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Céu Cinzento
Martinho do Rio

Resumo:
Eu nunca a tinha visto. Chegou no comboio ao fim da tarde quase ao pôr do sol.

Martinho do Rio

Céu Cinzento

Eu nunca a tinha visto. Chegou no comboio ao fim da tarde quase ao pôr do sol. Fazia muito frio e eu estava a vigiar o desembarque. Ela saiu carregando consigo apenas uma mala e ficou parada a olhar como se sentisse perdida e sem saber muito bem o que fazer a seguir. Aproximei-me dela e indiquei-lhe o lugar para onde devia ir. Ela obedeceu sem replicar lançando-me um olhar onde li receio e algum medo. Eu nunca tinha visto ninguém igual a ela e no meio de toda aquela gente que desembarcava naquela tarde, ela destacava-se pelo seu porte e pela dignidade que punha em todos os seus gestos. Segui-a com o olhar quando ela se afastou lembrando-me que talvez a voltasse a ver, embora as probabilidades de isso acontecer fossem bastantes reduzidas. Nessa noite na caserna, deitado sobre o meu beliche, a recordação da sua chegada voltou-me de novo à memória e eu revi o seu olhar, o seu porte digno, a beleza do seu rosto e o seu andar de princesa. No dia seguinte soube que ela sobrevivera e que tinha sido destacada para o Canadá. Quase imediatamente pedi licença para ir para lá. Era uma atitude rara em mim, por que nunca me oferecera para nada. Mas daquela vez qualquer coisa muito forte me empurrou. Suponho que se dependesse só da minha estreita e tímida vontade, eu nunca teria tido a coragem suficiente para fazer semelhante pedido.
Vi-a logo mal entrei no recinto. Usava o mesmo vestido da véspera e os seus gestos eram suaves e delicados quando recolhia os despojos deixados ao acaso pelo chão. Ela não me viu. Como me poderia ver...para ela e para todos os outros iguais a ela nós não passávamos de meras sombras. Todo o dia até ao anoitecer ela trabalhou, eu observava-a e a cada minuto que passava, sentia crescer dentro de mim um novo sentimento que não permitia que ela se me tornasse indiferente. De volta á caserna procurei no meu cacifo a máquina fotográfica que o meu pai me dera no dia dos meus anos. Verifiquei se estava carregada e deixei-a pronta a fotografar junto à cama. No dia seguinte fotografei-a logo que a vi e foi a segunda vez que ela reparou em mim. Lançou-me um olhar de desafio como se pretendesse marcar a sua posição. Mas logo que percebeu o que eu queria nunca mais reparou em mim. Tenho a fotografia dela comigo e é a primeira coisa que vejo todas as manhãs e a última antes de me deitar.
Sonho com ela todas as noites e vejo-a a sorrir para mim. Numa dessas noites em que sonho era mais vivo aflorei-lhe os lábios num beijo delicado. Na noite seguinte afaguei-lhe o cabelo e as minhas mãos deslizaram sobre ele com prazer sentindo a sua macieza que era tão suave como a seda.
Passei a roubar um pedaço de pão branco da cozinha todas as manhãs que entrego a uma das guardas com a indicação de o entregar só a ela. Ás vezes fico a vigiá-la para ver se ela não o guarda para si. Já pensei em escrever-lhe, mas qualquer coisa impede-me de o fazer. Talvez a vergonha. A vergonha de pertencer ao exército das sombras enviado para a matar.
Chegou novo comboio e ela ficou muito agitada. Tentei saber porquê e uma das guardas contou-me que uma irmã viajava nele e que ela tinha muito medo que lhe fizessem mal. Corri para o local de desembarque e percebi, através da semelhança física, quem era a irmã. Falei com um dos guardas e consegui que ela fosse enviada para o Canadá. Quando as vi reunidas não pude deixar de me comover e o abraço que deram foi a maior recompensa que alguma vez recebi na vida.
Sinto que estou diferente e começo a sentir vergonha com o que se passa á minha volta. Já não obedeço ás ordens tão prontamente e ás vezes questiono-me sobre o que estamos a fazer aqui. Quando olho para o céu e o vejo tapado pelo fumo cinzento das inceneradoras, sinto horror naquilo que estamos a fazer. Talvez o novo sentimento que continua a crescer dentro de mim, me faça olhar para o mundo duma maneira diferente.
No outro dia ela sorriu-me. Foi quando passei por ela na minha ronda habitual. Retribui-lhe o sorriso e ela corou virando a cara. Fiquei tão exultante que me apeteceu dançar, logo ali, no meio dos despojos. Nessa noite encontrei a coragem suficiente para lhe escrever. Escrevi apenas quatro palavras, mas era o suficiente para ela compreender todo o amor que eu sentia por ela. Escrevi num pedaço de papel que lhe entreguei discretamente quando fazia a ronda. Ela guardou-o e agora ando ansioso por saber a sua resposta. Veio no dia seguinte quando fazia novamente a ronda. Guardei o seu bilhete junto ao coração e esperei com ansiedade pela noite para o ler. No recato do beliche conheci a sua resposta, dizia apenas “obrigado” numa caligrafia bonita de letra redonda, muito típica nas mulheres.
Senti uma grande desilusão. Mas depressa me recompus por que percebi que existe um enorme abismo a separar-nos, e o amor sempre teve dificuldade em crescer num lugar onde reina a morte. Só que o meu amor cresce de dia para dia e o meu sofrimento por não a poder ter entre os meus braços também. Agora, quando passo por ela na ronda, ela já não me vira a cara como antes; e ás vezes até sorri.
No outro dia apanhei um susto tremendo. Quiseram-na levar e á irmã- por engano julgo eu - até aos banhos da morte e eu tive grande dificuldade em conseguir salvá-las. Só o facto do Canadá ser tão importante para a economia do campo impediu que as levassem.
Conseguimos finalmente trocar algumas palavras, ela voltou a agradecer-me e eu tentei dizer-lhe quanto a amava. Quando ela pressentiu o que eu ia confessar-lhe, tapou a minha boca com a mão, abanou a cabeça e com a tristeza a queimar-lhe o olhar murmurou num tom amargurado ao meu ouvido: “impossível...impossível”.
Senti-me mais triste do que nunca. Não podia amá-la e ela não me podia amar. Naquele campo onde reinava a morte o amor morria logo à nascença. Recolhi á caserna e durante vários dias fui mais um morto com vida do que um soldado vivo. Que podia fazer ? Como poderia amá-la e ela amar-me a mim sem que os preconceitos e a morte nos separassem ?
Foi a fortuna que decidiu. E numa manhã em que o sol queimava a terra depois dum inverno rigoroso, encontrei o campo vazio. O cheiro da morte ainda se mantinha, mas o exército das sombras tinha-se retirado deixando-me para trás. Percebi mais tarde porquê. Ao amá-la deixei de fazer parte desse exército, e ao retirarem, já não puderam levar-me com eles.
Agora estou preso, mas vejo-a quase todos os dias. O seu sorriso ilumina-me as manhãs e o seu olhar cheio de promessas confessa finalmente aquilo que não conseguiu confessar no campo : que me ama.


Biografia:
Escritor com o primeiro livro já publicado
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