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A Bela Adormecida (a versão nunca contada)
Tino Nenhures

Quando gozou – e quando aquele frenesi o abandonou como um espírito diabólico que o tivesse possuído –, o rei pulou de cima da moça rápido como se tivesse sido atacado por uma cobra, dado o reconhecimento da loucura, o horror, que acabara de cometer. Foi como recuperar a visão depois de um período breve, porém assustadoramente desorientador de cegueira.

Arrumou as calças ainda ligeiramente ofegante – embora parte da sua dificuldade em respirar se devesse ao desespero que se lhe abatera –, todo o tempo a olhar fixamente para a moça – olhos tão arregalados que mais tarde sentiria os nervos ópticos palpitarem timidamente, reclamando do esforço –, como se temendo que esta, contrariando a sentença absoluta em torno da sua existência, a qualquer momento fosse despertar e o acusaria do seu ato vergonhoso, monstruoso, imperdoável – sobretudo para um rei.

Mas, obviamente, a jovem continuou adormecida, e o rei, então, de cuja testa pendia um pingente de suor que logo despencaria seu nariz abaixo e se infiltraria na sua espessa barba ruiva que mais parecia um braseiro, forçou-se a se mexer e precipitou–se ligeiro até a porta. Antes, no entanto, de girar a maçaneta sob a mão suada, olhou uma última vez para a jovem eternamente inconsciente – "e agora violentada", uma voz disse na sua cabeça – e viu-se obrigado a retornar até o seu triste e solitário leito.

Ele descobriu, uma vez ali novamente de pé, que não suportava olhar para o seu belo e imaculado rosto – ele agora lhe causava um misto de vergonha e medo profundos –, e foi fugindo severamente dele que fez o que tinha de fazer: baixou o longo vestido novamente até seus pés – sem evitar de notar, com um frio repentino no estômago e a garganta e a respiração bruscamente trancadas, que sua semente escorria pelas suas coxas alvas –, tornou a abotoá-lo entre os seios – cujos mamilos ainda despontavam levemente vermelhos após a investida furiosa, esfomeada de seus lábios, ele também não pode evitar de notar – e, por último, cobriu-a novamente com o lençol, levantando-o até a altura do busto, tal qual o encontrara.

Feito isso, correu outra vez para a porta e, passando as mãos pelos cabelos e barba, aprumando a roupa sobre o corpo, certificando–se de que tinha o controle das pernas e respirando profundamente, tudo nessa exata ordem, girou a maçaneta e deixou o recinto.

*
No luminoso florescer dos seus 15 anos de idade, uma jovem camponesa de um pequeno vilarejo do vasto Reino Verde teve sua vida tragicamente interrompida ao sofrer um choque violento na cabeça – resultado de um escorregão idiota enquanto brincava com o cachorro da familia – que a deixou em sono profundo. O seu caso tornou-se famoso, dentro dos limites do Reino e muito além deles. Uma profusão de mitos e crenças se formulou ao seu respeito, especialmente acerca da sua aparência, e pessoas vinham de toda parte para convencer-se da sua existência e admirar sua beleza, a divina – e terrível, fatal, dependendo de cada versão – beleza da Bela Adormecida, como passou a ser chamada.

Mas isso mudou completamente quando o rei em pessoa a visitou e, uma vez repousando seus argutos olhos verdes na sua figura, se apaixonou perdidamente por ela. A Bela Adormecida se lhe tornara imediatamente tão preciosa que a ideia de que fosse contemplada por quaisquer olhos que não fossem os seus – sobretudo olhos de plebeus sujos e ignorantes, gente para a qual tamanha beleza era impossível (era como presentear um porco com pedras preciosas: um desperdício, uma verdadeira estupidez) – era insuportável, revoltante, um ultraje! Desse modo, ele a privou do restante do mundo e fez-se seu guardião único.

*
Quando foi informado da gravidez e finalmente convenceu–se dela – o Mestre Curandeiro do Reino lhe explicara que, embora a situação insólita, aquele era um corpo perfeitamente sadio, com todos os órgãos funcionando normalmente, por isso não era impossível de uma vida formar-se e desenvolver-se dentro dele –, o rei, a princípio, ficara aflito e desorientado, temendo as consequências do que aquilo poderia trazer; no entanto, como não conseguisse chegar a uma conclusão definitiva sobre o assunto – um ínterim no qual a gestação continuava a desabrochar naturalmente –, quando menos se deu conta estava acomodado, em paz com a ideia e, mais além – estupidamente, fatalmente, o futuro (não muito distante) adverbiaria –, entusiasmado com ela.

