edição, 2011, pgs. 118 e seguintes.
[9] S. Freud, Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, Gustav Kiepenheuer Verlag, 1935.
[10] Veja entrevista de Jean-Cleaude Bringuier com J. Piaget em Jean Piaget – Ein Selbstportrait in Gesprächen, Weinheim, Beltz Verlag, 2004, pg. 169 citado em Hohmann pg. 8, obra já referenciada.
[11] Veja Jean Piaget, Genetic Epistemology, primeira de uma série de palestras dada na Columbia University e publicadas pela Columbia University Press, traduzidas por Eleanor Duckworth e consultado por mim em www.marxists.org em 08/2018.
[12] Jean Piaget, Epistemologia Genética, Editora WMF Martins Fontes Ltda. 4ª. Edição 2012.
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