O sistema jurídico-penal lida com a mais severa sanção do ordenamento jurídico, que é a privação da liberdade. Questiona-se se tal sanção é justificada pela tutela de bens jurídicos, e para isso, buscam-se parâmetros de legitimidade e o estabelecimento de critérios racionais que legitimem o poder do Estado em face dos indivíduos.
Pode-se dizer que a ciência do direito é a ciência da diferença entre o poder e a razão. A ciência do direito acadêmico, no entanto, encontra dificuldade em intervir efetivamente no poder. Mas o poder, em suma, pode ser constrangido por meio de razões, apontando-se as arbitrariedades e lançando-lhe críticas.
Destacam-se dois principais pontos de intersecção entre o direito penal material e o direito processual penal:
• A pena em si não é consequência de um crime necessariamente, mas sim de uma atuação processual, inserindo-se o processo penal entre o fato criminoso e a pena, sendo legítima essa última se o processo penal também for legítimo (devido processo legal)
• A grave intervenção do Estado sobre o sujeito parece decorrer de uma condenação, mas o processo penal desde o início intervém gravemente nos direitos fundamentais do indivíduo. Além disso, há no processo penal medidas mais interventivas que o processo em si e que o compõem.
À vista dessas considerações, extrai-se a importância do processo penal, que muito se diferencia do processo civil, especialmente no que toca à posição do réu e às suas garantias. Esboçando-se as principais etapas do processo penal, tem-se a seguinte sequência: suspeita - investigação - denúncia/queixa - processo em primeira instância - sentença - fase recursal.
1. Conceitos básicos do direito processual penal
O sistema jurídico-penal é um conceito amplo, abrangendo ramos do direito relacionados aos crimes e às punições. Nesse sistema inserem-se o direito penal, que lida com sanções aplicadas às situações, o direito processual penal, que busca o esclarecimento dos fatos, e a execução penal, mais voltada aos procedimentos para o cumprimento de uma pena.
2. Relação do direito processual penal com o processo penal
O direito penal descreve crimes e estabelece penas, mas a sua constatação depende de um processo penal regular, orientado pela máxima do devido processo penal. A relação do processo com a pena pressupõe entender que para haver a pena, é necessário um processo anterior, de forma que antes disso, qualquer pessoa é presumida inocente (nulla culpa, nulla poena sine iudicio).
A pena é um instituto aplicado apenas processualmente, não podendo ser uma repreensão extraprocessual, pessoal ou autônoma, vez que se trata de uma sanção institucionalizada e dependente da atuação jurisdicional.
Todavia, atualmente há acordos penais anteriores ao início do processo que permitem a aplicação de medidas restritivas de direitos (ANPP e transação penal), mas eles sempre requerem homologação judicial enquanto um controle jurisdicional do acordo.
3. Instrumentalidade do processo penal em relação ao direito penal
O direito processual penal esclarece o que foi estabelecido pelas normas penais, especificando-as e efetivando-as, sendo que o direito penal fornece o objeto do processo penal. Essa relação se torna mais nítida quando buscamos entender o direito como silogismo, que se dá na seguinte estrutura:
• Premissa maior - norma jurídica (direito material): “se f é um caso de F, então aplica-se P”. Âmbito de validade.
• Premissa menor - fatos provados (direito processual): “está provado que f”. Esclarece se um fato concreto corresponde à descrição da norma jurídica de direito penal material.
• Conclusão - “aplica-se P” (pena/consequência)
4. Relação entre processo penal e direito constitucional
4.1 - Dupla finalidade do processo penal
O processo penal costuma conflitar com a repressão ao crime e o respeito à dignidade humana, pendendo sempre para um lado ou para o outro, em um embate entre o fim coletivista (esclarecer os fatos, interesse social, aproximando o direito processual penal ao direito penal material) e o fim individualista (proteção do réu em face do punitivismo estatal, aproximando o direito processual penal ao direito constitucional), em busca de um processo penal democrático e liberal.
4.2 - Direito processual penal como termômetro da democracia
A forma como o direito processual é conduzido demonstra o grau de respeito à dignidade humana e à Constituição, servindo como um medidor do autoritarismo, ou como o sismógrafo da Constituição, nas palavras de Klaus Roxin.
