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Memorabilia
(Uma leitura de Quase memória, filme de Ruy Guerra)
Roberto Queiroz

Não é de hoje que digo em meus artigos que o tema memória me atrai particularmente. Talvez pelo fato de sempre ter acreditado ser a vida um acúmulo de experiências que merecem ser relembradas (para que não repitamos nossos erros mais atrozes). Por conta disso, desde a primeira vez em que vi o trailer do longa Quase memória, de Ruy Guerra, baseado no romance homônimo do escritor Carlos Heitor Cony, fiquei interessado em assistí-lo. Mas infelizmente ele não faz parte da pauta de interesses da parte do público cinéfilo nacional que assiste a sua própria produção. Uma pena.

Resultado: o jeito foi esperar que o filme chegasse à tv a cabo ou aos serviços de streaming. Pois eis que o dia chega e não é que me deparo com o primeiro filme que me fez pensar nesse início de 2019?

Quase memória conta a história de Carlos (Charles Fucks, que ficou famoso por aqui nos teatros cariocas com a montagem de O filho eterno, baseado no romance do escritor Cristóvão Tezza) que após receber um pacote em sua casa cujo remetente é o próprio pai, morto há anos, se depara com sua versão mais velha (vivida pelo ator Tony Ramos) e começa a relembrar dos tempos em que o pai pautou acontecimentos referentes à sua vida e à sua cidade natal. O resultado disso é uma catarse existencial repleta de dores e emoções fortes.

Ruy Guerra, que possui uma das carreiras mais ecléticas dentre os representantes do chamado Cinema Novo, aqui flerta com uma série de formatos, gêneros e sensações, fazendo desse - pelo menos, eu acredito - seu filme mais autoral. Da ópera que toca nos gramofones da casa de Carlos à sensação de estarmos dentro de uma fábula pós-moderna, com todas as luzes, névoas e escuridões que o gênero merece, é possível ver claramente o quanto de delírio e incompreensão que habita a mente do protagonista.

Seguindo aquela máxima do velho ditado popular "quem conta um conto, aumenta um ponto", Carlos luta entre suas lembranças fragmentadas (houve um momento em que cheguei a pensar que a versão mais velha do personagem, a vivida por Tony Ramos, sofria de Alzheimer) e o relato de amigos e parentes que contam façanhas da qual ambas as versões dele não conseguem se lembrar. Ou seja: quem está contando a verdade, no final das contas? E quem está tentando recontar a história à sua imagem e semelhança? E nesse momento o filme antevê um pouco dessa sociedade em que estamos vivendo, onde mentiras vêm sendo transformadas em verdades de acordo com o interesse escuso de certas elites ou minorias.

Quando carlos velho reencontra-se com sua memória vemos diante de nós o despertar da realidade, por vezes difícil de descrever em palavras por conta do discurso apressado e assustado de um homem que se viu aprisionado dentro de si mesmo por tantos anos. Descobrir seu pai, Ernesto (João Miguel, fantástico!), um figura peculiar de seu tempo, anarquista, jornalista de O Paiz, criador de galinhas, que bateu de frente com o governo de Getúlio Vargas e o período militar, foi o mesmo que abrir uma porta para seu próprio subconsciente e perceber que as cicatrizes da vida que o tornaram um homem amargo e incrédulo não era indeléveis, apenas sequelas de seu distanciamento com o resto do mundo.

O trabalho da direção de fotografia e da direção de arte são inebriantes e me fizeram lembrar de momentos da minha própria infância, quando via os trens passando pelos bairros da Leopoldina, e pegava junto com colegas lascas de madeira junto aos trilhos enferrujados da linha de trem para fazermos fogueira e assarmos batata doce na rua onde morávamos. Pena que a atriz escolhida para viver a jovem Maria, mãe de Carlos, Mariana Ximenes, não tenha se envolvido no projeto tanto quanto eu gostaria. Talvez uma Hermila Guedes caísse melhor aqui. Contudo, nem mesmo a opacidade de sua atuação foi o suficiente para diminuir o meu interesse no projeto.

Quase memória é um projeto de 2016 que levou dois anos para chegar às salas de cinema e quando chegou ficou relegado a um número pífio de salas, mais voltadas a um público elitista, mais conservador. Em outras palavras: nasceu fadado ao fracasso comercial, por conta de uma política audiovisual caduca que entope o grande público de comédias babacas e favela movies desnecessários, pois é indispensável manter a plateia alienada.

Repito o que disse no primeiro parágrafo (agora com mais ênfase): uma pena.

O público espectador do cinema nacional - que existe, a despeito do que pensam certos críticos e exibidores - deixou de ver um grande ensaio sobre a memorabilia, sentimento que anda em falta no Brasil dos últimos anos, mais afeito a uma postura imediatista e covarde. E mais: perdeu a chance, mais uma vez (já deixou de ser novidade isso há tempos por aqui!), de fugir de clichês e estereótipos óbvios que andam transformando nossa sétima arte numa panelinha de oportunistas e aproveitadores de última categoria de nossas leis de incentivo. E é preciso repensar essa postura imediatamente.

Por quê?, perguntarão os fãs de Leandro Hassum, Paulo Gustavo e Ingrid Guimarães, entre outros "expoentes" do nosso cinema. Resposta: porque chega uma hora que até idiotice cansa. E usar uma ferramenta pública para aprovar certos projetos... Melhor nem comentar.


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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