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  Texto selecionado
Meu marido e os pássaros
Fernando Vieira

Resumo:
A ironia da inutilidade da vida e a dor do arrependimento

 

          Meu marido, por algum motivo que, à época eu desconhecia, passou a colocar arroz cozido no parapeito da janela, para alimentar os passarinhos. Em pouco tempo eles estavam bicando o vidro da janela da cozinha já às seis da manhã, numa clara mensagem: queremos nosso arroz!; afinal, eles foram cativados. Ora, raramente meu marido não estava em casa e, nessas ocasiões, eu me obrigava a atender as bicadas insistentes. Me irritava, pois me roubava a concentração no que estivesse fazendo e, quando meu marido chegava, eu, sem palavras ou cerimônias,  reempossava-o ao cargo de queridinho-dos-alados e à incumbência de alimentar àquele bando. Como se fosse necessário...

          O apartamento era pequeno e a cozinha não era diferente: na altura da janela instalamos o tanque e a máquina de lavar roupa, e isso dificultava acessar sem esforço o parapeito. Ele não via dificuldade alguma em cozinhar diariamente uma quantia generosa de arroz e, depois de servir seus amigos alados, meu marido puxava uma cadeira para o meio da cozinha, onde sentava-se imóvel por horas, deliciando-se com o vai e vem dos divertidos emplumados. Ralhava comigo se eu o interrompia, mesmo que fosse por um bom motivo. Me impedia de entrar na cozinha, de lavar a louça ou fazer um bolo. Era comum que ficasse tão absorto e concentrado que - por diversas vezes - achei que falecera. 

          Meu marido era um bom homem. Ranzinza, mas um bom homem. Bom provedor. Nossos filhos vingaram, desabrocharam e deixaram-nos, com desenvoltura, na época e na medida certa. Não que precisassem, mas nunca nada pediram que não ganhassem.  Para tanto,  meu marido não cultivou amigos. Por anos viveu apenas para mim e para eles. Agora sua carência e solidão buscavam amizade e alegria na liberdade sincera de pássaros. Mas, mesmo depois de anos, o primeiro e único a entrar na cozinha parece ter vindo apenas desperdir-se e agradecer-lhe a fartura. 

           Dificil foi saber se meu marido já havia morrido quando eu  entrei ou se morreu no carinho das asas daquele passarinho. De fato, eu assustei-o com meu flagrante. Ele voou afoito e, ao voar na direção da janela por desconhecer a realidade paralela que o vidro oferece, estacou, numa cabeçada fatal. Foi triste aquele duplo fim. Meu marido sorria, simplesmente; nem parecia morto. Um meio sorriso, é verdade, mas ele nunca fora de gargalhadas mesmo.  Agradeci por ter a ave emitido ainda um último pio e exalado o derradeiro suspiro, antes de abandonar-se e abandonar-me, diferente de meu marido, que para tudo de mim dependia, mas na hora de morrer encontrou auto-suficiencia e partiu sem chamar meu nome. Uma traição imperdoável. Imperdoável.

          Sentei-me no lugar de sempre, na sala, de onde podia ve-lo de costas e ouvi-lo, quando me chamava. Ultimamente não mais me chamava; quando em vez, raramente. Houve um tempo em que sentia ciumes do seu amor por aqueles pássaros. Ele não me desprezava, mas me ignorava por horas, me abandonava aos poucos. Eu passei a ser nada mais que útil para ele. Agora que morreu, tardiamente descubro que ele não apenas alimentava-os, mas alimentava-se. Aprendi com ele que o que fazia à menor das criaturas era a si mesmo que fazia. Que era impossível ser feliz enquanto não fizesse com que seu próximo também o fosse. Que lhe fazia bem fazer o bem. Que a quem mais virtude tenha (para dar) mais lhe será acrescentada, porque a fé de um somada à virtude de outro curam, pois que é doando-se que se recebe mérito. 

           Fui, aos poucos, puxando minha cadeira para sentar ao lado dele. Escancarei a janela para que os pássaros entrassem e saissem sem se machucar, mas já não tenho forças para manter o braço esticado, implorando que não tenham medo. Ouço, ao longe, a melodia melancólica de uma música e reconheço Amarcord. Sou eu agora o sanfoneiro cego, solitário e indecifrável, tocando para ninguém, diante de uma familia barulhenta debaixo de um toldo, querendo voar.
                                                                                                                                       Fernando Vieira


Biografia:
Fernando Vieira é musico, toca piano, violao e canta, é escritor, compositor, poeta, produtor artistico e musical.
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Crônicas Meu marido e os pássaros Fernando Vieira


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