4.3 - Constituição como principal fonte do direito processual penal
A Constituição consagra os princípios e regras sobre a persecução penal, estabelecendo as garantias individuais de todo o indivíduo, especialmente no art. 5°. Pode-se dizer que a CF/88 é a principal fonte do direito processual penal (além de tratados e da Convenção Americana de Direitos Humanos/Pacto de São José da Costa Rica - arts. 7° e 8° da CADH).
4.4 - Medidas processuais como intervenções em direitos fundamentais
O processo penal invariavelmente afeta direitos fundamentais como liberdade, privacidade, intimidade e honra, em razão de suas intervenções, que se submetem a uma série de requisitos de legitimação, tanto formais (base legal, competência, procedimento e motivação) quanto materiais (fim legítimo, proporcionalidade, suspeita e outros requisitos específicos), bem como uma prévia autorização judicial.
5. Sistemas processuais penais
Têm-se por sistemas processuais históricos o inquisitório e o acusatório, sobre os quais não há consenso, tendo em vista que é uma dicotomia confusa, utilizada pela doutrina com múltiplos sentidos. É comum associar-se o processo acusatório/adversarial ao common law, e o processo inquisitório aos países de tradição romano-germânica (Europa continental). Importa ressaltar que os termos acusatório e adversarial podem ser empregados como sinônimos ou como conceitos distintos, a depender do autor.
Em suma, os sistemas processuais penais possuem precedentes históricos, mas atualmente são usados como modelos normativos (ideal/dever ser) que devem orientar as regras e práticas do direito processual penal, além de que as características atribuídas aos sistemas processuais refletem esses precedentes no tempo.
5.1 - Sistema inquisitório histórico
• Europa continental - baixa idade média e idade moderna
• Não havia separação entre acusador e julgador
• Defesa dispensável e bastante restrita
• Influência católica de racionalização em busca da VERDADE
• Juiz atuava de ofício e dispunha de poderes quase ilimitados (inicia o processo e busca provas/investiga - juiz inquisidor) - justificado pelo interesse público no resultado do processo penal
• O réu era tratado como objeto, não como sujeito de direitos, ele era visto como o detentor da verdade, que deveria ser dele extraída, já que se entendia que ele era o principal conhecedor do crime
• Sistema legal de provas tarifadas, ou seja, deve haver um número exato de provas para que se torne possível condenar
• Confissão como prova principal, inclusive havia uso frequente de tortura para se chegar a ela
• Procedimento escrito e secreto
• Julgamento por juiz togado, representante do Estado
• Ex: Tribunal do Santo Ofício (Inquisição). Nicolas Eymerich - Manual do Inquisidor (1358)
5.2 Sistema acusatório histórico
• Inglaterra - baixa idade média e idade moderna
• Separação clara entre acusador, julgador e réu - acusação privada
• O processo inicia e o juiz atua apenas mediante provocação
• O Estado faz a mediação entre as partes (juiz como um terceiro imparcial), sendo o processo penal visto como meio de resolução de disputas entre as partes
• A verdade não tem posição de primazia em relação a outras finalidades do processo, como a garantia de direitos do réu, restando a verdade a cargo das partes
• O réu é tratado como sujeito de direitos que pode se defender e produzir provas
• O julgamento se dá pelos pares - tribunal do júri, sendo o juiz um mero fiscal do procedimento, que é oral e público
• Não há provas tarifadas, basta a livre convicção
5.3 Sistema histórico “misto” (francês)
• Pós revolução francesa
• Code d’Instruction Criminelle (1808, Napoleão) - buscou conciliar os dois sistemas
• Duas fases de persecução penal: 1) pré-processual - inquisitória, com a investigação a cargo do juiz de instrução - escrito e secreto) e 2) processual - acusatória, com a acusação por um órgão semelhante ao MP, com procedimento público e oral
5.4 Sistemas processuais na atualidade
• Não há nenhum Estado Democrático que adote um processo com características do sistema inquisitório histórico, exceto em períodos autoritários, como na ditadura brasileira de 1964.
