O direito de ação é o direito de provocar a jurisdição estatal para a tutela de um direito, implicando o ingresso em juízo em razão de uma demanda. O processo penal guarda especificidades que impedem a leitura de seus institutos unicamente com base no processo civil, e diz respeito ao exercício de direitos, poderes e faculdades ao longo do processo com a finalidade de obter uma tutela jurisdicional por meio de uma decisão sobre o mérito.
O poder de punir (jus puniendi) pertence exclusivamente ao Estado, de forma que havendo uma suspeita de infração de uma norma penal, tem-se a pretensão punitiva do Estado, cuja satisfação depende da condenação do infrator em um processo penal válido (nula poena sine iudicio), e de que algum sujeito provoque a jurisdição estatal.
O direito de ação penal (jus persequendi), por sua vez, é atribuído a certos sujeitos - MP, ofendido. O Ministério Público foi criado para que o Estado não reunisse a prerrogativa acusatória, vez que ele já tem a atribuição de julgar, na seguinte relação triangular: MP - Poder Judiciário - réu.
1. Teorias da ação
• Teoria imanentista (direito romano, Savigny) - inicialmente compreendia-se não haver distinção entre o direito material e o direito de ação, sendo o direito de ação uma decorrência do direito material. A crítica a essa teoria era no sentido de que se o pedido era improcedente, existiria um processo sem ação = direito.
• Teoria autonomista concreta (Wach, Chiovenda) - o direito de ação se torna autônomo do direito material, mas a crítica perdura.
• Teoria concreta abstrata (Degenkolb, Plósz) - afirma haver uma completa separação entre o direito de ação e o direito material, sendo a ação um direito contra o Estado para a resolução do mérito. Crítica: pode haver direito de ação mesmo em situação em que é evidente não haver direito material.
• Teoria abstrata ou abstrato-concreta (Liebman) - o direito de ação existe mesmo se a sentença for de improcedência. Há um elemento de concretude: deve haver a demonstração mínima de que há uma relação de pertinência entre o direito de ação e o direito material, sendo que a concretude se dá por meio do controle sobre as condições da ação, entendendo-se que o direito de ação contém um vínculo mínimo com a pretensão material.
2. Condições da ação
Há controvérsias doutrinárias, mas o processo penal reúne as mesmas condições da ação processual civil, acrescidas de uma condição a mais: a justa causa. Para a doutrina majoritária, que é inspirada no processo civil, são condições da ação a possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir, a legitimidade das partes e a justa causa. A doutrina minoritária, que buscou uma conceituação própria do processo penal, as condições da ação são as seguintes: fato aparentemente criminoso, punibilidade concreta, legitimidade das partes e justa causa (nova nomenclatura). Oferecida a denúncia pelo Ministério Público, o Judiciário decide se a receberá ou não, e assim profere uma decisão que analisa as 4 condições da ação, consideradas condições gerais:
• Possibilidade jurídica do pedido: é entendida como tipicidade aparente do fato (aparência de crime), sendo que para a acusação ser recebida, o fato descrito deve “parecer” típico. Parcela da doutrina entende também que o pedido do MP deve ser possível.
• Interesse de agir: no processo civil, tal condição consistia em necessidade + adequação. A necessidade é pressuposto também no processo penal, visto que o jus puniendi somente pode ocorrer mediante processo (exceção: acordos). Quanto à adequação, não há utilidade quando a punibilidade estiver extinta - ex: prescrição e decadência.
• Legitimidade da parte (ad causam): a legitimidade divide-se em legitimidade ativa (MP, ofendido), pertencendo o ius puniendi sempre ao Estado, e exercendo o MP legitimação extraordinária, embora subsistam divergências doutrinárias, e em legitimidade passiva, que se relaciona ao sujeito a quem se imputa o fato.
• Justa causa: exige-se um lastro probatório mínimo para se iniciar o processo para evitar a atuação temerária do Estado e ter certeza quanto à materialidade/existência do fato - cognição sumária. A justa causa consiste em um juízo de probabilidade inicial, probabilidade de autoria, e é um elemento que não existe no processo civil, de modo que se discute se é uma condição ou um requisito autônomo.
