Outrora, quando ouvíamos o barulho dos fogos tínhamos a certeza de que quem fez o gol foi o nosso time, mas hoje, não podemos confiar só nos ouvidos, temos que usar a audição e a visão, porque vivemos a Filosofia do Dois. Por exemplo, um tricolor que venha dentro do ônibus, sem radinho de pilha e TV, ao ouvir barulho de fogos, já não pode comemorar, achando que os fogos foram de algum tricolor, porque agora as torcidas flamenguista, vascaína ou botafoguense compram fogos para comemorar quando o adversário faz um gol no Fluminense e vice versa. Os times entraram na Filosofia do Dois. Dupla comemoração. Comemoram-se a vitória do seu time e a derrota dos outros. “Leve vantagem em tudo!” Ô Gérson, quem leva vantagem nisso, hein?! O vendedor de fogos é claro! Dupla venda. Comemoram quando o seu time joga e ganha e comemoram a derrota dos outros. A comemoração da derrota... Batatinha quando nasce espalha rama pelo chão... Tive um enteado que ao chegar lá em casa, à mesa, nos almoços ou jantares levava a mãozinha ao gargalo de refrigerante, dizendo:
- Quero dois!
Comia assim como se tivesse agarrado a um fio elétrico. Não desgrudava da garrafa. Eunquenrodoismãe!
- Deixa o Biluquinha! Ele é pequenininho! Dizia a mãe.
- Mas É de pequenininho que se ensina aos Biluquinhas: se der pra dois! Dizia eu.
Mas em casa ou na das outros não tinha jeito o Biluquinha:
- Eu quero dois!
Compramos um porquinho para juntar moedas para ele mesmo, mas o danado do porquinho só vivia vazio, porque ele possuía um outro porquinho igual, o Porquinho Dois, uma espécie de “Caixa Dois”, cheinho de moedas. Daí que no orçamento doméstico tudo dele era dois. Isso era lá no século XX, anos 80. Ele tinha três aninhos. De lá para cá estava decidido a começar a espiralar os olhos do pensamento para ver de onde Biluquinha tirou essa Filosofia do Dois, mas desisti porque não agüentei o orçamento do dois e a mãe foi embora levando o seu doiszinho. Biluquinha. Vai com Deus, vai! Doiszinho se foi e o orçamento doméstico se equilibrou e terminei a faculdade, consertei meus dentes...
Mas de tudo fica um pouco nos disse Drummond. Fica mesmo. Por esses dias, entre a livrada espalhada da mudança, percebi que eu tinha dois Tom Jones, dois Quixotes, dois Casmurros. Para disfarçar que eu não era adepto da tal filosofia, eu trabalhador em regime de plantão, tratei de justificar essa vontade que um Tom Jones, um Casmurro e um Quixote eram para ler no plantão noturno, sem ficar transportando tão excelentes obras para lá e para cá. Havia o risco de perder, o peso na coluna, a tentação de ler no ônibus com o descolamento da retina.
Mas como foi que essa filosofia entrou no meu enteado e depois em mim? Ou eu já era dois e não sabia? Voltei a espiralar. Espiralemos. Espiralemos. Abri o jornal e dei com o governo querendo criar novas fontes de recursos. Ressuscitar a CPMF. A nova CPMF. A CSS. É para a saúde mesmo? De quê? De quem? E como o cego curado por Cristo, comecei a me dizer: eu era cego e agora vejo. Olha o “dois” aí, gente! Chora meu povo! Querem criar novas fontes de recursos.
Tratei de correr para uma igreja evangélica, porque se tenho de pagar mais este imposto, preciso que Deus também me dê duas bênçãos. Deus não é o dono do ouro e da prata? Mas em lá chegando, o pastor já estava pedindo dois dízimos. Não é dito assim desenfreado, seco, rascante:
- Dois dízimos!
É com fineza, fabricação própria, música clássica, sapatinhos de lã que se pede o segundo dízimo.
O primeiro dízimo abre-se o Livro Sagrado em Malaquias 3:10 e nos chamam até de ladrão e dizem, olha é a própria Palavra de Deus que está te chamando de ladrão, não sou eu, não. Será? Ah, se eu fosse Deus para esquadrinhar os corações. Deus tem dado carona a muita gente. Lembra aquele amigo que tem vontade de te dizer umas coisas ruins, mas não diz e quando alguém diz, ele é o primeiro a te servir a bandeja com o recado ruim?! Fulano falou isso e isso de ti amigo. Amigo...
O segundo dízimo na igreja em que eu entrei tinha o nome de “Campanha dos Construtores de Neemias”. Campanha é algo que tem finalidade, começa e termina, alfa e ômega, mas essas campanhas vão sendo reeditadas feito as Medidas Provisórias de um governo, oh, como se parecem, e de repente são eternos. Não é outro dízimo? Viram até carnês: Carnê do Gideão; Carnê dos Construtores de Neemias, e como são muitas igrejas, em breve teremos o os carnês do Isaías, Jeremias, Sofonias, Obadias, obaoba, o carnê da Raabe que é para pegar os dízimos das prostitutas; o carnê da dupla Judas e Zaqueu para pegar os dízimos dos ladrões. Ninguém escapa à bitributação...
Não era para haver campanha nenhuma na casa de Deus. O dízimo e as ofertas são os paus para todas as obras, mas há cupins que comem. Ofertas, coitadas, adjetivadas: oferta de amor; oferta de sacrifício e oferta da ganância: quem dá mais, recebe mais! Pode?! O país já está há muito na Filosofia do Dois. Antigamente, disse Deus, não é bom que o homem viva só, fez Eva, mas Abraão queria Sara e Hagar; os campeonatos de futebol não tinham esse negócio de um jogo aqui e outro lá, na casa do adversário, agora tem. O torcedor gasta duas vezes; os cidadãos da maconha não pediam, “me dá um traguinho aí”, pediam, “deixa eu dar um doiszinho?!”. Na conta de luz, você paga o consumo de energia elétrica e a indecente Contribuição de Iluminação Pública. E a gente vai dançando, num salão de dois pesos e duas medidas, “São dois pra lá, são dois pra cá”. Enquanto isso, sob os nossos pés, as batatinhas...
Quanto a mim para fugir à Filosofia do Dois, fui à biblioteca doar a uma jovem interessada em livros, um dos meus Tom Jones, Quixote, Casmurro, Coração Selvagem, Barca dos Homens, mas a jovem olhou, olhou e descartou Tom Jones; derrubou Quixote do cavalo; deixou Casmurro falando sozinho; emborcou a Barca dos Homens e permaneceu um certo tempo com a Clarice nas mãos, manuseando, manuseando e arrematou: Me sinto mal lendo Clarice! Prefiro Nora Roberts. Batatinha quando nasce...
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