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O sebo
Flora Fernweh

Não era manhã, nem tarde, nem noite. Era sebo, somente o sebo com sua atmosfera impenetrável a qualquer raio de tempo exterior. As estantes se erguiam e mostravam a maravilha breve dos livros de melhor estado aos passantes ao lado de fora da vitrine, a dimensão visível do lugar se mostrava como uma oportunidade de trocar volumes e saberes. Havia, como em qualquer recinto onde alguém está disposto a vender e outro a comprar, o entendimento mútuo do comércio e da boa compra, afinal, as pilhas e mais pilhas de livros não garantem que o sebo permaneça de pé, em termos materiais. A magia da obra, contudo, se escondia para além da poeira do esquecimento, não se situava em um ponto fixo daquela imensa loja confundida com biblioteca, com casa e com todos os lugares do mundo. Não se podia tocar o sentimento vindo dos ninhos de traças com um simples pedido de permissão para adentrar naquele universo íntimo das dedicatórias e das notas de bolso. As camadas sobre as quais a vida se orienta seguem esse mesmo princípio, o ser mostra aos outros seres somente aquilo que deve ser mostrado, já a essência fundamental que sustenta todo o edifício que suporta o peso da nossa existência, com todo o seu prazer e sua fatalidade, não é visível a todos, é preciso saber enxergar, mas mais do que isso, é necessário estar autorizado a desvendar os mistérios de infinitos tão particulares. Para todos aqueles que preferem o comodismo de uma vida onde as aventuras perdem sua identificação com o alcance rápido e certeiro de um livro à mão, as livrarias são o bosque perfeito do luxo intelectual, elas até podem ter um cheiro bom de livro novo, uma boa iluminação, uma organização por autores, e frequentadores práticos e bem informados. Mas existe um som inaudível muito especial nos sebos, uma bagagem enigmática que os livros carregam de seus leitores já tão ancestrais, uma liberdade selvagem de esquecimento, algo intocado, sereno e indecifrável.

Certa de que o silêncio que as palavras proporcionam é a mais perfeita das sinfonias e a mais ideal das sintonias, a jovem de olhar perdido marcava seu ponto todos os dias naquele lugar que se tornara seu preferido. Os livros não se aborreciam com a presença rotineira da moça, pelo contrário, com o passar do tempo até inventaram um passatempo: descobrir se o motivo de tais olhos, um pouco vazios de desconhecerem as misérias do mundo fora das ficções, perdiam o foco e se alargavam, era a grande disponibilidade de títulos e sonhos e histórias. Ela conhecia todas as reentrâncias, todas as manias, passava horas folheando livros macios, livros amarelados, livros antiquados, livros de boa e antiga estética, livros de todos os cantos e encantos. Avistava vez ou outra, rostos conhecidos de outros frequentadores assíduos, mas diferentemente deles, compromissados com a posse de um tesouro literário, a mocinha não se sentia no direito de pertencer algum daqueles livros, via-os como parte de si e do cosmos. Claramente, ela ainda não havia enveredado pela estante reservada aos pensadores ilustres que discorreram sobre propriedades. Nada se sabia sobre ela, os poucos funcionários do sebo notavam sua presença, e apesar do comportamento instigante da jovem, faziam pouco caso. Para a menina, era melhor assim, não gostava de chamar a atenção de ninguém, falava somente o necessário, era de poucas palavras, mas ao mesmo tempo, vivia à procura delas, era assim, de poucas e muitas. A jovem leitora, expressava sua natureza curiosa sem cerimônias, era uma criança jogada no mundo, destituída o desespero da vida real e singular em seu gosto variado, se deleitava com qualquer assunto e não media esforços para desfrutar das aventuras que ela escolhia trilhar sem julgar a trajetória a partir dos primeiros passos, e sem atribuir seu juízo às capas que pouco eram capazes de transmitir. Para ela, era aí que residia o conceito de saber viver e viver para saber.

Há muito, o sebo se tornou o lar onde seu coração repousava, e embora quisesse fazer dele a sua morada oficial, o majestoso refúgio de regozijo e simplicidade transformado em santuário sagrado, para os outros, ainda era apenas um sebo cumprindo com suas funções prescindíveis. Conforme o tempo passava, a verdade que a jovem não mediu esforços para reprimir, vinha à tona: em breve, ela já não poderia dar vazão às suas horas enfurnada naquele recinto de escape aconchegante, seria preciso encarar a vida de frente e escrever sua própria história. A mocinha sabia que a vida real não era tão interessante quanto às aventuras que lhe fascinavam. A vida, sabia bem ela, se assemelhava muito mais com um gênero jornalístico ou com um romance vazio de uma agenda cheia de compromissos. Mas enquanto podia, a jovem fez bem em buscar afastar os pensamentos que lhe arrancavam a paz de uma boa leitura. Vivera imersa por muito tempo em um mundo de imaginação, de finais felizes e de grandes acontecimentos, e quando retornava de suas viagens em papel e tinta, se assustava com a sombra de que um dia, seus esforços convergeriam para um viver comum. Não valia a pena, pensava ela, se preocupar com a incerteza do futuro. Enquanto houvessem bons livros afugentando seus medos, tudo estaria em perfeita harmonia.

