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O SERMÃO DA PICANHA
Lasana Lukata

Irmãos em Cristo! Convidei o pastor Picanha para pregar hoje à noite, mas até agora ele não chegou. Aguardemos o homem de Deus e enquanto isso, contar-vos-ei um pouco de história, historinha:

Quem descobriu o fósforo foi Hennig Brand, no ano 1669, em Hamburgo, na Alemanha. E quem descobriu o fósforo que hoje vem na cabeça do palito foi Anton Von Shöter, no ano de 1845, Alemanha, mas quem descobriu o fósforo aceso em contato com o balde cheio de gasolina junto ao barracão, na Vila Tiradentes, em 1970, fui eu.

- Licença! Atendeu o celular. Era o pastor Picanha, gente! Ele tá preso no trânsito.

Mamãe me avisou para não jogar fósforo aceso num balde de 20 litros perto do barracão onde morávamos, porque estava cheio de gasolina. Não resisti. Arrastei o balde em chamas para cima do patinete ao preço de uma sobrancelha queimada. Já tinha ouvido falar que Deus guiava os filhos de Israel numa coluna de fogo à noite, mas criança não agüenta esperar e joguei logo o fósforo aceso, Deus acendeu e o levei para passear de patinete à tardinha mesmo.

Percebi que Ele gostava de água e a cada baldinho Deus crescia mais e mais até o céu e eu O levava para dar um abraço caloroso nos amiguinhos da rua, mas todos saiam gritando que “Deus era fogo consumidor!”.

- Pastor Picanha ligou que o trânsito está melhorando, mas ele vai dar uma paradinha no estacionamento do posto de gasolina, onde ele mantém vaga cativa, para trocar de carro: toda vez que sai para pregar, gente, ele passa no estacionamento e deixa seu carro Zero, no valor de R$190,000 e sai de lá com um fusca velho, caindo os pedaços que é para não chamar a atenção dos fiéis.

Dava para entender o medo de um Deus de Fogo Consumidor... Naquele tempo no bairro de Vila Tiradentes havia muitos barracos. O comércio: a barraca da Natália, a barraca do João Ratão, o Ponto Azul, ponto de referência para os caminhoneiros vindos de São Paulo, tudo era madeira. Mas eram os anos 70. O Brasil sendo tricampeão do mundo. Quem queria saber que em Vila Tiradentes havia barracos? No céu os balões davam cabeçadas tarde após tarde, gol após gol.

Era tempo das notas de Santos Dumont, de dez cruzeiros novos. Pastor Picanha já está chegando, gente! Ah, se no bolso do meu pai houvesse muitos Santos Dumont dando cabeçadas. Nada! Mal dava para comida. Morar num barraco alugado já explica muita coisa. Barraco mesmo com direito à lacraias,ratos, caranguejeiras, cobras, lobisomens, ladrões forçando as janelas e os “Irmãos Coragem”. “Irmãos, é preciso coragem...” Era preciso coragem mesmo para morar em Vila Tiradentes.

Lá em casa, Santos Dumont mal aterrissava, naquelas notas marrons e verdes muito bonitas e levantava vôo rapidinho das mãos do meu pai. E nunca houve atrasos nos vôos. Se, por exemplo, comprasse um carrinho, meus carrinhos eram de caixas de fósforo, faltava para o ovo. Ovo... As coisas não mudaram muito
do meu pai para mim...

Outro dia fui preparar um ovo e ao riscar um fósforo, sofismei: o fósforo brilha porque se rala na aspereza. Poética a frase embora passando pelo centro do Rio, pela Presidente Vargas, vejo muitos fósforos que ralam, ralam na aspereza e não brilham; embora muitos fósforos não consigam nem sair da caixa. E dos que saem, muitos se quebram no caminho, perdem a cabeça. Em vez de para frente, ralam-se para trás. Há fósforos que não brilham porque não se mantém longe da umidade, conforme a recomendação na caixa. Há fósforos que por ficarem perto do calor, brilham cedo demais. Existe a hora certa para um fósforo brilhar. Existe a hora certa para um fósforo brilhar?

Echo! Aí está o pastor Picanha! Ouçamos com ele o Sermão da Picanha:

- Pois é, irmãos! Deus é assim: chamou uns para ter dez ternos e outros para ter um terno até o fim da vida; chamou uns para andar a pé e outros para andar de avião em avião; chamou uns para comer ovo e outros para andar de churrascaria em churrascaria...

Por essa teologia, Deus chamou uns para acender o fogo com fósforos e outros para apertarem apenas um botão. Deus é assim.

Tempos depois, o pastor Picanha teve que dar um tempo de ir à churrascaria. Hoje carrega uma cicatriz que desce do alto do peito, barriga, coxa, canela até o calcanhar e cinco pontes safenas. Eu não queria dizer, mas... Deus é assim.





Biografia:
Lasana Lukata é poeta, escritor por usucapião, São João do Meriti, RJ.
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