Há também as condições de procedibilidade, que são específicas e por vezes exigidas em relação a certos crimes. Exemplos: requisição do Ministério da Justiça para crimes contra a honra do presidente, exigência de corpo de delito para o recebimento da denúncia em crimes contra a propriedade imaterial, autorização do Legislativo para processar chefe do Executivo em crimes de responsabilidade.
3. Rejeição da denúncia/queixa por carência da ação
O art. 395 do CPP lista as hipóteses de rejeição da denúncia/queixa, que pode ocorrer quando o fato não for aparentemente típico, se extinta a punibilidade, inimputabilidade/ilegitimidade, insuficiência de autoria/materialidade. No processo civil, a carência da ação extingue o processo sem resolução do mérito por meio de uma sentença terminativa, fazendo coisa julgada formal e podendo-se ingressar com nova ação se corrigido o vício. A rejeição da denúncia não faz coisa julgada material se não resolver o mérito, que consiste na existência de um fato e autoria (cognição exauriente), constituir o fato ação típica, ilícita e culpável e não estar extinta a punibilidade. Assim, se a denúncia for rejeitada por ilegitimidade ou falta de justa causa, faz-se coisa julgada formal sem resolução do mérito, se rejeitada por atipicidade ou extinção da punibilidade, faz-se coisa julgada material com resolução do mérito, observando-se deste modo a relação entre as condições da ação e a resolução do mérito.
4. Classificação quanto ao legitimado ativo (titular da ação)
Há uma ponderação pelo legislador entre a importância do bem jurídico à comunidade e a valorização do interesse do ofendido, classificando-se nesse sentido as ações penais em pública (incondicionada ou condicionada à representação) e privada podendo ser exclusiva e originariamente privada; subsidiária da ação penal pública, quando a ação é originalmente pública mas o MP não oferece denúncia; ou privada personalíssima, na qual não pode haver representação e sucessão processual. Para identificar qual o tipo de ação (se pública, privada e suas especificidades), tem-se que a ação penal é pública incondicionada como regra, se não houver uma previsão expressa de que é pública condicionada ou privada (arts. 24 e 100 CPP).
4.1 Princípios da ação penal pública
• Oficialidade: apenas um órgão público pode ingressar com a ação.
• Obrigatoriedade/legalidade processual: havendo justa causa, o MP deve acusar/oferecer denúncia, não há margem para juízo de conveniência/oportunidade, embora tal ideia seja atualmente relativizada devido aos acordos processuais (ANPP, transação penal).
• Indisponibilidade: proposta a ação penal, o MP não pode desistir dela (art. 42) ou de recurso (art. 576). Polêmica sobre o art. 385 do CPP - se o MP pode pedir a absolvição do réu e se o juiz é obrigado a absolver, sendo a denúncia o ato processual pelo qual o MP exerce o direito de ação penal pública, é uma petição submetida ao Judiciário para iniciar o processo.
4.2 Ação penal pública incondicionada
Prepondera o interesse da coletividade na persecução, o MP pode ingressar com a ação independentemente da manifestação do ofendido.
4.3 Ação penal pública condicionada à representação
• O interesse da vítima supera o da coletividade (fundamento axiológico), e tratam-se de delitos em que a falta de cooperação da vítima torna impossível a comprovação (fundamento pragmático). A representação nesses casos é uma condição de procedibilidade (específica) - art. 39 CPP, sendo que para a instauração de inquérito também é necessária a representação. Normalmente a representação se dá de forma pessoal e oral diante da autoridade policial, gerando um documento escrito ou durante as declarações prestadas pela vítima.
• É possível retratar-se da representação (desistir) até o oferecimento da denúncia, depois não é mais possível (art. 25 CPP e art. 102 CP). Há divergências doutrinárias quanto à possibilidade de retratação da retratação, mas a retratação tem caráter indivisível, não podendo ser parcial (em relação a alguns fatos ou autores). São legitimados para oferecer representação o ofendido ou seu representante legal (art. 24 CPP), se menor de 18 anos ou mentalmente enfermo (+ art. 33 CPP). No caso de sucessão por morte: art. 24, § 1º CPP - analogia ao art. 36. Outra divergência doutrinária é no sentido de saber se o companheiro (união estável) pode suceder (princípio da legalidade) e se seria uma norma de conteúdo puro ou misto.
