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J'acuse...
(O Julgamento de Sócrates: uma viagem no tempo rumo a lugar nenhum)
Roberto Queiroz

"Somos mais salafrários e cínicos do que sonha nossa vã filosofia", diz o espectador sacana que habita dentro de mim ao final do espetáculo teatral O julgamento de Sócrates. Misto de risos e lágrimas, meu rosto sai refestelado diante da exuberância - e da atualidade vivaz - de um texto que mais parece um túnel do tempo, pois busca em lembranças do passado fragmentos para entendermos esse hoje tão caótico, tão ilusório, tão cheio de melindres.

Tônico pereira (voz e corpo por trás de Sócrates, mais importante filósofo e pensador de nossa história) adentra o palco quase vazio, apenas uma cadeira, uma espécie de tronco simulando uma mesa, com uma taça em cima, a luz vindo de cima (e prestem atenção na luz: em alguns momentos da peça ela também, por si só, parece falar), vestes brancas, sandálias franciscanas (clara apologia à Jesus Cristo, que também será referência aqui).

Chega citando amigos e mentores do passado, que ele chama de seus Sócrates, que o ajudaram e muito na sua formação profissional e pessoal. Aqui, ele ainda é o ator/indivíduo Tonico Pereira, falando de sua cidade natal, Campos, de sua vida, do que ele representa para esta sociedade, seja como criador artístico, seja como homem falho.

Ele então se senta e o filósofo grego toma o seu lugar de réu. Está sendo julgado por aqueles que nunca viram nele mais do que um criminoso. Acusam-no de não acreditar em Deus muito menos em leis. Mais: acusam-no de enriquecer ilicitamente com o ensino de seu conhecimento. Em outras palavras: acusam-no de não ser tendencioso como os demais, de não ser partidário de um sistema capitalista, de um mercado opressivo que a tudo e todos rotula.

No fundo, no fundo, Sócrates sabe que sua batalha perdida. Toda aquela "encenação" é apenas mais uma razão sofisticada para que eles, os poderosos, estadistas, governantes, o descartem do convívio com as massas. Mesmo assim, ele desfia seu rosário de sabedoria, tenta explicar ao público a grande dificuldade de encontrar homens sábios no mundo, seja no meio político, artístico ou técnico. Em vão, ele perambula de pólis em pólis à procura de alguém que o suplante em conhecimento. Assim como Jesus Cristo, ganhou ares de profeta, de único, de imortal. Na visão dele, pura balela, exagero.

À medida que defende seus ideais, o ator/personagem instiga a platéia, cita figuras do presente, canta, gesticula, confronta espectadores, pede ajuda, implora por sua inocência. E mesmo assim, termina vencido por aqueles que simplesmente não admitem a liberdade de expressão, que adoram tolher àqueles que divergem de suas opiniões de meramente pensar.

O discurso de Sócrates é tão inebriante, tão preciso, que não sinto o tempo passar, e quando me dou conta já se passaram os 60 minutos do monólogo. Pena! Eu poderia ficar ali, ouvindo, a noite inteira, madrugada adentro, até o dia, a tarde seguinte... Após a condenação, o filósofo pega a taça e bebe sua cicuta, aceitando seu destino. Jamais aceitaria abrir mão de sua ideologia. O cenário escurece e quando acende de novo vejo pessoas às lágrimas. O momento que o país vive dialoga perfeitamente com a peça e percebe-se que muitos cidadãos (que ele, Sócrates, chamou de "Cidadãos da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro" durante toda a sua defesa) estão exaustos, desesperançados, não aguentam mais, não sabem o que esperar do futuro.

Pego a expressão J'acuse, do escritor Emile Zola como título deste artigo, pois acredito que a intenção primeira do espetáculo é denunciar este mundo de acusações e delações em que estamos vivendo.

Muito se denuncia nesse Brasil dos últimos anos, mas não se chega evidentemente a lugar nenhum. Continuamos presos, amordaçados, lobotomizados à uma cultura repetitiva e secular de culpar o outro, acusar o outro, expor o outro ao ridículo, para que o holofote não caia sobre nossos ombros. Denunciar virou mecanismo de defesa dos covardes, cujo único objetivo é o de sair pela porta dos fundos.

O julgamento de Sócrates é, certamente, uma das experiências mais gratificantes (e verdadeiras) que tive neste 2018 perdido na estrada. Que o próximo ano aprenda com a bandeira levantada aqui que não podemos mais viver de morais passadas e eternos conchavos e interesses. Enquanto não nos desfizermos da estrutura que nos empacou aqui, nada mudará.

Grande Sócrates! Grande Tonico! Grande teatro!


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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