Agora, mais do que nunca, ele reforçara a segurança e os cuidados em torno da sua Bela Adormecida. Ninguém, com exceção dele mesmo, é claro, do Mestre Curandeiro e da velha criada que sempre estivera ao lado da moça (desde muito antes de esta ser trazida para o remoto forte onde então se encontrava… desde a morte da sua mãe, para ser mais exato, que fora ceifada pelo demônio do desgosto e da qual esta velha criada era, simplesmente, melhor amiga e fiel confidente e à qual prometera, no seu leito de morte, jamais abandonar sua pobre criança enquanto lhe fosse permitido respirar), entrava no quarto… ora, que bobagem!, ninguém sequer entrava no forte. E quanto aos soldados que o guardavam noite e dia, incansavelmente, uma ordem única e muito clara: olhos sempre para fora do forte, nunca para o interior dele. Nem é preciso dizer que nem todos que ali chegaram enxergando saíram enxergando – não que o lugar para onde foram fossem precisar de olhos, veja bem.

O plano do rei, desde o princípio, era manter a criança em absoluto segredo juntamente com a mãe, mas quando esta afinal deu à luz – e aí a grande surpresa: não uma, mas duas crianças! –, o seu ser encheu-se de amor, encanto e vaidade. E é claro que isso destroçou toda e qualquer prudência como uma bota pesada esmagando um inseto. Ele tinha dois filhos lindos e perfeitos, frutos de uma união que era quase divina, e precisava mostrá-los ao mundo – e o mundo, por sua vez, precisava conhecer aqueles a quem absolutamente pertenceria.

*
A traída, humilhada, furiosa rainha não precisou se preocupar por muito tempo em como se livrar da Bela Adormecida, pois ocorreu – afortunadamente – que, menos de três luas após esta dar à luz e acordar de seu longo sono, fato que inesperada e extraordinariamente se deu ao sugarem, ambas as crianças em perfeita sintonia, o seu doce leite materno, a encontraram sem vida nos seus opulentos aposentos. (A causa da morte da Bela Adormecida foi suicídio, e embora isso se restringisse unicamente ao conhecimento do rei e do Mestre Curandeiro do reino, qualquer um que tivesse olhos e olhasse de fora veria, facilmente, que o mesmo demônio que dera cabo da sua mãe a atormentara até seu último suspiro) Com os gêmeos, no entanto, ela não teve a mesma sorte, e teve de esperar; não porque não soubesse como dar um fim às crianças ou mesmo temesse não consegui–lo – dada, dentre tantas outras, a mirabolante fama de imortalidade que lhes fora atribuída: elas sangravam, ela já se certificara, e quem sangra, morre, muito possivelmente –, veja bem, mas porque sua astuta mente vingativa já se decidira por uma data específica, e esta se faria no final daquele longo, rigoroso e branco inverno.

*
O inverno se fora, finalmente, e a cor retornava gradualmente às faces mortiças do Reino Verde.

As pessoas sorriam, felizes, e olhavam para o futuro cheias de ânimo e esperança, pois a primavera é bela, e faz com que nos sintamos assim. E, como para assinalar isso – como um auspício desses prósperos tempos que estavam por vir –, o rei matou, na primeira caçada da nova estação, a terrível criatura metamorfa que vinha fazendo vítimas pelas terras do reino. A caçada foi longa e exaustiva, mas divertidíssima, e o seu alvoroço maior deveu-se a torta da rainha; feita pelas suas próprias mãos, rei e comitiva, todos ficaram verdadeiramente extasiados com seu sabor, ainda que ninguém descobrisse, de forma alguma, de que realmente era. E o rei, ao voltar para casa com o advento da noite, foi logo dizendo ao saltar do cavalo para a esposa, que o aguardava aos grandes portões do castelo:

“Por Deus! Que torta maravilhosa! Diga-me, esposa, de que ela foi feita?”

'Gêmeos imortais', pensou a rainha com enlevo antes de responder, exibindo no rosto a dura e lastimável expressão de quem tem difíceis notícias para dar:

“Algo horrível aconteceu, esposo…”

E o rei, notando pela primeira vez aquela expressão no rosto da esposa, perguntou, conforme o sorriso lhe sumia dentro da barba hirsuta e a cor esfriava nas faces por debaixo desta:

“Onde estão Dia e Aurora?”
    


Biografia:
Tino Nenhures nasceu no Estado da Bahia e vive atualmente no Rio de Janeiro. Amante das letras, da natureza e do rock and roll, fica deprimido e às vezes espumando à sua falta.
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