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Max de Almeida Fonseca



          O sorriso do pimentão

     Era daqueles domingos, em que surgem do nada, ou de tudo, desejos palatáveis. Nada de extraordinário e sofisticação. Apenas, degustar um trivial pimentão, recheado de carne moída com uma cebola picadinha e temperos secretos.
Mais que uma comidinha, uma reminiscência materna, quando com aquela aura de boa vontade e desvelo, fazia com esmero a oferenda ao filho carente, de um manjar de deuses.
Faltava, contudo, o principal ingrediente: o pimentão. De preferência, verdinho, fresco, porque pimentão murcho e de tempos imemoriais, ninguém merece.
A consorte, por sorte, ainda guardava fresco na memória, a receita passada com detalhes pela sogra, já testada e aprovada unanimemente com louvores.
Eu, não tinha a menor noção como se prepara um pimentão recheado, mal sei cozinhar um ovo, com ressalvas de que, ás vezes, ou quase sempre, passa ou falta do ponto, muito cozido, muito mole.
Até neste prosaico ato entra a ciência de deixar as coisas, na medida certa, o que sempre me faltou. Por isto, tenho uma inveja velada de quem está à frente de um fogão e sabe o que faz, ou fará.

Mas, sem maiores delongas, fui à caça do pimentão e aí foi uma aventura digna de um Indiana Jones, quer dizer, não chega a tanto, mas foi uma aventura e tanto.
Procurei no hipermercado e não agradei dos pimentões, os poucos que restavam estavam murchos e me passavam a impressão de estarem abandonados e relegados ao destino comum dos pimentões esquecidos e passados.
Pensei: tristes pimentões, depois de uma existência gloriosa, desabrochando, viçosos, foram apertados, selecionados, numa seleção cruel e impiedosa e agora jazem tristes de não terem cumprido sua missão e irão seus despojos a fertilizarem outros pimentões, talvez com destino mais glorioso.
Depois de procurar por mais uns varejões e mercearias e ter gasto quase meio tanque de gasolina, comecei a chegar a uma conclusão desagradável: teria que adiar a minha odisseia gastronômica, porque achar pimentão como eu queria, não estava fácil.
Também quem mandou ter esta ideia descabelada de achar pimentões ideais, numa manhã de domingo ensolarado, naqueles mercadinhos e mercadões com ar de fim de feira!
Já estava pensando em ir para casa e em sinal de inconformismo e rebeldia, nem sair para comer num restaurante, traçar uma lasanha congelada num repasto para lá de banal.
Foi aí que surgiu, num lampejo fulgurante, um pensamento: e aquela mercearia de produtos orgânicos perto de sua casa, que sempre tem produtos frescos e confiáveis, ainda mais nestes tempos de toxicidade fatal e imprevisível, em que os pimentões são os astros principais, será que está aberta?
Este pensamento me empurrou até a mercearia e de longe pude perceber que as portas; ó surpresa surpreendente, estavam abertas!
O coração disparou, a intuição abandonou o seu refúgio e me disse: ali estão os seus desejáveis pimentões!
Quando entrei, fui direto à banca onde estavam os pimentões e numa expressão de alegria e espanto, ali estavam eles, soberbos, frescos, viçosos e muitos, uma pequena montanha de pimentões.
Mas, então surgiu o inusitado e o inesperado: dentre os outros, na primeira fila, um pimentão olhava para mim e sorria, nem era um pimentão, era uma sorridente face humana muito expressiva e me assustei, daqueles sustos do surgir, do insólito e do improvável fato.
Observei sua face com atenção e cautela e vi naquele sorriso, muitos mistérios, muitas nuances a descobrir.
Parecia um sorriso enigmático, um sorriso à la Gioconda, talvez o sorriso amarelo, lateralizado, irônico, sem adjetivos do Snoopy, o cãozinho das tirinhas em quadrinho, o sorriso surpreso dos moribundos frente ao inevitável, o sorriso da maledicência na tocaia armada, o sorriso maroto do menino pego no malfeito, o sorriso cínico do político pego com a mão na massa, enfim, uma face esfíngica com muitos segredos a decifrar...
Uma leve mão tocou o meu ombro e imerso nos meus pensamentos, voltei à tona com estas palavras suaves e delicadas: - Senhor, está na hora de fecharmos. Precisa mais de alguma coisa, além dos pimentões?
Desperto, peguei uns dez pimentões, mais que eu precisava, mas aquele pimentão especial ficou entre seus pares ostentando sua magnificência, sua improbabilidade, para inveja dos outros, pimentões comuns.
Era uma evidencia das mensagens da mãe natura, caprichosas para muitos, obscuras   para alguns e cristalina para outros.
Não teria coragem de fatia-lo e devorar suas entranhas, merecia um destino mais digno, pois foi além do cumprimento de sua missão, talvez fosse levado amanhã, por um freguês menos observador e pensativo e saciaria sua fome.
Quando as portas cerraram, fiquei ali recordando aquele sorriso, até agora indecifrável para mim.
Na escuridão, entre os outros pimentões continuava sorrindo, e se pudesse pensar, pensaria: são tão interessantes estes humanos; que se preocupam com sorrisos de pimentões...
Max Fonseca


Biografia:
Médico ginecologista clínico e Nutrólogo - Escritor -
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Contos Max de Almeida Fonseca


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