Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Entre lutas e dores
Os serões de Abel
Paulo Valença

Resumo:
Abel ex-funcionário da fábrica de papel está na cadeira de rodas, vítima de um derrame e a sua esposa Ivone e a filha Lurdes se lembram do quanto ele trabalhava, chegando em casa pela madrugada, após os serões na indústria...

1
Abel salta do ônibus e apressado caminha em sentido da rua defronte. Assim de madrugada, com essas ruas desertas... O receio de um assalto alerta-o para que logo cruze a rua e mais adiante entre na travessa, com a escadaria estreita e longa que o conduzirá a casa no alto do morro, onde a mulher Ivone e a filha Lurdes estão adormecidas. Sua família, a razão de ter de fazer os serões na fábrica, como impressor da máquina onduladeira.
- A gente hoje vai até que hora Seu Abel?
Indagara-lhe o seu ajudante, o Julinho, sempre perguntador, puxador de conversa, recurso que usa para fazer o tempo passar mais rápido e, ele respondeu lacônico, evitando o diálogo cabuloso:
- Até às doze horas.
- Tamos lascados! Agora é que são oito horas...
Então, desviou o rosto de lado, fugindo do outro perplexo, ainda de menino.
- Tamos lascados!
Repetiu o auxiliar.
Manteve-se calado. E, sentado no banco alto fixou a atenção às caixas que desciam abertas na esteira, tendo Julinho lá na frente, conferindo-lhe o encaixe das cores e pondo-as no estrado ao lado.
Depois findo o expediente, marcou o cartão no relógio-de-ponto e saindo da empresa, tomou o ônibus, retornando a casa. Tudo numa seqüência de noites passadas. Até quando assim nesse trabalho exaustivo e pouco recompensador?
- Até quando?
Libertou o pensamento em voz baixinha, contudo, audível para a mocinha ao lado da cadeira, que sorriu complacente, como se lhe lesse a alma. A condução adiantava-se, aproveitando a avenida pouco movimentada, devido à hora iniciada da madrugada.
Ele fechou os olhos, cochilando, relaxando. A mocinha outra vez sorriu. Tudo entendendo. O pai também cochilava no ônibus quando vinha do serão...

2
A travessa. Sobe os degraus. Quantos? Um dia ainda os contará. Pelos seus cálculos, deve haver quase duzentos. Sobe. Alerta. Receando o imprevisível.
Nas residências às laterais da escadaria, quebrando o silêncio da madrugada, se ouve os latidos de cães. O canto fora de hora de um galo. O choro de uma criança. Abel avista a casa. O muro à frente. O terraço gradeado, a janela ao lado. Seu
lar... Com a esposa e a filha adolescente dormindo. Ah, se o que vê e entende nunca passasse lhe acompanhasse através dos anos, na marcha ininterrupta do tempo, que em seu egoísmo tem os desvios, as surpresas!

3
Lurdes para a mãe, D. Ivone:
- Sabe mãe, quando vejo o pai naquela cadeira de rodas, aí no terraço, mal se mexendo, como um morto - vivo... Maldito derrame!
Sente de repente o desejo, que vai vencendo-a... Passa o dorso da mão direita sobre os olhos, na tentativa inútil de colher as lágrimas que lhe descem pelas faces.
A mãe foge o rosto de lado, não querendo presenciar a cena repetida e que a faz sofrer mais e, fala:
- É mesmo, filha. Seu pai sempre foi um homem direito, trabalhador, responsável... Quantas não foram as vezes que ele chegava de madrugada dos serões da fábrica, com a gente dormindo?
Não, ela, Lurdes, não dormia, esperando ouvir os passos, a tosse seca, a voz:
- Ivone tás acordada?
- Ahn? Que é, chegasse agora?
- É, estava no serão.
- Vou esquentar o seu “de comer”.
O pai não concordava, respeitando-lhe o repouso:
- Não, Ivone, pode deixar que eu esquento.
Tantos anos... Agora a realidade que os envolve é outra, bem diferente.
- Vai ficar pra o jantar, Lurdes?
Aí, despertando do passado, a filha repete o gesto de passar o dorso da mão sobre os olhos e as faces mais morenas e, sorrindo com tristeza, responde:
- Fico pra outra vez, mãe. Tenho de fazer ainda umas compras...
Ergue-se então do sofá, e resoluta, determinada como sempre:
- Vou me despedir do pai.
Cruza a salinha e entra na varanda, onde na cadeira de rodas, o idoso cochila indiferente ao que o cerca, ao mundo que não mais lhe pertence.
Devagarzinho, procurando não o despertar, a filha chega e se envergando beija-lhe a face fria, amarela, cortada por rugas, como cicratizes da existência entre lutas e dores.
Presenciando tudo daqui do sofá, D. Ivone sente uma “coisa” que vai crescendo, crescendo... E sem poder se conter, entrega-se ao que sente, no desabafo íntimo da condição de ser apenas humana.
Chora, com humildade, libertando-se.

Lu Dias BH disse:
Paulo Valença O escritor dos contos curtos.
Você é o escritor de seu tempo.




Biografia:
Paulo Valença é autor paraibano premiado nacionalmente com seus livros de contos e romances; Pertence a várias Instituições Literárias; Consta de diversos sites; Vive em Recife/PE.
Número de vezes que este texto foi lido: 61645


Outros títulos do mesmo autor

Contos A INSINUAÇÃO DO JUSTO Paulo Valença
Contos O GRITO PERDIDO Paulo Valença
Contos O silêncio cúmplice Paulo Valença
Contos Mundo dos mortos Paulo Valença
Contos Vítimas noturnas Paulo Valença
Contos Mistérios da madrugada Paulo Valença
Contos CAMINHOS QUE NOS APROXIMA Paulo Valença
Contos NÃO ABRA A PORTA Paulo Valença
Contos O ABRAÇO DE ANA PAULA Paulo Valença
Contos A VEZ DA HUMILHAÇÃO Paulo Valença

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última

Publicações de número 21 até 30 de um total de 50.


escrita@komedi.com.br © 2025
 
  Textos mais lidos
Você acredita em Milagres? - Keiti Matsubara 62542 Visitas
MEDUSA - Lívia Santana 62527 Visitas
A Voz dos Poetas - R. Roldan-Roldan 62507 Visitas
Entrega - Maria Julia pontes 62503 Visitas
RODOVIA RÉGIS BITTENCOURT - BR 116 - Arnaldo Agria Huss 62502 Visitas
Faça alguém feliz - 62491 Visitas
Conta Que Estou Ouvindo - J. Miguel 62491 Visitas
O Velho - Luiz Paulo Santana 62484 Visitas
Parada para Pensar - Nilton Salvador 62475 Visitas
Arnaldo - J. Miguel 62469 Visitas

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última