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“Somos filhos da luta”
A torcida do Remo em diálogo com a história e a memória da Cabanagem
Francivaldo Alves Nunes

Resumo:
Em 22 de julho de 2020, o Clube do Remo, tradicional time de futebol do Pará, lança um novo uniforme alusivo a Revolta da Cabanagem, ocorrida na primeira metade do século XIX, na antiga Província do Grão-Pará. Neste ensaio procuramos refletir os interesses e efeitos que envolvem os usos do passado, considerando as questões associadas a história e memória.

O Clube do Remo, time tradicional do futebol paraense, fundado em 1905, divulgou na tarde do dia 22 de julho de 2020, o terceiro uniforme da temporada, que neste ano envolve os campeonatos estaduais, a Copa Verde e o Campeonato Brasileiro da série C. O novo manto é uma homenagem à Cabanagem, revolta popular e social ocorrida durante o Império entre os anos 1835 e 1840, na antiga província do Grão-Pará. De acordo com a diretoria do clube, em matéria publicada no Portal G1, de 22 de julho, a inspiração surge do “espírito de vitória, de inclusão e de luta contra os preconceitos contidos no movimento cabano” e que “ajudou na formação histórica e cultural do estado do Pará e do Clube do Remo”.

A camisa número 3, em alusão a Cabanagem, é da cor vermelha, que é referência à bandeira do Pará e ao sangue derramado pelo povo cabano durante o movimento histórico, contendo detalhes marajoaras, reforçando uma identidade paraense. Na manga há um detalhe em branco com os anos de início e o fim do movimento, junto com o escudo do clube, associando diretamente a marca ao tempo da revolução. A gola é dourada, exaltado o orgulho, brilho e valor da revolta cabana, sendo que na parte das costas, se observa o mapa do Brasil, em destaque o estado do Grão-Pará, e embaixo a frase “O espírito guerreiro do Clube do Remo”. Ressalta-se que a camisa carrega o selo de 115 anos do “Rei da Amazônia”, como é conhecido o clube, completados em fevereiro de 2020.

Em texto elaborado pela diretoria do Remo e que faz parte do vídeo de lançamento da camisa, disponibilizado nas redes sociais remistas, a relação entre a história de luta do clube e a história do Pará e do povo paraense se misturam e se confundem. Como expressa, “nossa história é feita de batalhas. Somos filhos da luta, nosso espírito é guerreiro, nossa alma é amazônida, nosso sangue é cabano. O que vestimos não é só um manto, é o nosso orgulho”.

Uma questão inicial e básica é se, de fato, os torcedores vão se reconhecer nesta associação entre um movimento histórico e a própria trajetória de vida e existência do clube. Como início de conversa, para além de um debate, se o que observamos é uma jogada de marketing, bem feita (diga se de passagem), ou nos permite construir outras reflexões. Informo que o segundo passo é mais promissor, principalmente se buscarmos analisar a forma como a Revolta da Cabanagem foi lida e os efeitos provocados no campo da história e da memória.

A primeira leitura interessante é que a Cabanagem é tratada como uma revolta popular e vitoriosa. Uma revolta do povo que não aceita os mandos e desmandos da elite e que busca se livrar da opressão e das mazelas sociais. Também não é uma revolta de protagonismo das lideranças instituídas pelo Estado, pelas forças das autoridades. A perspectiva é de que se tratou de um movimento de lideranças surgidas do povo, inconformados, mas atuantes. Isso é importante, pois, por muito tempo, muitas leituras sobre a Cabanagem apontavam o movimento como uma revolta de rebeldes desordeiros, indivíduos que queriam macular a ordem, destruir as autoridades e os "homens de bem" e de bens.

A Cabanagem, proposta pelo Clube do Remo, aponta para uma revolta popular e vitoriosa. Vitoriosa no sentido de ser algo em que os paraenses devem se orgulhar, uma memória a ser lembrada de forma a exaltar o movimento. Recupera um evento da história do Pará em que os paraenses devem se perceber como herdeiros da força, da luta e capacidade de resistência de uma população que bravamente resistiu e lutou pelos seus ideais de liberdade e de combate a opressão e a miséria.