• Predomina atualmente a ideia de um modelo acusatório que é desejável, com a separação clara entre acusar e julgar, bem como com o reconhecimento de garantias processuais
• Livre convencimento motivado X livre/íntima convicção
5.5 Comparativo
Modelo normativo inquisitório Modelo normativo acusatório
juiz com amplos poderes instrutórios juiz desprovido de poderes instrutórios
prevalência do interesse público prevalece ideia de disputa entre as partes
valoriza-se a busca pela verdade verdade menos importante que consenso
ex: modelo inquisitório alemão reformado ex: modelo adversarial estadunidense
• Emprega-se essa dicotomia para distinguir características do processo penal atual
• Alguns autores consideram que a gestão da prova é o princípio definidor dos modelos
• Distinguem-se os sistemas pela possibilidade de o juiz produzir prova ou não de ofício
5.6 Modelo processual brasileiro
• Elaborado por Francisco Campos durante a Ditadura do Estado Novo (Getúlio Vargas)
• Inspirado no CPP italiano de 1930 - elaborado por Arturo Rocco durante o Fascismo
• Ideologia autoritária de inspiração fascista, com pouca preocupação com a garantia de direitos individuais do réu
• Até 1941 os CPP’s eram estatais - cada estado da UF possuía um código de processo penal próprio, não havia uniformização
• A redação original previa a presunção de culpabilidade e a prisão preventiva como regra, havia uma ampla atuação de ofício do juiz na busca da verdade real e na aplicação de medidas cautelares. O interrogatório era um simples meio de produção de prova, sendo o réu uma fonte dela.
• O código permaneceu vigente, mas com sucessivas alterações, sendo que a CF/88 consagrou garantias individuais ao entender o processo como garantia do réu. A Constituição também propôs uma separação clara entre acusador e julgador, prevendo expressamente o devido processo, a presunção de inocência, a liberdade como regra, a publicidade, o contraditório e a ampla defesa.
• Reformas de destaque no CPP: Lei 11.719/2008 - interrogatório como defesa e último ato, Lei 12.403/2011 - prisão preventiva como exceção, e Lei 13.964 - pacote anticrime
5.7 Pontos polêmicos sobre a compatibilidade do CPP com a CF/88
• Atuação probatória complementar do julgador - para parcela doutrinária, essa atuação do juiz reflete o modelo inquisitório (arts. 156, 209 e 212 do CPP)
• Possibilidade de condenação contrária a pedido da acusação - de natureza mais grave, visto que viola uma das principais características do sistema acusatório, que é a nítida separação entre juiz e julgador (art. 385 do CPP)
• Prisão provisória como consequência da condenação recorrível do Tribunal do júri (art. 492)
• Inquérito das fake news (STF, Inq. 4781): instaurado de ofício pelo presidente do STF, a PGR manifestou-se contrariamente, pedindo o arquivamento, vez que se impôs de ofício. Houve prisão em flagrante (provisória) sem provocação de deputado federal (Daniel Silveira). O caso trata de um problema de competência, ferindo tanto o princípio do juiz natural quanto a necessária separação entre acusador e julgador. O Plenário do STF decidiu que o inquérito não viola o sistema acusatório nem a Constituição Federal (ADPF 572)
• Operação Lava-jato: revelação de mensagens entre o ex-juiz Sérgio Moro e procuradores para traçar estratégias de acusação contra o presidente da República (Operação Spoofing) - suspeição declarada pelo STF no HC 164.193. Houve a condução coercitiva de Lula sem prévia intimação - parcialidade
6. Princípios processuais penais
Os princípios processuais penais são valores que legitimam o processo penal e orientam a aplicação das normas processuais. Podem ser explícitos ou implícitos, e estarem presentes tanto na Constituição Federal quanto em tratados ou extraídos dos direitos fundamentais. Os princípios não atuam apenas na atividade jurisdicional, mas também na legislativa, expressando as finalidades do processo penal. Válido ressaltar que os princípios processuais penais se aplicam integralmente à fase processual, mas apenas de forma matizada à investigação preliminar, que é anterior à denúncia.
6.1 Devido processo legal
É um pressuposto de legitimidade das intervenções estatais sobre os indivíduos, em prol do respeito aos direitos e garantias individuais e aos procedimentos/finalidades legais, estando previsto inclusive na CF/88. Trata-se de um princípio que decorre do Estado Democrático de Direito e do princípio da legalidade geral - “o indivíduo pode fazer tudo o que a lei não proíbe, e o Estado tem o poder-dever de fazer apenas o que a lei autoriza”. A intervenção em direitos fundamentais está submetida à reserva de lei formal (expressa, não deduzível). É um princípio guarda-chuva, vez que engloba todos os demais, sendo legítima uma sanção penal quando constatado um fato típico, antijurídico, culpável e punível mediante um devido processo legal/penal.
