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TEM BOI NA LINHA
Lasana Lukata

Nos meus tempos de menino a Baixada Fluminense ainda tinha um forte cheiro rural de bois com sininhos nos pescoços, fazendo Tlim! Tlim! Hoje o boi não usa mais sininho, usa chip e pode ser pastoreado por computador. A Baixada urbanizou-se, restando apenas uns bois pingados.
Todos os domingos meu pai me arrumava e íamos para queimados, onde morava uma tia. Íamos de trem. Ao longo da linha, muitas partes eram muradas, mas outras ficavam em campo aberto e víamos a paisagem, os bois distantes, fazendo tlim tlim na imaginação.
Naquele tempo levava uma eternidade para chegarmos à casa de titia. Embarcávamos no trem em Nilópolis e aí começava a via crucis para os adultos e aventura para meninos como eu.
O que mais atravancava a viagem era ter que parar e ficar aguardando a sinalização por dezenas de minutos. Havia domingos em que chegávamos em Queimados na hora do almoço, mas para mim tudo era novidade, alegria. Naquele tempo eu era leve, leve e doce como o biscoito de vento que os ambulantes vendiam pelos vagões. Eu era leve por dentro e por fora, mas dentro do trem havia pessoas de sobrancelhas arriadas, olhos arriados, óculos arriados, batons e bigodes arriados, arrastavam-se como se tivessem um trem com nove vagões no coração. Havia também os meninos que não gostavam de viajar de trem.
Hoje não posso afirmar que sou leve, que sou doce. A vida me deu uma perna salgada, pesada que se arrasta e me atrapalha a deslizar sobre os problemas e de quando em quando afundo. Às vezes a boca quer rir e quando vai rir, a perna salgada chuta-me uma bola de sal e estraga, num efeito dominó, boca, olhos, sobrancelhas, ombros. Não é só o corpo estivador, a alma também bate carga e a crônica não é feita só de lembranças, mas do dia-a-dia; a crônica pode ser uma perna salgada; pode ser leve como um biscoito de vento ou pesada como um quilo de sal.
Outra coisa que atravancava a viagem era o tal de “Tem boi na linha”, gritava o maquinista. Aguardar sinalização já era coisa esperada, mas boi na linha era inesperado. O trem que ia numa velocidade, de repente ia molengando, molengando até enguiçar no boi teimoso e surdo para o piuííííí! A gente aprende e as pessoas já vinham prevenidas com capins, milhos e até fotografias de vacas bonitonas para tirar o boi da linha. Consta que um maquinista quis tirar um boi da linha, puxando-o pelo rabo e o bicho levantou e deu uma carreira nele que nunca mais o vimos. Disseram que correndo foi parar na Sibéria e por lá se naturalizou. Numa outra vez de boi na linha, um velhinho desceu e foi falar com o boi que levantou, balançando o rabo e furioso afiava as patas nos trilhos, mas o velhinho, nem aí, tirou da bolsa dois sininhos de ouro e dizendo que um era para a amante dele e o outro para o filho que ele tinha coma amante, o boi se derreteu todo e foi saindo da linha, dando muitas lambidas no velhinho e o trem continuou a sua marcha, chegando ao seu destino.
Mas depois de tanto doce entremos na perna salgada que por esses dias se arrastava pelos jornais e rádios. Embarcando num trem pra Belford Roxo, sentou-se ao meu lado uma jovem, estranhamente ouvindo a “Voz do Brasil”. A notícia dizia que o processo para apurar a quebra de decoro parlamentar do presidente do Senado Renan Calheiros saiu das mãos do Conselho de Ética e foi para as mãos da Mesa Diretora. A oposição reclamava do jeitinho para retardar o avanço das investigações. Dentro do trem a jovem olhando para mim, gritou: que safado! A mulherada do trem levantou-se unida para investigar o caso, mas a jovem completou “Que safado esse Senado!” Completando a indignação, a jovem tirando o fone do ouvido, disse: “Tem boi na linha!” Respondi: mais ou menos. E ela quis saber por que mais ou menos e falei que “Tem boi na linha” se diz quando surge uma dificuldade inesperada, o que não era o caso do Conselho de Ética do Senado. Suponhamos que o Conselho de Ética seja um trem que está levando o senador ao seu destino, mas ele é daqueles meninos que não gosta de viajar de trem, principalmente o do Conselho de Ética. É claro que pode haver grito do maquinista “Tem boi na linha!”, mas aí não é um boi inesperado e sim esperado, um boi doloso, mal intencionado, olha, boi do senador. Ele tem muitos bois para atravancar a viagem. Dizem que há bois que o acompanham até dentro do Senado. No meu tempo de menino, os meninos que detestavam andar de comboio ferroviário pediam aos amiguinhos para que pusessem pedras sobre os trilhos para descarrilar o trem. Quando não conseguiam, puxavam o freio embaixo do banco e parava tudo. Era uma tentação.
PS:. Parece que o Senado acordou e tirou o boi da linha e o trem vai continuar a sua marcha sobre os trilhos da Democracia.


Biografia:
Lasana Lukata é poeta, escritor por usucapião, São João do Meriti, RJ.
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