• Decadência do direito de representação: 6 meses. É a perda do direito de oferecer representação em razão do transcurso do tempo, e acarreta a extinção da punibilidade (art. 107 CP e art. 38 CPP). A forma de contagem do prazo segue a regra dos prazos no direito material (art. 10 CP). No caso de menor de idade, o prazo decadencial corre separadamente para os dois titulares (o representante legal tem 6 meses e o ofendido tem 6 meses após completar 18 anos). O dia em que tomou conhecimento é contado como o primeiro dia do decurso do prazo, de modo que inclui-se no cômputo o dia de início, podendo o prazo ter fim em um dia de final de semana, diferentemente dos prazos processuais, em que intimado em certa data, o prazo começa a correr no dia seguinte, e se a data final cai por exemplo em um domingo, o prazo se prorroga até o próximo dia útil. Não se aplica a ideia de que na contagem não se computam dias não úteis - o prazo é em dias corridos.
4.4 Ação penal pública condicionada à requisição do Ministério da Justiça
Tal requisição também é considerada condição de procedibilidade, e esse tipo de ação penal é mais rara, de modo que o MP apenas pode ingressar com a ação se houver requisição do ministro da justiça, que consiste em um ato administrativo discricionário (juízo de conveniência/oportunidade) e não vincula o Ministério Público, podendo este não oferecer a denúncia se entender que não há justa causa, e não se sujeita ao prazo decadencial, mas há controvérsias sobre o cabimento de retratação.
4.5 Princípios da ação penal privada
• Oportunidade: havendo justa causa, o ofendido tem a faculdade de iniciar ou não a ação penal, e pode renunciar ao direito de queixa, não estando obrigado a oferecê-la (juízo de conveniência/oportunidade). Esse tipo de ação penal tem por fundamento a ideia de que os interesses da vítima se sobrepõem aos interesses coletivos, afetando a vítima de forma muito particular (ex: crimes contra a honra e contra a propriedade) e podendo a vítima ser clemente ou não ter interesse caso entenda que as consequências de um processo serão mais gravosas que o crime em si. O jus puniendi, no entanto, continua sendo prerrogativa do Estado, vez que apenas se transfere a legitimidade ao ofendido.
• Disponibilidade: o indivíduo pode dispor do jus persequendi (perdão do ofendido, perempção), com efeitos vinculantes sobre o jus puniendi - extinção da punibilidade
• Indivisibilidade: se optou por ingressar com a ação, deve ser oferecida queixa contra todos os envolvidos no crime, não se podendo acusar apenas alguns (arts; 48, 49 e 51 do CPP).
4.6 Ação penal exclusivamente privada
A ação penal é originariamente privada e somente pode ser oferecida pelo ofendido ou seu representante. É quando consta na lei “somente se procede mediante queixa” e em nenhuma hipótese será oferecida pelo MP. Ex: crimes de fraude ao credor, de dano ou contra a honra.
4.7 Ação penal privada personalíssima
É mais rara, há pouca recorrência prática, nesse tipo de ação não pode haver representação legal nem sucessão processual, e diz respeito apenas ao art. 236 do CP - induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (casamento)
4.8 Ação penal privada subsidiária da pública
A ação penal é originalmente pública (condicionada ou incondicionada), mas o MP não denuncia no prazo legal. Está prevista no art. 29 do CPP, e trata de uma atuação subsidiária do ofendido ante a inércia do Ministério Público, que é o titular da ação. O prazo legal para oferecimento da denúncia está disposto no art. 46 do CPP , e é de 5 dias no caso de réu preso e 15 dias no caso de réu solto. Tal prazo é contado do recebimento dos autos do inquérito e no caso de dispensa deste, do recolhimento das peças de informação ou de representação - § 1º. No caso de queixa subsidiária, o prazo para o aditamento pelo MP é de 3 dias, mas vale lembrar que o MP não perde o direito de titular caso descumpra o prazo, vez que tal prazo se refere ao ingresso da vítima na ação.