Certa vez, caminhando por aquele labirinto de cores, histórias e sentimentos que conhecia tão bem e que a conhecia melhor ainda, a atenção da jovem foi atraída por uma passagem estreita entre duas estantes de livros grossos e carcomidos pelo tempo. A poeira quase tornava o local degradante, não fosse pelas grandes histórias que ali existiam. A jovem abaixou-se, magnetizada pelo preto reluzente de um livro pesado que a chamava. Ela sentia-se quase tão viva quanto o livro que acabara de despertar seu mais genuíno interesse. A jovem, conhecedora de grandes obras e manuseadora oficial desses materiais repletos de segredos, sentira algo diferente ao se aproximar daquele grande livro, uma emoção familiar tomou conta dela e tornou-a estática por alguns instantes. Logo, a euforia da curiosidade não tardou a surgir e a mocinha folheava as páginas sem piscar, vidrada nas palavras que o tempo estava se encarregando de apagar aos poucos. Havia muitos desenhos e símbolos naquele livro, além de um misticismo inexplicável e peculiar exalado nas entrelinhas daquela legendária experiência literária. Afinal, o que está diante de nossos olhos são linhas em que o necessário se inscreve, e tudo aquilo que é de fato essencial, exige um olhar perspicaz que adentra o âmago da experiência da vida. Assim que os olhos compenetrados da jovem alcançaram a contracapa, se depararam com um papel dobrado em formato de carta. Ao tentar abrir, naquele momento de total negligência com a intimidade de alguém confiou a um livro, e que já não mais se configurava com uma falta de respeito, posto que os segredos também se esvaem com o tempo, o peso de um livro que acabara de cair, tirou-lhe a atenção. No mais, o lugar estava calmo, sem nenhum resquício de conversas paralelas em torno de um best-seller recém publicado, o que constituía o cenário idôneo para enfim ler o que aquele papel que já lhe era tão mágico, trouxera. A jovem leu a carta com a voracidade de um de seus personagens frente à vida que levavam. Enquanto lia já com os olhos embaçados por uma lágrima tão pesada quanto o peso do livro que encontrara, e tão árdua quanto a ideia que fazia da existência, suas emoções transbordavam ao imaginar as belas palavras que acalentavam seu coração, ganhando vida. A menina nunca sentira tão viva quanto havia se sentido naquele momento sublime, sentia no fundo de sua alma que o amor finalmente a havia encontrado em uma carta datada de 1950 que transbordava o mais profundo sentimento de amor escrito à mão. O que mais surpreendeu a jovem, foi a destinatária daquela dedicação amorosa: uma moça que tinha o mesmo nome que o seu: Marieta.

Muitas dúvidas começaram a atormentar a jovem: Mas quem era o remetente da carta? Será que em algum dia a carta chegou até as mãos de Marieta? Será que o livro pertencia à jovem amada que ali guardara a recordação de um tempo de ouro em sua vida? Por que a carta lhe tocara tanto? A jovem tinha alguma relação com a Marieta a quem as doces palavras se destinavam? A pequena Marieta não sabia quem era a Marieta da carta, mas certamente sabia que tal sentimento não era dirigido à mocinha que acabara de encontrar um tesouro que já se fazia histórico, pois nem ao menos era viva na época em que o coração de um apaixonado escrevera com sinceridade o seu amor. Será que não passava de uma mera coincidência ou será que havia algo de muito extraordinário nessa história contada apenas em um pedaço de papel que sobrevivera às intempéries dos anos? Seria para sempre um mistério, um segredo entre Marieta e o livro que se transformou em veículo rumo ao despertar do sentimento. Talvez, por arte do destino, a verdadeira Marieta ainda encontraria aquela carta, que poderia ser lhe esclarecedora sobre o passado. A jovem não hesitou em deixar a carta exatamente no lugar onde a encontrou. Muito mais do que pertencer aquele tesouro que lhe rendeu boas histórias para contar e uma inspiração que a seguiu por toda a vida, valia muito mais, perpetuar as aventuras e descobertas que só acontecem no sebo, eternizando-as naqueles que ainda irão se deslumbrar com todo o tipo de aventura que os livros prometem.


Biografia:
Sobre minha pessoa, pouco sei, mas posso dizer que sou aquela que na vida anda só, que faz da escrita sua amante, que desvenda as veredas mais profundas do deserto que nela existe, que transborda suas paixões do modo mais feroz, que nunca está em lugar algum, mas que jamais deixará de ser um mistério a ser desvendado pelas ventanias. 
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Publicações de número 381 até 383 de um total de 383.


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