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Mapas
T. Richter

Ela comprou o GPS, mas quem acabou lendo o manual de instruções fui eu, o que acabou não sendo lá grande trabalho. Sempre gostei de mapas, e isso desde criança.
Lembro que, naqueles momentos de tédio vespertino que volta e meia nos assombravam nos anos 90, quando parecia não haver nada passando na televisão e que todos os cartuchos de videogame que se tinha já haviam sido jogados a exaustão, eu gostava de pegar alguma edição das Páginas Amarelas lá de casa e ficava folheando a seção de mapas da cidade.
Gastava nisso um bom tempo. No começo procurava pela minha rua e ficava analisando o entorno... reconhecendo as outras ruas do condomínio, onde moravam colegas meus. Lembro de ter procurado a rua do mercadinho onde ia fazer compras com meus pais e também a da escola, tendo ficado um tanto admirado de no mapa ela estar bem mais perto do que parecia ao se voltar de lá caminhando sob o sol do meio- dia.
Depois comecei a expandir as buscas... a rua onde uma tia- avó minha morava em São Cristovão.., O shopping center na Barra que minha família ia com mais frequência... o restaurante na Freguesia onde comíamos rãs a milanesa de vez em quando... refazia as rotas que levavam às coisas que faziam parte de meu restrito círculo de pré- adolescente dos tempos antes do boom da internet e tracejava algumas outras para lugares mais distantes, pouco conhecidos.
Como não podia deixar de ter sido, o tempo passou... O garoto que se entediava quando não estavam passando desenhos animados na TV deu lugar ao adolescente de cara fechada, vindo depois o jovem universitário que quase não parava em casa e, por fim, o adulto para quem muitas daquelas rotas imaginárias de outrora acabaram tornando-se pequenas quando comparadas a outras que teve que traçar com o tempo. O gosto por mapas não arrefeceu, entretanto.
Pelo menos em parte isso se deve ao meu desejo de conhecer, de compreender, o mundo ao meu redor, mas não é somente isso. Não sei se mais alguém já teve essa impressão, mas nos mapas e plantas da cidade do Guia Rex e da Quatro Rodas o mundo não parece tão caótico, tão fora de prumo e estilhaçado.
Ao se correr o dedo pelo mapa não se fica preso nos engarrafamentos e é como se toda rua, seja na Urca ou Leblon, seja em Anchieta ou Coelho Neto, recebesse a atenção e cuidados devidos.
No papel, com vias tão retas como feitas a régua e esquadro, não se vê o lixo nas ruas do centro nem se percebe os buracos e o cheiro de esgoto maturando ao sol de alguns bairros do subúrbio... só na rua Guilhermina, na Abolição, lembro de ter contado três vazamentos diferentes no mesmo dia.
Ao passear com os olhos pelo mapa não se sente aquela insegurança gélida que corre pela espinha ao caminhar pela Tijuca tarde da noite, ou pelo Jacarezinho a qualquer hora do dia. Não se vê a decadência de bairros outrora nobres como o Caju, onde Dom João VI procurava nos banhos de mar a cura de uma infeccionada picada de carrapato, nem o descaso por bairros desde sempre esquecidos como Curicica.
Não se testemunha a decadência de Santo Cristo nem a degradação do Camorim nas mãos da especulação imobiliária e do crescimento urbano desordenado. Não se percebe as árvores cortadas na Gamboa, o busto do Barão da Taquara desaparecido da Praça Seca e as obras superfaturas malfeitas sempre a serem refeitas, como o velódromo na Barra da Tijuca.
Tudo isso escamoteiam as ruas dos mapas, de linhas tão certas como se desenhadas por hábeis dedos renascentistas, deixando a impressão de que as ruas ligam pedaços de uma cidade diferente daquela que se vê da janela do ônibus ou de nossos automóveis, e que o restaurante onde se vai jantar no fim de semana está apenas umas poucas páginas à frente.
Final de primavera, 2015

* Originalmente publicada no extinto fórum do Bar do Escritor.