Outra questão observada é que se trata de uma revolta que vem do interior, vem das populações das margens dos rios e igarapés, vem de estratos da sociedade paraense, vinculados a pequenos plantadores, pescadores, extratores, ou seja, uma população pobre. No entanto, embora se observe uma pobreza, do ponto de vista econômico e numa lógica capitalista, trata-se de um povo muito rico, quanto ao conhecimento e a sabedoria para lidar com a natureza da região, como o movimento das águas, as épocas de plantio, colheitas e as formas de aproveitamento dos recursos florestais, com bem destaca os estudos de Magda Ricci (2007). Estas são algumas das muitas habilidades que esta população carrega de conhecimento e que se procura ressaltar com o vídeo alusivo a campanha do clube, por uma camisa que expresse a força e inteligência do povo cabano.

Vincular a Cabanagem a torcida do Remo parece ser algo muito interesse e que tem uma dada legitimidade histórica. Trata-se da relação de um movimento popular com uma torcida de massa. É uma torcida que sempre foi vista e tem um histórico que reforça isso, basta vermos os trabalhos de pesquisa de Aline de Freitas (2017) e Itamar Gaudêncio (2016), por exemplo, defendidos no Programa de Pós-Graduação em História da UFPA. No caso, apontam uma trajetória do clube muito vinculada as periferias, a setores marginalizados, a bairros afastados do centro. Trata-se, pois de uma torcida associada a ambientes populares.

Diante das questões anteriores, acreditamos que a torcida vai se identificar muito com esta marca, pois a força do nome “Cabanagem” é bastante mobilizadora e de apelo popular. É uma perspectiva de termos uma torcida mais aguerrida, que defenda ainda mais o clube e que tenha orgulho de sua trajetória enquanto clube de futebol.

Do ponto de vista do debate para história, você tem um enunciado de coisas para discutir. Uma primeira questão é a associação de um evento do passado como algo necessário e fundamental para satisfazer uma demanda do tempo presente, ou seja, a leitura de um passado muito interessada, a luz e a perspectiva de um presente. Nesse caso, se observa, então, uma mobilidade e uma atualização do evento pretérito. Trata-se, portanto de um passado, muito presente, muito vivo, de interpretações, a partir dos interesses que o reconstrói.

Ao se fazer o movimento anterior, ou seja, pensar o movimento do passado como motivação para uma realidade presente, quando se estabelece isso, gera uma repercussão, no debate sobre os usos da história e o significado da própria história enquanto conhecimento. O que provoca uma repercussão entre os historiadores. Temos, pois, uma série de questões que se observa, que de imediato se associaria a anacronismo, a uso de termos que não era da época da Cabanagem. Nesse caso, uma primeira impressão é que os historiadores vão mostrar de imediato sua indignação. Os estudos de François Hartog (2017), em “Crer na História”, nos ajuda a melhor pensar este problema. No caso, associa estas questões que envolvem os usos do passado e suas consequências, a ideia de que “a história estranha a história”.

O que se observa, a partir das questões anteriores de Hartog (2017), de fato, é que esse estranhamento que a história tem, quando a sociedade se apropria de um evento do passado e se utiliza, considerando seus interesses, pode ser também um objeto de reflexão dos historiadores. Não se deve fazer um movimento de condenação ou absorvição, a partir de elementos anacrônicos, a questão é muito mais profunda e foco de análise dos profissionais da história. Em outras palavras, é um elemento estranho, mas que, por ser estranho, nos leva a construir uma série de reflexões sobre ele.

A história que estranha a história parece ser algo oportuno para se atentar, pois, a história é também isto, ou seja, é também a forma como as pessoas se apropriam da memória. A história não é apenas contar o passado, é também conhecer como as pessoas veem o passado, lidam com ele, constroem suas identidades, configuram seus valores, constroem seus instrumentos de luta e resistência.

A associação entre a torcida do Clube do Remo e a Revolta da Cabanagem parece ser um capítulo importante de usos de uma memória do passado a luz e expectativa do presente, mas que também envolve um elemento de valorização da história como conhecimento capaz de dar maior sentido e significado as organizações sociais contemporâneas.


Biografia:
Doutor em História na UFF, Professor e Historiador na UFPA. Atua nos cursos de graduação e pós-graduação, com experiência na área de história rural e ensino de história.
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