5. Queixa
Queixa é o ato pelo qual a vítima/requerente exerce o direito de ação penal privada. É uma petição que contém a delimitação dos fatos, os fundamentos jurídicos e o pedido. Tem forma escrita e é direcionada ao juiz, exceto em infrações de menor potencial ofensivo, nos quais a queixa pode ser oral - art. 77, § 3º, L. 9.099/95. São legitimados para o oferecimento da queixa o ofendido e o representante legal (art. 30 CPP). Sendo maior de 18 anos, é legitimado para oferecer queixa de forma pessoal ou por procurador munido de procuração sobre os poderes específicos. Tem-se ainda a figura do curador especial (art. 33). E quanto à sucessão por morte, prevista no art. 31, há divergências doutrinárias sobre a possibilidade de sucessão pelo companheiro (união estável)
6 Extinção da punibilidade na ação penal exclusivamente privada (art. 107, CP)
• Decadência do direito de queixa: transcurso de tempo de 6 meses (art. 38 CPP). A decadência ocorre em momento anterior ao oferecimento da queixa , é uma hipótese de extinção da punibilidade. A queixa separa a investigação do processo judicial, e a forma de contagem do prazo segue as regras da contagem no direito material (art. 10 CP). Quando menor de 18 anos - súmula 594 STF (prazos correm separadamente).
• Renúncia ao direito de queixa: é ato unilateral, o titular abdica do direito de queixa, e também ocorre em momento anterior ao oferecimento da queixa. A renúncia pode ser expressa (art. 50 CPP) ou tácita (art. 104 CP). A renúncia obedece ao princípio da indivisibilidade, previsto no art. 49. No caso de menor de 18 anos, se houver mais de um representante, haverá legitimidade concorrente e todos devem renunciar, caso contrário, poderá ser oferecida a queixa.
• Perdão do ofendido: é a clemência/indulgência oferecida pelo ofendido ao réu. É um ato bilateral, vez que pressupõe a aceitação do réu, e também é hipótese extintiva da punibilidade. Contudo, diferencia-se de absolvição, o réu tem a prerrogativa de rejeitar pois tem o direito de perseguir a sua declaração de inocência. O perdão ocorre após o oferecimento da queixa, ou seja, durante o processo (art. 105 CP) até o trânsito em julgado da condenação. Suas caracteristicas estão descritas no art. 106 do CP: expresso ou tácito, segue a regra da indivisibilidade, é ato individual do ofendido e bilateral.
• Perempção: é a extinção do direito de ação como sanção processual pela inércia (desinteresse ou negligência) do querelante ao longo do processo. Também ocorre após o oferecimento da queixa, durante o processo, até o trânsito em julgado. Por ser uma sanção, o querelante arcará com os custos, e é uma das hipóteses de extinção da punibilidade prevista no art. 60 do CPP. Sobre a possibilidade de o querelado requerer a resolução do mérito, a jurisprudência dominante entende que não, mas há parcela doutrinária que afirma ter o querelado o direito de declaração expressa de sua inocência.
Questiona-se se essas hipóteses de extinção da punibilidade também se aplicam à ação penal privada subsidiária da pública. E entende-se que a decadência e a renúncia se aplicam, embora não extingam a punibilidade, apenas o direito de ação do ofendido, podendo o MP ingressar com a ação, já que originalmente pública. Mas o perdão do ofendido e a perempção não se aplicam, a ação é indisponível e o MP pode retomar a titularidade a qualquer tempo.
7. Requisitos da denúncia/queixa
A denúncia ou a queixa tem por requisitos obrigatórios a exposição do fato criminoso em todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, e a classificação do crime. E por elemento facultativo tem-se o rol de testemunhas, que não acarreta inépcia, apenas a preclusão do direito de indicar fontes de prova testemunhal acusatória, mas se ao longo do processo se descobre uma testemunha, ela pode ser ouvida se antes desconhecida, e tem por elementos não escritos: data, assinatura e língua portuguesa.
Ocorre a inépcia da denúncia quando faltar um dos seguintes elementos obrigatórios, o que acarreta sua rejeição, nos termos do art. 395 do CPP:
• Exposição do fato criminoso: deve ser detalhada, não basta apenas repetir os termos da lei, é necessário narrar o fato concreto (local, data, pessoas, causas, efeitos, motivações). O STJ entende que em crimes societários não é inepta a denúncia geral, mas a denúncia genérica sim. Ainda que a denúncia geral não detalhe tão minuciosamente, há ligação, mesmo que sutil, entre a conduta e o fato delitivo, ao passo que a denúncia genérica traz a imputação de vários fatos típicos genericamente, sem delimitar/identificar os denunciados. No entanto, parte doutrinária considera inepta mesmo a denúncia geral (Badaró). Outro ponto de divergências é acerca da denúncia alternativa, em que o MP sem ter certeza do crime cometido, denuncia de forma alternativa para que com base na instrução, o acusado seja condenado apenas por um dos delitos. Há controvérsias doutrinárias, mas a denúncia alternativa não é admitida pela jurisprudência.
