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Paradoxais
Maurício Munhoz

Resumo:
Um homem se vê em um país onde cada pessoa tem uma palavra diferente para descrever um mesmo objeto e sentimento. Uma caneta não é uma caneta.

PARADOXAIS

Um conto de Maurício Munhoz

Me lembro bem daquele voo, pois eu via pela janela nuvens se sobrepondo as cidades, e estava tentando lembrar os termos de um conto do Carlos Drummond de Andrade, sobre um voo que ele fez. Era uma noite limpa, mas o comandante anunciou que por questões meteorológicas adiante, iriamos pousar naquele ermo pais, no trajeto da Air France entre Paris e Pequim.
Ao desembarcarmos, as aeromoças nos esclareciam que o período ali poderia ser entre oito e doze horas, e quem quisesse poderia ir a um hotel, providenciado pela companhia. Me preocupou o compromisso firmado na China e que Zhu Lim havia me advertido a embarcar um dia antes, o que algo teimoso em mim resolveu ignorar.
Decidi explorar a cidade, mesmo prevendo dificuldades de comunicação, já que as placas apontavam um alfabeto muito parecido com o cirílico, e nada nem em inglês para orientação. Fui a um balcão que parecia ser um posto de atendimento aos turistas, no saguão do aeroporto.
A moça do atendimento tinha nítidos traços asiáticos, porém mais tendenciosos ao que me lembram os mongóis do que os chineses, mas com pele e cabelos claros. Notei que esse traço era comum aos demais habitantes.
Ela me saudou com o que entendi ser um “boa noite”. Perguntei, em inglês, onde encontraria um taxi. Ela demonstrou não ter compreendido nada, e argumentava com sons que me lembravam línguas que não compreendo, como o chinês, o russo e o árabe.
Lembrei que em chinês, taxi é algo parecido com Chuzu che mas, talvez pela pronúncia, não adiantou. Quando falei uma das poucas palavras que sei em russo, taksi, ela pareceu ter ficado feliz em poder me ajudar e chamou um policial que estava próximo. Entendi que ele me orientaria até um taxi.
O oficial foi muito simpático, mas após conversar com a recepcionista, demonstrou entender que era um policial o que eu procurava. Supus que “taksi” era polícia, ou algo assim. E perguntei: taksi? Apontando para ele.
A recepcionista me corrigiu: teksi, também apontando para o policial. Entendi que aprendi a primeira palavra daquele idioma.
Disse a ele: “Brasil”, apontando para mim. Ele parecia não ter entendido, mas para mim não importava. E para consolidar meu aprendizado, apontei para ele e disse: teksi. Ele negou com a cabeça, e apontou para si mesmo, dizendo: stel.
Fiquei em dúvidas se aquele policial era um teksi ou um stel, mas minha maior aflição naquele momento, tirando o Zhu Lim, era conseguir um taxi para conhecer alguma coisa daquele país, por isso decidi procurar sozinho pela saída, onde os taxis costumam ficar.
Fazia muito frio fora do aeroporto. Pude notar que estávamos no centro da cidade, a se julgar pela movimentação de carros. Bastou eu atravessar a rua e estava num agitado espaço com possíveis bares e casas noturnas.
Apesar de estarmos ao lado do aeroporto, não parecia ser natural um estrangeiro por ali. Os olhares das pessoas se surpreendiam com minha figura. De qualquer forma, não havia qualquer tipo de hostilidade, o que me incentivou a conhecer ao menos um restaurante.
As placas não ajudavam nada. A exemplo do aeroporto, nada de orientação em inglês. Mas a figura de um carneiro na fachada de um estabelecimento me fez entrar. E não errei, nas mesas havia gente bebendo e comendo.
Como percebi que serviam bebida alcoólica, pedi uma vodka, no balcão. A atendente me perguntou: vudka? Eu confirmei, mas ela me trouxe um fernet. Resolveria meu problema com o frio, então sentei e bebi prazerosamente.
No palco uma dupla de jazz se apresentava. Era um estilo diferente, mas bastante agradável e eu estava já absorto na música quando percebi que um casal me chamou para sentar à mesa deles.
Era um casal na faixa dos quarenta anos, e estavam bebendo vodka. Se apresentaram a moda deles, e tive dificuldade para entender os seus nomes. Nada como Chang, Dimitri, Mustafá ou Gengis. Mas ao mesmo tempo eu entendia que era uma mistura entre chinês, russo, árabe e algo próximo ao mongol.
Eu apontei para o que eles bebiam, tentando mostrar uma decepção para com meu fernet. A mulher apontou para o meu copo, chamou de utke. Claro que me confundiu, a atendente do bar chamou de vudka, mas poderia ser a marca.
Como fiz com o policial, tentei dizer que era do Brasil. Eles pareciam não ter a menor noção do que eu falava. Apelei para Pelé e até Zico, mas não fazia efeito, tampouco mencionar Carnaval ou Rio de Janeiro.
Como eu não conseguiria estabelecer diálogo com eles, mesmo com toda a simpatia do casal, me interessei em explorar o nome da bebida. Apontei para o meu copo dizendo vudka. Eles sorriram. O Homem apontou o banheiro, como se vudka fosse banheiro. E pegando para meu copo disse, solenemente: samaia.
Talvez fosse uma classificação que cada qual fazia da bebida. Para a atendente vudka, para a esposa utke e para ele samaia. Mas aquilo tudo já estava me confundido bastante.