Ela comprou o GPS, mas quem acabou lendo o manual de instruções fui eu, o que acabou não sendo lá grande trabalho. Sempre gostei de mapas, e isso desde criança.
Lembro que, naqueles momentos de tédio vespertino que volta e meia nos assombravam nos anos 90, quando parecia não haver nada passando na televisão e que todos os cartuchos de videogame que se tinha já haviam sido jogados a exaustão, eu gostava de pegar alguma edição das Páginas Amarelas lá de casa e ficava folheando a seção de mapas da cidade.
Gastava nisso um bom tempo. No começo procurava pela minha rua e ficava analisando o entorno... reconhecendo as outras ruas do condomínio, onde moravam colegas meus. Lembro de ter procurado a rua do mercadinho onde ia fazer compras com meus pais e também a da escola, tendo ficado um tanto admirado de no mapa ela estar bem mais perto do que parecia ao se voltar de lá caminhando sob o sol do meio- dia.
Depois comecei a expandir as buscas... a rua onde uma tia- avó minha morava em São Cristovão.., O shopping center na Barra que minha família ia com mais frequência... o restaurante na Freguesia onde comíamos rãs a milanesa de vez em quando... refazia as rotas que levavam às coisas que faziam parte de meu restrito círculo de pré- adolescente dos tempos antes do boom da internet e tracejava algumas outras para lugares mais distantes, pouco conhecidos.
Como não podia deixar de ter sido, o tempo passou... O garoto que se entediava quando não estavam passando desenhos animados na TV deu lugar ao adolescente de cara fechada, vindo depois o jovem universitário que quase não parava em casa e, por fim, o adulto para quem muitas daquelas rotas imaginárias de outrora acabaram tornando-se pequenas quando comparadas a outras que teve que traçar com o tempo. O gosto por mapas não arrefeceu, entretanto.
Pelo menos em parte isso se deve ao meu desejo de conhecer, de compreender, o mundo ao meu redor, mas não é somente isso. Não sei se mais alguém já teve essa impressão, mas nos mapas e plantas da cidade do Guia Rex e da Quatro Rodas o mundo não parece tão caótico, tão fora de prumo e estilhaçado.
Ao se correr o dedo pelo mapa não se fica preso nos engarrafamentos e é como se toda rua, seja na Urca ou Leblon, seja em Anchieta ou Coelho Neto, recebesse a atenção e cuidados devidos.
No papel, com vias tão retas como feitas a régua e esquadro, não se vê o lixo nas ruas do centro nem se percebe os buracos e o cheiro de esgoto maturando ao sol de alguns bairros do subúrbio... só na rua Guilhermina, na Abolição, lembro de ter contado três vazamentos diferentes no mesmo dia.
Ao passear com os olhos pelo mapa não se sente aquela insegurança gélida que corre pela espinha ao caminhar pela Tijuca tarde da noite, ou pelo Jacarezinho a qualquer hora do dia. Não se vê a decadência de bairros outrora nobres como o Caju, onde Dom João VI procurava nos banhos de mar a cura de uma infeccionada picada de carrapato, nem o descaso por bairros desde sempre esquecidos como Curicica.
Não se testemunha a decadência de Santo Cristo nem a degradação do Camorim nas mãos da especulação imobiliária e do crescimento urbano desordenado. Não se percebe as árvores cortadas na Gamboa, o busto do Barão da Taquara desaparecido da Praça Seca e as obras superfaturas malfeitas sempre a serem refeitas, como o velódromo na Barra da Tijuca.
Tudo isso escamoteiam as ruas dos mapas, de linhas tão certas como se desenhadas por hábeis dedos renascentistas, deixando a impressão de que as ruas ligam pedaços de uma cidade diferente daquela que se vê da janela do ônibus ou de nossos automóveis, e que o restaurante onde se vai jantar no fim de semana está apenas umas poucas páginas à frente.
                      Final de primavera, 2015

* Originalmente publicada no extinto fórum do Bar do Escritor.

** O busto do Barão da Taquara foi recolocado em 2016 porém em um local diferente da praça e agora com uma nova placa onde está presente o nome do prefeito em exercício na época (e atual ex prefeito). A placa original onde constava o nome do prefeito que primeiro inaugurou o busto, Henrique Dodsworth, não voltou junto com o busto.

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