• Qualificação do acusado: devem ser preenchidas informações como nome, sobrenome, CPF, RG. Se não forem conhecidas tais informações, devem ser descritas outras características que permitam sua identificação - art. 259. Na ação privada, o querelante precisa ser identificado, mas na ação penal pública, o membro do MP não precisa.
• Classificação do crime: devem ser indicadas as elementares e circunstâncias do tipo penal. Norma penal em branco (exige complemento administrativo)- prevalece a ideia de que a denúncia deve indicar a norma integradora/complementar.
8. Emendatio libelli no recebimento da acusação?
A emendatio libelli consiste na alteração da classificação de um crime pelo juiz, de modo que o MP acusa um indivíduo pela prática de determinado crime, mas o juiz entende que na verdade se trata de outro crime. Entende-se majoritariamente que o juiz não pode alterar a classificação na denúncia, mas apenas na sentença, assim o juiz não poderia rejeitar a acusação por errônea classificação do crime. Crítica: a classificação do crime tem repercussões importantes no decurso do processo.
9. Aditamento da denúncia
É a modificação da denúncia após seu oferecimento, ampliando o objeto da acusação.
• Própria real (objetiva): inclusão de novos fatos que constituem/agravam o crime
• Própria pessoal (subjetiva): inclusão de novos autores/partícipes
• Imprópria: não há acréscimo de pessoas ou fatos, mas uma retificação dos fatos iniciais.
No aditamento próprio, o MP pode optar entre aditar a denúncia ou oferecer nova correção de omissões não essenciais da denúncia/queixa, que poderão ser supridas a qualquer tempo, desde que antes da sentença (art. 569 CPP).
10. Ação civil ex delicto (arts. 63 a 68 do CPP)
Trata-se dos efeitos civis da prática de um delito penal, coexistindo duas pretensões: a punitiva + reparação do dano (função compensatória, reparatória). A reparação do dano em sentido amplo significa a restituição da coisa e o ressarcimento dos danos materiais (danos emergentes e lucros cessantes), reparação do dano moral, indenização pelo ato ilícito praticado pelo Estado. A busca pelos efeitos civis pode se dar mediante execução civil de uma sentença penal condenatória ou por meio de uma ação civil paralela à sentença penal.
A sentença penal condenatória transitada em julgado é um título executivo judicial executável no âmbito do processo civil (cumprimento de sentença - arts. 515 CPC e art. 63 CPP). É efeito civil da condenação criminal definitiva tornar certa e líquida a obrigação de indenizar, e pode ser que no processo penal seja possível estabelecer apenas o dano emergente, mas não os lucros cessantes.
A indenização fixada na sentença é executável civilmente (cumprimento de sentença). Se a vítima estiver insatisfeita com o valor fixado, é possível um pedido de liquidação do valor do dano - aquisição do valor devido a título de indenização. Conforme posição dominante, e corroborada pelo STJ, deve haver no processo pedido expresso e indicação do valor pela vítima ou pelo MP para que haja condenação à reparação do dano.
A possibilidade de uma ação civil para a fixação da indenização ex delicto por uma ação de conhecimento, está prevista no art. 64 do CPP, possibilitando à vítima o ingresso direto no juízo civil ao invés de esperar a condenação criminal.
Há ainda efeitos civis de outas modalidades de sentenças penais:
• Sentença absolutória imprópria - reconhece inimputabilidade por doença mental, não gera dever de reparar o dano
• Sentença homologatória de transação penal - “não terá efeitos civis”, devendo haver discussão no juízo cível (art. 76, L. 9.099/95)
• Sentença homologatória de ANPP - quanto à reparação do dano tem natureza de título executivo judicial (acordo extrajudicial homologado judicialmente - art. 515 CPC)
Outras repercussões:
• Responsabilidade civil de terceiro - inadmitida, a execução apenas pode ser realizada contra o devedor reconhecido no título executivo, o terceiro não partícipe do processo penal não tem direito a contrário
• Responsabilidade civil solidária em caso de concurso de pessoas - não se aplica, no processo penal vale a individualização da culpa e da pena, nos termos do art. 29, CP.