Sua origem histórica remonta ao common law e à Magna Carta de 1215. A Constituição dos EUA inicialmente possuía apenas uma dimensão formal desse princípio, traduzida no respeito ao procedimento, mas ao longo do tempo recebeu uma dimensão material, o que torna nítida a distinção entre o processo legal substantivo (justo) e o procedimental. Em resumo, o devido processo legal é um princípio-síntese que se manifesta nos demais.
6.2 Presunção de inocência
É um princípio eminentemente penal, e considera que todo cidadão é inocente até que se prove o contrário, sendo que o status do indivíduo se altera somente após sentença resultante de um devido processo penal que o condene. Tal princípio adveio do Iluminismo, e é reconhecido em muitos tratados e constituições, sendo inclusive discutido por Beccaria. No Brasil, a ordem jurídica reconhece a presunção de inocência até o trânsito em julgado da condenação - CF + art. 283 CPP. De acordo com a doutrina, o princípio da presunção de inocência possui triplo significado/manifestação:
• Regra de tratamento - o sujeito é tratado como inocente até o trânsito em julgado da condenação (execução provisória da pena, vedação de liberdade provisória, antecedentes)
• Regra probatória - manifesta-se ao longo do processo, iniciando-se com a acusação e à produção de provas lícitas para provar a culpabilidade do réu (ônus probatório da acusação)
• Regra de julgamento - havendo dúvidas acerca de questões fáticas após a atividade probatória, o julgador deve decidir em favor do réu (in dubio pro reo). Essa regra se manifesta especialmente na sentença.
A execução provisória da pena enquanto regra de tratamento diz respeito à possibilidade de o Estado suprir a pena antes de uma condenação definitiva, e o tema é bastante polêmico no Brasil. Muitos países entendem que a execução provisória é afastada com o esgotamento das instâncias ordinárias, podendo o réu ser preso após sentença condenatória de segundo grau. Cabe um adendo: os recursos extraordinário e especial pertencem a uma instância especial.
Alguns diplomas internacionais reconhecem a presunção de inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. No Brasil, contudo, essa garantia é ampliada, exigindo-se o trânsito em julgado da condenação (quando não for mais cabível recurso).
6.3 Imparcialidade e juiz natural
Trata-se de um princípio geral de processo mas com implicações penais, está previsto nos arts. 8 e 10 da DUDH. A imparcialidade é uma condição essencial do exercício da função jurisdicional, devendo o Estado ser descomprometido com o interesse das partes, mediante um julgador imparcial. A imparcialidade, contudo, não se confunde com a neutralidade, essa última é impossível, enquanto que a imparcialidade se refere a um julgamento motivado de acordo com as normas consagradas pelo ordenamento jurídico de forma apartada ao interesse das partes em contenda.
Cabe uma distinção doutrinária entre imparcialidade subjetiva e objetiva: a primeira diz respeito à ausência de comprometimento psicológico pelo julgador em determinado caso concreto, sendo mais difícil de verificar. Já a imparcialidade objetiva corresponde à inexistência de elementos objetivos que permitam colocar em dúvida a imparcialidade do julgador (suficiência da aparência de imparcialidade) - confiança na atuação jurisdicional pela população. Nesta seara, recai-se em determinadas regras de suspeição (caráter subjetivo, presunção relativa de parcialidade) e impedimento (caráter objetivo, presunção relativa de parcialidade) - arts. 252 e 254 CPP.
O juiz natural, por sua vez, é um princípio de investidura e competência preestabelecida pela CF e pela leis. Ele procura assegurar a imparcialidade dos julgadores, que devem ser previamente estabelecidos com base em critérios objetivos e abstratos, não podendo ser escolhido para julgar fatos ou pessoas específicas. Em regimes autoritários são comuns tribunais de exceção (ex post facto). São três os corolários do juiz natural:
• São órgãos jurisdicionais somente os instituídos pela Constituição Federal
• Ninguém pode ser julgado por tribunal instituído após o fato a ser julgado
• As competências dos tribunais devem ser preestabelecidas pela CF e pelas leis
A fixação da competência deve se dar no momento do fato criminoso, não no momento do ajuizamento da ação. Os tribunais superiores, todavia, adotam a máxima tempus regit actum, aplicando-se de imediato as alterações nas normas de competência, embora haja hipóteses no processo penal que não segue essa regra, podendo a lei retroagir em benefício do réu.