Então pensei, vamos ver como eles chamam a vodka, que ambos bebiam. Ela chamou vipusknou, já ele bashnia. Achei engraçado, afinal era como se fosse um apelido carinhoso que cada qual denominava sua bebida, mas me lembrei da confusão com o taxi e o policial.
E ouvindo o casal conversar comigo, animadamente, e sem entender nada, passei a pensar em que tipo de confusão linguística eu estava metido.
Eu precisava de mais elementos. E os tive. Comecei pegando uma caneta que estava a mesa. Chamei de pen, do inglês. Eles não associaram o nome à imagem, mas eles entenderam que eu procurei estabelecer algum tipo de comunicação, foi quando o homem a chamou de lune e a mulher de shine.
Um pouco indelicadamente peguei o cigarro da mão dela: “cigarette”. Felizmente não tomaram isso como falta de educação minha, e riram. De novo minha surpresa: Para ele era gvosde, e para ela ribe. Chamei o garçon e pedi, com gestos, para denominar o cigarro. Ele não compreendeu o que eu queria, mas a mulher já entendendo a confusão da minha cabeça, o orientou. Sredstevi, era como o garçon chamava um cigarro.
Eu ponderei que aquele casal, por algum motivo, percebendo minha condição, estaria usando aquilo como motivo de diversão da noite deles. E decidi sair daquele restaurante em direção de algum outro lugar, para confirmar o imbróglio. Mas eu precisava pagar meu fernet.
Nem dólar e nem cartão de crédito eram aceitos. E a atendente, sem perder a simpatia em qualquer momento, simplesmente chamou a polícia.
É claro que não adiantou minha argumentação. Mas consegui convencer os policiais a me acompanhar até o aeroporto, para que eu pudesse fazer o câmbio e pagar.
No aeroporto não havia casa de câmbio, nem guichê da Air France ou qualquer empresa área internacional. Pelo visto, toda tripulação e passageiros do meu voo decidiu ir até o hotel, de modo que eu estava numa situação em que não encontrava a menor expectativa de saída. E para piorar, mostrei uma nota de cinquenta dólares ao policial, na tentativa de que ele trocasse pela moeda local. Mas ele entendeu como proposta de suborno, e me algemou ali mesmo, já me conduzindo a um presidio. Sim, não passei por delegacia, audiência com juízes, nem nada. Virei presidiário, com direito a usar um uniforme listrado, já naquela noite fria.
Não tive direito a telefonema, nem tentaram esclarecer a situação. Fui parar numa cela individual, com uma cama simples, uma escrivaninha e uma fossa. Dalí eu saia uma vez ao dia, para um passeio pelo pátio, onde convivia com os demais presidiários, até onde pude constatar, todos nativos.
E assim se passaram dias, semanas, meses e anos. Jamais consegui manter dialogo com alguém, mesmo considerando que os presos e os funcionários do presidio sempre foram simpáticos. Não havia um clima pesado, nada que lembrasse os presídios brasileiros ou mesmo americanos que vemos nos filmes.
E nunca senti que minha situação ali passou pelos tramites jurídicos, tais quais conhecemos no Brasil ou algo semelhante. Parecia que eu estava destinado a viver os restos dos meus dias naquele lugar. Mas também percebi que os demais presos não tinham expectativa de sair. Só entravam novos detentos, e só saiam os que morriam.
Quanto a língua, a exemplo do sistema carcerário, aprendi que são elementos da cultura daquele povo. Cada um tem uma palavra para descrever uma coisa, ou um sentimento, talvez através de metáforas e até paradoxalmente. E para eles, descumprir a lei era algo sem perdão.
Isso foi tudo que aprendi sobre eles. Infelizmente não me foi possível entender mais, sem o poder da comunicação e com todos meus direitos tirados. Mas ainda me pergunto se havia algo mais a compreender. Talvez eu tenha explorado o nível mais profundo da cultura daquele povo, algo que nunca consegui abstrair de outros povos.
Quanto a eu estar escrevendo essas linhas, devo dizer apenas que são lapsos de minha memória. Durante os anos, ou seriam décadas?, em que fiquei prisioneiro, não me foi possível escrever, ou ler, ou manter qualquer tipo de comunicação com alguém que me compreendesse.
Se agora tenho essa oportunidade talvez seja porque até mesmo nesse país as coisas estejam mudando, e por algum indulto, tenham me soltado em algum lugar entre a Ásia e o Oriente Médio, e ainda não sei se definitivamente.
Mas posso entender que neste novo local falam árabe, e não se tem para cada coisa uma palavra, conforme aquele que a profere. Me perdoem se escrevo em um português sem sofisticação, nem me dirijo a alguém em especial. Acredito que não tenho mais ninguém a lembrar de mim, e que meu compromisso na China não tenha mais qualquer propósito, por isso me decidi por vagar pelas ruas, pedindo ajuda para comer, e entendi como dizem os daqui, que Alá provém.










Biografia:
Sociólogo e escritor, tem o livro publicado "Rota de fuga, a historia não contada da SS" em Portugal pela Chiado Editora e traduzido para o inglês.
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Contos Paradoxais Maurício Munhoz


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