Sobre os efeitos civis da sentença penal absolutória, em regra aplica-se a independência das jurisdições civil e penal (arts. 935 CC e art. 66 CPP), e não faz coisa julgada na seara cível, de modo que há questões que podem ser discutidas em âmbito cível. Além disso, não impede a propositura de ação civil para reparação do dano, e a decisão de arquivamento da investigação preliminar (art. 67, I, CPP) igualmente não impede.
São hipóteses de aplicação do in dubio pro reo:
• Não haver prova
• Atipicidade da conduta
• Não constituição de infração
• Exclusão da culpabilidade - extinção da punibilidade
• Faz coisa julgada no cível - há questões que não podem ser rediscutidas no âmbito civil (sentença penal sobre a inexistência do fato/autoria (positiva ou negativa)
11. Acordo de não persecução penal (ANPP) - justiça penal negociada
O direito penal tem se tornado a partir de 1970 mais negociável, e no Brasil, a partir de 1990, após o advento da CF/88, que incentivou a expansão dos acordos/consensos.
• Justiça penal tradicional (impositiva) - conflito entre as partes, garantias rígidas ao acusado, imposição unilateral do direito penal. Justificativa: preservação dos bens jurídicos (indisponibilidade do objeto processual) + sanção especialmente grave (Garantias rígidas)
• Justiça penal negociada - possibilidade de um negócio jurídico processual entre as partes, benefício punitivo ao réu em troca da renúncia ao exercício integral dos direitos processuais, o acordo altera as consequências jurídicas aplicáveis. Justificativa: maior efetividade e eficiência ao sistema penal (redução das fases processuais ou colaboração do imputado) e relativização das garantias processuais em troca de sanções mais lenientes. Confessado o crime, suprime-se a produção de provas.
• Justiça negociada no mundo - plea bargaining (EUA) - início do sec. XX - negociações amplas. desde a década de 1970 a justiça negociada foi adotada por vários países de civil law. No Brasil a confissão por si só não suprime a produção de provas. Diferentemente dos Estados Unidos, em que alegada inocência, o caso vai a Júri. No Brasil o Ministério Público oferece uma redução de pena pela confissão, é uma opção coercitiva.
• Incorporação ao Brasil - art. 98 CF, L. 9.099/95 (juizados especiais - composição dos danos civis, transação penal e suspensão condicional do processo), L. 12.850/2013 (orcrim), operação lava-jato (colaboração premiada) - 2014. A L. 13.964 (Pacote Anticrime) estabeleceu as bases do ANPP. E o projeto de CPP foi pensado conforme procedimento sumário - plea bargaining
• Características gerais - art. 28-A do CPP, inserido pela Lei Anticrime (9.964/2019). Ao invés de denunciar, o Ministério Público oferece acordo - transpõe o processo. É uma alternativa ao processo penal. O acordo impede o início do processo porque não há denúncia pelo MP. Não resulta em condenação criminal e não pode haver aplicação de pena privativa de liberdade. Acarreta extinção da punibilidade, quando cumprido. Deve haver justa causa. Partes: entre o MP e o investigado - acompanhamento pelo defensor. O juiz não pode participar do acordo, mas sua eficácia pressupõe homologação judicial - controle. É um contrato/negócio jurídico processual. o investigado abre mão de posições de resistência, aceitando a aplicação de certas condições restritivas de direitos, mesmo sem condenação criminal.
• Requisitos objetivos: infração com pena mínima inferior a 4 anos (consideradas as majorantes e minorantes), sem violência/grave ameaça, não pode se tratar de crime no âmbito de violência doméstica/familiar, ou praticados contra a mulher em razão do sexo feminino. Confissão formal e circunstanciada - pré-processual, diante do MP. A aplicação do instituto deve ser necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime - conceito jurídico indeterminado (requisito aberto, MP - discricionariedade)
• Requisitos subjetivos: investigação não reincidente, não haver provas de Conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, e não ter sido beneficiado com outro acordo nos 5 anos anteriores ao cometimento da infração.