6.4 Contraditório
Faz referência à estruturação dialética do processo, com o direito das partes de se manifestarem e influenciarem as decisões judiciais. Possui um fundamento político democrático (só há legitimidade quando houver participação dos afetados) e um fundamento epistemológico (as opiniões contrapostas ampliam o conhecimento judicial sobre questões jurídicas e fáticas, reduzindo as possibilidades de erro). É um princípio que tem por elementos:
• Informação necessária - os atos praticados devem ser informados às partes
• Reação possível - as partes devem ter a oportunidade de se manifestarem
Recentemente entendeu-se que não basta oportunizar, é preciso que o juiz zele pela efetiva reação das partes, compensando eventuais desigualdades. Ademais, veda-se a decisão surpresa, ou seja, as partes não podem ser surpreendidas em razão de fundamentos não discutidos previamente por elas e adotados na fundamentação judicial. O contraditório é ligado às questões fático-probatórias, mas prevalece a posição de que ele também se aplica às questões jurídicas.
Sobre o contraditório diferido (no tempo) e tutela provisória, tem-se uma exceção, visto ser possível uma decisão sem a oitiva prévia da parte contrária devido à urgência (inaudita altera pars). Esse procedimento é comum também em medidas investigativas, liminar em habeas corpus (pela lógica da medida e sua efetividade). Sendo necessário, no entanto, que o ato seja posteriormente cientificado à parte contrária.
6.5 Ampla defesa
Princípio específico do processo penal, tendo em vista as graves intervenções estatais sobre os direitos do réu. Possui íntima relação com o princípio do contraditório, com a diferença de que este último se aplica à acusação e à defesa, enquanto qua a ampla defesa é prerrogativa exclusiva do réu, que tem direito à última palavra. A ampla defesa subdivide-se em defesa técnica, que é realizada por advogado, e autodefesa, pelo próprio imputado:
• Defesa técnica: é obrigatório que em todos os atos do processo penal o réu esteja acompanhado de procurador (art. 261 CPP) - é um direito irrenunciável, ainda que o réu possa eleger sua defesa, caso contrário, nomeia-se um defensor dativo. Contudo, não basta a presença formal/física do defensor, é preciso que a defesa seja efetiva. Para isso, tem-se a Súmula 523 do STF, que afirma que a falta de defesa leva à nulidade absoluta, e a ausência de defesa efetiva anulará se houver prejuízo ao réu (nulidade relativa). Ainda, nos termos do art. 8, c, CADH, é preciso que a defesa se dê em tempo e meios adequados.
• Autodefesa: é a possibilidade de o réu fazer sua própria defesa. Pertencem ao direito de defesa as seguintes faculdades: direito de audiência (o réu tem direito de ser ouvido pelo juiz, o que geralmente acontece por interrogatório, mas caso queira, o réu pode permanecer em silêncio), direito de presença (direito de comparecimento e acompanhamento dos atos do processo, que pode ser restringido em situações excepcionais) e direito de postular pessoalmente (sem assistência de procurador, embora a capacidade postulatória seja privativa de advogados).
Outro importante fator que permeia o princípio da ampla defesa é a paridade de armas/igualdade de tratamento, tanto em direitos quanto em deveres, devendo ser possibilitados os mesmos meios e oportunidades de influenciar o comportamento judicial em uma dimensão de igualdade material, ante a vulnerabilidade do imputado, havendo inclusive meios de impugnação privativos da defesa (embargos infringentes, revisão criminal). Entretanto, encontram-se problemas para a efetividade dessa igualdade pretendida:
• Aspecto cênico das audiências: o Ministério Público se posiciona à direita do julgador e em posição elevada, diferentemente da defesa, que se posiciona ao lado oposto e em posição mais baixa, o que confere um simbolismo de superioridade estatal da acusação em detrimento da defesa do réu
• Investigação defensiva: o MP requisita provas durante o inquérito e conduz a investigação, mas não há um procedimento análogo que permita poderes de defesa semelhantes aos da acusação na fase investigativa.
