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Versões de nós mesmos
Hayton Rocha



Toda quarta-feira eu e meu irmão Agostinho (Nena, para mim, porque quando nasceu eu não sabia pronunciar “nenê”) íamos ao mercado público do Parque Rio Branco, em Maceió, comprar carne, frutas e verduras, ali no início dos anos 70. Saíamos de casa ansiosos nem tanto pelos 6 km que separavam a Gruta de Lourdes - bairro onde morávamos - da feira livre na Levada, mas porque a revista “Placar”, para nós a revista mais importante daquela época, chegava às bancas justamente às quartas-feiras.

Teríamos que subtrair do dinheiro da feira alguns trocados para comprá-la e devorar cada página, da capa à contracapa, muitas vezes ainda no ônibus que nos levaria de volta para casa. Nossa mãe, apesar do orçamento apertado - éramos nove filhos, sete em idade escolar - nunca percebeu a malandragem, mas nosso pai, tenho certeza, fazia vista grossa, tão interessado quanto nós na leitura.

Até hoje o cheiro de tinta que saía da revista permanece intacto dentro de nós como um perfume caro. Sempre fomos apaixonados por futebol, desde os rachas diários nos campinhos de terra batida com amigos de infância, passando pelas noites de domingo, quando esperávamos até tarde da noite que a extinta TV Tupi exibisse os gols do final de semana no programa “Ataque e Defesa”, sob o comando de Rui Porto. E como esquecer as disputas de times de botão, com “craques” de acrílico feitos por nós mesmos? Bastavam dois discos, um colorido e outro translúcido, a imagem do craque recortada de “Placar”, seu nome de “guerra” e o número que usava na camisa do clube a que pertencia.

Certo dia apareceu no mercado um feirante vendendo frascos de uma mistura de álcool comum com gasolina, como se fosse um brinquedo. Com um chumaço de algodão, molhava uma folha de papel e, usando o fundo de uma colher de sopa, decalcava imagens de revistas velhas, reproduzindo-as de forma invertida, como se estivessem refletidas em um espelho. Balançamos quando vimos aquilo, naqueles tempos em que microcomputadores e impressoras não existiam nem em filmes de ficção científica.

Foi assim que descobrimos, por acaso, do que precisávamos para fazer a “cobertura jornalística” de nossos torneios de futebol de botão. Com folhas de cadernos de desenho e imagens extraídas das páginas de “Placar”, criamos “jornais” para um único leitor: eu lia o “Jortebol”, editado por ele, que lia o “Destaque”, feito por mim.

O bicampeonato paulista de 1970-71, conquistado pelo São Paulo F.C., fez Nena virar tricolor doente, inspirando a confecção de seu timaço de botões: Sérgio, Forlan, Jurandir, Arlindo e Gilberto; Edson e Gerson; Terto, Pedro Rocha, Toninho e Paraná. Eu já era vascaíno, depois de ver nosso pai vibrar com a conquista do campeonato carioca de 1970, embalado pela magia da narração de Waldir Amaral e Jorge Cury, da Rádio Globo, que deu origem a meu time de botões: Andrada, Fidélis, Moisés, Renê e Alfinete; Alcir e Buglê, Luiz Carlos, Valfrido, Silva e Gilson Nunes.

Depois de uma partida de futebol de botões entre nós, Nena usava uma régua para alinhar a escrita com caneta esferográfica abaixo de algumas imagens decalcadas de “Placar”, e escrevia, por exemplo:
“ATAQUE FUNCIONA E TRICOLOR GOLEIA - O São Paulo massacrou o Vasco da Gama por 5 a 1, na noite de ontem, no Morumbi, com gols de Pedro Rocha (2) e Toninho (3). Buglê fez um gol de honra vascaíno. O tricolor fez mais uma partida espetacular, deixando os cariocas a ver navios ao assumir a liderança do torneio...”

Na outra cabeceira da mesa de jantar, utilizando os mesmos recursos “técnicos”, eu escrevia sobre a mesma partida:
“EM NOITE INFELIZ, VASCO PERDE - Numa noite marcada por vários gols perdidos por seus jogadores, e por erros grosseiros do árbitro da partida, o Vasco da Gama não teve como evitar a derrota para o São Paulo por 5x1, placar injusto e que de forma alguma traduz o que foi a disputa...”

Não é à toa que se diz que todos os fatos possuem três versões: a sua, a minha e a verdadeira. No nosso caso, o que de mais verdadeiro havia entre nós era o respeito ao que o outro escrevia, ainda que o desejo de rasgar a folha de papel que lia estivesse latente. A leitura e a escrita, assim, tornavam-se praticamente uma coisa só em nossas vidas, influenciados por jornalistas lendários como José Maria de Aquino, Lemyr Martins, Michel Laurence e Teixeira Heizer, todos de “Placar”.

Em março do ano passado li esta notícia que mexeu no baú dessas memórias: “Virtual Reality Football Club, primeiro jogo de futebol em realidade virtual, chega oficialmente nesta terça-feira. Desenvolvido e publicado pela Cherry Pop Games, o game inclui partidas online para até oito jogadores, partidas ranqueadas online e uma funcionalidade para criar jogos privados. Além das funcionalidades multiplayer, o título traz um modo offline de treinamento para que jogadores aprendam as principais jogadas, dribles e como se locomove pelo game. VRFC chega para o HTC Vive, PlayStation VR e Oculus Rift.”

O mundo mudou, eu e Nena mudamos. Fazer com lixa d’água botões de acrílico há quase meio século e disputar partidas inesquecíveis, dar asas à imaginação e fantasiar a realidade, nada disso nos transformou em jornalistas, escritores ou publishers, como sonhávamos.


Resolvemos, alguns anos depois, ser bancários como foi nosso pai. Em todas as escolhas que fazemos, mesmo nas melhores, há perdas. Ser feliz é sobreviver à versão de nós mesmos que decidimos assumir.


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