• Condições aplicadas alternativa ou cumulativamente: reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumento, produto ou proveito do crime, prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas e pagar prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse local. Cláusula aberta - outra condição, desde que proporcional e compatível com a infração.
• Controle judicial - homologação do acordo - deve ser marcada audiência (mas na prática é comum serem dispensadas). Há controle da voluntariedade por meio da oitiva do investigado com seu defensor, e da legalidade - requisitos objetivos, subjetivos, condições pactuadas. 3 opções ao juiz: devolução ao MP para reformulação (condições inadequadas, insuficientes), recusa da homologação - não atende aos requisitos legais (devolve ao MP para análise de necessidade de complementação ou oferecimento da denúncia), homologação - devolução ao MP para iniciar execução perante juízo da execução. O MP ao receber o inquérito, pode arquivar solicitar novas diligências oferecer denúncia (a ser analisada pelo judiciário) ou propor ANPP.
• Efeitos do cumprimento integral do acordo - o juízo competente decretará a extinção da punibilidade - volta ao juiz que homologou - não constará na certidão de antecedentes.
• Efeitos do descumprimento do acordo - o MP deve comunicar o juízo que homologou para rescisão incidente do acordo e oferecimento da denúncia. Não pode ser qualquer descumprimento, que é usado pelo MP como justificativa para o eventual não oferecimento da suspensão condicional do processo.
12. Sujeitos processuais
A relação processual pressupõe ao menos três sujeitos (actum trium personum) - juiz, demandante e réu, em uma estrutura piramidal.
• Sujeitos essenciais - juiz, acusador (MP/querelante) e acusado. São sujeitos sem os quais inexiste relação processual.
• Sujeitos acessórios - podem eventualmente intervir no processo, são terceiros (ex: assistente de acusação)
• Auxiliares da justiça - auxiliam o desenvolvimento da atividade jurisdicional, mas não integram a relação processual (escrivão, oficial de justiça, peritos, tradutores)
12.1 Órgão jurisdicional
É o Estado que reúne o monopólio da força por meio do poder judiciário, funcionando como um instrumento estatal de heterocomposição de conflitos, é um sujeito processual imparcial (desinteressado e alheio ao conflito), com poder para solucioná-lo. Deve ser investido na jurisdição, imparcial e competente - observância das regras constitucionais/legais sobre fixação de competência. A investidura pressupõe a aprovação em concurso público ou por escolha política (STF e STJ), enquanto que a imparcialidade é regulamentada pela Constituição Federal, que estabelece garantias e vedações aos magistrados (art. 95) e autonomia administrativa e financeira ao poder judiciário, e pela legislação processual penal (art. 252), que trata dos impedimentos, que são questões de ordem objetiva e que colocam em dúvida a capacidade de imparcialidade do juiz.
As incompatibilidades estão previstas no art. 253 do CPP e também são questões de ordem objetiva, mas relacionadas a órgãos colegiados (diferença meramente terminológica em relação aos impedimentos). Já as hipóteses de suspeição, no art. 254, são questões de ordem subjetiva.
A jurisprudência tem entendido que o rol de impedimentos/incompatibilidades é taxativo, mas entende que o rol de suspeições é exemplificativo. Os atos praticados por juiz incompatível/impedido, vale dizer, têm quanto ao seu efeito, a nulidade absoluta (art. 564 CPP). Há um procedimento para que o juiz se declare impedido/suspeito/incompatível - pode se declarar de ofício ou a questão pode ser arguida pelas partes - segue o procedimento da execução de suspeição.
12.2 Ministério Público
Possui natureza sui generis, é uma organização própria e autônoma, além de ser órgão essencial à administração da justiça e não integra o Judiciário nem o Executivo. É autor de ação penal pública e responsável pela tutela de direitos difusos no processo civil, atuando em alguns casos como fiscal da lei na ação penal privada. Princípios: unidade, indivisibilidade e independência funcional - art. 127, § 1º. A unidade e a indivisibilidade dizem respeito à ideia de que todos os órgãos do MP fazem parte de uma mesma instituição, de forma que quem atua é o MP, não um membro específico. Já a independência funcional se refere à noção de que cada membro age conforme sua consciência jurídica, sem ingerência dos poderes da República nem de órgão superior do próprio Ministério Público. Os impedimentos estão previstos no art. 258, sendo-lhes estendidas as prerrogativas dos juízes.