6.6 Direito à não autoincriminação (nemo tenetur se detegere)
É o direito de não colaborar com o processo a seu desfavor ou sofrer consequências por isso, direito de não produzir provas autoincriminadoras. Princípio que tem origem histórica na Inglaterra (sec. XVI), quando até então o réu deveria falar a verdade, até que Edward Coke contestou essa prática. O direito à não autoincriminação abrange algumas prerrogativas:
• Direito ao silêncio: o réu pode permanecer calado de forma total (não responder a nenhuma pergunta) ou parcial (responder apenas algumas). A autoridade constituída deve advertir de forma prévia e formal sobre o direito ao silêncio e de interrupção imediata do interrogatório de quem decidir exercê-lo, sob pena de nulidade (aviso de Miranda).
• Inexigibilidade de dizer a verdade: o réu pode negar falsamente o crime e a autoria, mas isso não autoriza a prática de crimes correlatos. O STF entendeu que o nemo tenetur se detegere não exclui a possibilidade de responsabilização por crimes praticados para ocultar um crime anterior (STF - RE 971.959, 2018)
• Direito de não realizar comportamentos ativos: o réu não pode ser obrigado a colaborar praticando condutas, mas deve tolerar quando a participação for meramente passiva (ex: reconhecimento pessoal). Ainda, o réu tem o direito de não permitir a realização de provas invasivas, mas o Estado pode ter acesso a coleta de materiais de forma não invasiva, por exemplo.
6.7 Publicidade
Relaciona-se à fiscalização do processo pela população e pelas partes. Processos secretos, por seu turno, são típicos de regimes autoritários, nos quais é comum a ocultação de arbitrariedades. A publicidade divide-se em:
• Publicidade externa/geral/popular: é a regra, é a possibilidade de acesso de qualquer pessoa aos autos.
• Publicidade interna/restrita/das partes: é a exceção, é a possibilidade de acesso apenas às partes e procuradores (segredo de justiça) - demanda previsão legal com finalidades específicas para a proteção da intimidade ou do interesse social. A restrição à publicidade interna é bastante excepcional (impossibilidade de acesso pelas partes e procuradores - ex: produção de provas, diligências em andamento em inquéritos policiais).
6.8 Fundamentação/motivação das decisões judiciais
A atuação estatal conforme o direito se distingue do mero exercício arbitrário da força (voluntas), devendo toda decisão judicial ser fundamentada racionalmente (art. 381, III, CPP), não apenas a sentença, que demanda uma fundamentação especial. A motivação das decisões possui uma dupla finalidade:
• Endoprocessual - direcionada às partes e aos órgãos jurisdicionais, possibilitando sua impugnação e controle pelas instâncias superiores
• Extraprocessual - direcionada à população em geral, possibilitando o controle pela população e um exercício democrático do poder.
Além disso, tal princípio possui uma perspectiva positiva, voltada à validade da regra, ao significado (interpretação), aos fatos provados (decisão) e às consequências, e uma perspectiva negativa, vinculando-se a uma decisão que carece de fundamentação, e que tem por consequência a nulidade da decisão.
Problema da motivação por remissão: a motivação por remissão ocorre quando o juiz fundamenta a sua decisão remetendo a outra peça processual anterior, é uma prática bastante recorrente. Os tribunais superiores a admitem, mas ela é criticada pela doutrina, entendendo por fim o STJ que é necessário acrescentar argumentos próprios ao invés de fazer uma simples remissão.
6.9 Duplo grau de jurisdição: é a possibilidade de recorrer/reexaminar matéria fática e jurídica por instância jurisdicional superior. Esse princípio não se encontra expresso na CF/88, mas há previsão na CADH.
• Fundamento político - controle do poder estatal
• Fundamento epistêmico - redução dos erros/injustiças, controle por órgãos colegiados
É uma garantia exclusiva do réu e se refere à sentença, não a outras decisões. No processo penal brasileiro todas as decisões são impugnáveis, e o MP pode recorrer de uma eventual absolvição.
6.10 Duração razoável do processo
Há um tempo razoável para o recebimento da prestação jurisdicional, embora se saiba que na realidade é comum a demora. A situação se agrava no processo penal, em que o status de investigado prejudica o indivíduo (réu), sendo ainda mais extremo se ele estiver preso.
Há um direito à duração razoável do processo e à duração razoável da prisão, para esse último aplica-se a pelos tribunais superiores a teoria dos 3 critérios: complexidade da causa, comportamento da parte e conduta das autoridades judiciárias. Na prática, dificilmente o STF e o STJ reconhecem excesso de prazo em prisões inferiores a 120 dias, que costumam perdurar mais tempo.
No que tange à duração do processo, há pouca preocupação, admitindo-se que ele perdure até que o crime não prescreva. Há no Brasil a doutrina do não prazo, isto é, não há definição exata sobre quanto tempo pode demorar a conclusão de um processo/prisão.
Ainda sobre o tema, cabe o estudo do interesse da vítima pela duração razoável, existindo inclusive condenação de países por violação aos direitos das vítimas em razão da morosidade do sistema penal, havendo em alguns casos a prescrição do crime. Nesse ínterim, pode-se adicionar um quarto elemento à teoria dos três critérios: a afetação gerada na situaçaõ da suposta vítima.
7. Lei processual penal
7.1 Lei processual no espaço
Aplica-se a regra da territorialidade (lex fori). Mesmo em caso de extraterritorialidade na prática de um crime, se a persecução penal ocorrer no Brasil, o processo será conduzido conforme lei processual brasileira. Em caso de cooperação jurídica internacional, também se aplica a lei brasileira, mas com a exceção de que são admitidos atos de cooperação internacional conforme o procedimento estrangeiro, desde que não incompatíveis com a ordem interna, sendo, portanto, discricionário.
7.2 Lei processual penal no tempo
Discute-se se a retroatividade do direito penal material também se aplica ao processo penal. Incide sobre a lei processual no tempo a regra da imediatidade (art. 2° do CPP), ou seja, a norma processual penal aplica-se desde logo, disciplinando o procedimento no momento do ato processual, de modo que se aplica a máxima tempus regit actum. Caso ocorra a mudança procedimental em um processo já em curso, os atos anteriores continuam válidos, mas os posteriores seguem a nova legislação. Para responder o que acontece em um caso como o mencionado, tem-se um sistema de sucessão das leis processuais:
• Unidade processual - todo o processo deve ser regido por uma única lei processual
• Separação das fases processuais - é possível separar as fases processuais, mas cada uma delas deve ser regida por uma única lei processual
• Isolamento dos atos processuais - é o sistema que vigora no Brasil e que entende que cada ato processual pode ser regido por uma lei, embora seja comum que as lei estipulem regras de transição
7.3 Interpretação da lei processual
As leis processuais são interpretadas conforme as leis penais materiais, com a diferença que não há restrição nas leis processuais de interpretação por analogia, que não é admitida no direito penal material (integração jurídica) - art 3° do CPP.
7.4 Princípio da legalidade e lei processual penal
Discute-se a possibilidade de retroatividade da lei processual penal - entende-se que não se aplica, haja vista a irretroatividade da lei processual penal. Ex: se após o crime houve supressão do recurso ou ampliação das hipóteses de prisão preventiva, entende-se que tais mudanças aplicam-se imediatamente ao processo. Por outro lado, há mudanças que beneficiam o réu, como o ANPP (2019), que se aplicou aos processos já em curso que tratavam de norma mista.
Há parcela doutrinária que defende que o princípio da legalidade se aplica às normas mistas, que contêm conteúdo material e processual. As normas mistas obedecem a regra da irretroatividade da lei penal, de modo que a lei processual penal não retroagirá, salvo se beneficiar o réu, e a elas é vedada a analogia. Ou seja, aplicam-se às normas mistas os corolários do princípio da legalidade.
As normas de conteúdo misto/híbridas não são puramente processuais, portanto. E quanto a elas, também há controvérsia, de modo que não é pacífico seu entendimento
• Corrente restritiva - defende que as normas mistas prejudicam a pretensão punitiva, de modo que afirmam não se aplicar a regra da irretroatividade
• Corrente ampliativa - afirmam que as normas de conteúdo misto afetam direitos e garantias
Disciplina: Processo Penal I
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