Discute-se se o MP é parte interessada ou imparcial: há uma primeira corrente que afirma que mesmo quando é autor, é parte imparcial que deve atuar na busca pela verdade e pela correta aplicação da lei, não da pretensão punitiva estatal, e é amparada pelos arts. 257 e 258 do CPP. Outra corrente, por seu turno, entende que a estrutura acusatória exige que o MP atue parcialmente, buscando a tutela da pretensão punitiva em uma estrutura dialética (tese e antítese). Tal posição é amparada pelo princípio acusatório e pela ideia de que é tutor do interesse punitivo, de modo que falar que o MP é imparcial seria uma falácia normativista.
12.3 Assistente de acusação
O ofendido atua no processo penal como autor (ação penal privada) ou assistente de acusação (ação penal pública). É uma modalidade de intervenção de terceiros em que a vítima tem a faculdade de se habilitar para auxiliar o MP.
Há controvérsias sobre o interesse do assistente de acusação, de modo que a corrente mais tradicional, de base normativa, afirma que o interesse do assistente é meramente patrimonial (obtenção de um título executivo judicial pela condenação transitada em julgado) - o sistema recursal permite que o assistente recorra de decisões que não gerem título executivo judicial. Por outro viés, há uma segunda corrente, que é definida como posição majoritária e que defende que o assistente de acusação possui interesse na correta aplicação da lei penal - possibilidade de recorrer não apenas da absolvição, mas também para aumentar a pena.
O assistente de acusação tem cabimento apenas na ação penal pública (condicionada ou incondicionada), não cabendo a figura do assistente de acusação na execução penal, e a posição dominante não admite habeas corpus e revisão criminal. Quanto ao momento, pode haver assistente de acusação desde o início da ação penal (art. 268 - discussão: se a partir do oferecimento ou do recebimento da denúncia) até o trânsito em julgado (art. 269). O assistente não pode intervir durante o inquérito, mas há possibilidade de a vítima requerer vista dos autos e diligências ao delegado.
Procedimento: formulado o pedido de habilitação, o MP será ouvido, decidindo o juiz em seguida (art. 272 CPP). O MP não deve analisar a conveniência e a oportunidade da intervenção, mas apenas requisitos formais (se é o ofendido, se tem advogado…). A decisão que admite ou denega o pedido de habilitação é irrecorrível, nos termos do art. 273 do CPP. A doutrina e a jurisprudência, todavia, têm admitido a impetração de mandado de segurança.
São legitimados: o ofendido, o representante legal ou os sucessores processuais (art. 268). O ofendido pode ser pessoa jurídica, mas não se admite em regra intervenção da administração pública, mas há exceções no STF e STJ. A jurisprudência tem entendido pela intervenção do lesado em crimes cujo sujeito passivo primário é o Estado (ex: concussão), havendo hipóteses previstas em leis especiais. E os poderes do assistente de acusação estão previstos no art. 271.
12.4 Acusado
• Investigado - suspeito durante a investigação
• Réu/acusado - nome do suspeito na fase processual (querelado - na ação privada)
• Imputado - termo genérico (fase de investigação ou processual)
• Autodefesa - direito de presença, de audiência e de postular pessoalmente
12.5 Defensor
• Defensor constituído - escolhido pelo acusado (procuração, contrato de honorários)
• Defensor dativo - oferecido pelo Estado para quem não possui defensor constituído (pode ser defensor público ou advogado particular mediante remuneração estatal
• Defensor ad hoc - nomeado para a prática de atos específicos (ex: casos em que o defensor constituído/dativo não comparece, sem justa causa)
A defesa técnica é irrenunciável, ainda que o réu esteja ausente/foragido, e inicia a partir da resposta à acusação, após citação do réu pelo juiz, e deve ser efetiva, com tempo e condições adequadas.
12. 6 Auxiliares da justiça
Valem as mesmas causas de suspeição/impedimento aplicáveis aos juízes (não há previsão específica quanto a isso, mas a doutrina entende assim. Suspeição/impedimento devem ser declarados de ofício, mas cabe arguição da parte.
Quanto às autoridades policiais, considera-se ser uma regra sem sanção (art. 107 CPP), vez que devem se declarar suspeitos, mas não cabe exceção de suspeição pelas partes.
Disciplina: Processo Penal I
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