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O CANTOR E SUA SOLIDÃO
Cesar D

Resumo:
Um artista de rua, entre a invisibilidade e o aplauso, a ilusão, a realidade e a esperança, deixando as veias da cidade mais abertas...

Quarta, dia nublado, gente apressada saindo da estação de metrô, cena cotidiana e repetitiva, de todos os dias.Entre passos ligeiros, sempre em busca de ritmo com o tempo e a constante sensação de sua falta, trabalhadores, estudantes, desempregados, homens, mulheres e adolescentes se transformam instantaneamente em transeuntes, essa palavra tão pouco falada e imensamente praticada,porque andamos, passamos, deixamos passar, calados ou emitindo algo que é grunhido ou ruído, nos entreolhando, de soslaio, algo que é quase comunicar, é quase palavra.E ao nos transformar em transeuntes, que é o que o transeunte faz, passamos olhando tudo rapidamente, a propaganda nos trens, a mensagem emitida nos telões de LED, o beijo das namoradas quase espremidas próximas a porta do vagão, o riso do bebê no colo da mãe, um homem falando suas dores e pedindo uma ajuda a todos, a vida passando em tempo recorde.Por causa disso que a gente se transforma gratuitamente, facilmente, numa tentativa ligeira de chegar ao nosso destino ou objetivo, é que poucos percebem o cantor com seu violão, na rampa da saída da estação Santa Cecília, próximo ao mendigo agachado, bem negro e envelhecido, e que no entanto é magro, está calado e com a mão estendida e o qual as pessoas, os transeuntes,tem pressa em desviar e ignorar.

O cantor começa num repertório diverso, que vai do rock nacional a MPB, com pitadas do brega e sertanejo, universitário e autêntico, outros pedaços de funk, indo ao gosto do freguês, e nessa salada de sons e ritmos busca passar o chapéu aos poucos que param pra ouvi-lo cantar, sendo igualmente poucos os que colaboram com algum dinheiro, se contentando em ouvir aplausos rápidos e secos e algumas gracinhas da micro platéia.Quase um santo guerreiro a lutar solitário contra o dragão, que tem a forma do aluguel do quarto vencido a três semanas e uma fome persistente que os trocados diários vão matando em doses homeopáticas, rodou a cidade levando o violão, a mochila azul rasgada em um dos bolsos, uma blusa verde clara e um sorriso que é um misto de cartão de visitas e um símbolo de uma renitente esperança, renovada a cada acorde que tira, de ganhar a vida tocando seu som, com suas músicas e letras próprias.

Tinha 22 anos quando chegou a Sampa, era 1998, saindo de sua Ji-Paraná de nascença, dos pais pretinhos trabalhando nos empregos comuns, faxina, portaria, juntando suas misérias convertidas em salários mensais tentando sobreviver e vendo chegar a invasão da gauchada comprando casas e terras nos arredores da cidade, gente branca e distante, fechada, tratando mal os nativos e se encontrando nas churrascarias e igrejas evangélicas montadas nos bairros onde se reuniam, criando uma irmandade e tomando de assalto a economia e a política da cidade, estabelecendo uma nova ordem, deixando o recado a todos quem mandava.Sempre pensou em sair, tomar novos ares, fugir dos novos coronéis do Sul, e depois que seus pais morreram em um acidente, motorista desgovernado e sem freio os acertando no ponto de ônibus, não pensou duas vezes, deixou os irmãos, o colégio em que estava no último ano do ensino médio e a promessa de um flerte, quase ficar, com a filha ruiva e sardenta de um dos novos senhores da cidade para ir rumo a um novo lugar, uma nova terra onde pudesse mostrar o talento adquirido em noites insones que passou dedilhando o violão, tirando músicas e brigando com os velhos, que queriam que ele trabalhasse como os outros,um vigilante, outro ajudante, empregos certos e comuns mas que garantiam alguma renda, e que esquecesse essa história de ser cantor, coisa de vagabundo e vadio, diziam eles.

Nunca mais voltou, primeiro maravilhado e temeroso com a terra da garoa, um misto de euforia e medo que acomete a todas as pessoas que chegam e vão tentando se adaptar a vida corrida, sem freio, que a cidade oferece e sua carga pesada de indiferença, distância e uma ligeira possibilidade de transformação e sucesso, esse caleidoscópio que seduz e encanta, aflige e sentencia os que vão descobrindo seus lugares, sua noite e suas luzes, intensas, imensas, a iluminar a Paulista, e ele se sentindo abençoado, envolvido nessa ilusão luminosa, enxergando um brilho fazendo clarear seus sonhos e intensões, e assim foi ficando entre uma cerveja e outra e um papo captado entre colegas e amantes, sorrisos, beijos e corpos surgindo e sumindo, cedendo e se conformando a aquilo que foi, no fundo, alguma pedra bruta, jamais lapidada, de promessa.Depois os irmãos foram diminuindo na memória, no tempo escasso de um raro show feito nos circuitos alternativos, nos diferentes trabalhos temporários que arrumou pra sobreviver, tosador, jardineiro, vendedor, sequestrando o tempo de uma possível saudade, e na distância que fraciona, anula e elimina traços de relações familiares construídas de proximidades forçadas.

Escolheu a estação por seu movimento, mas também pela história, padroeira dos artistas, santa protetora dos músicos, e tenta diariamente ser agraciado com sua benção.Na subida da rampa vê o mural com os cantores e compositores de outras épocas, Ataulfo, Noel, Emilinha, Orlando, e instrumentistas de renome, Pixinguinha, Patápio, Radamés, Chiquinha, e seus contemporâneos, Caetano, Gil, Gal, Bethânia, Jobim...todos reverenciados em seus respectivos tempos, por seus talentos, criatividade e poder artísticos, todos se libertando da lei da morte, mesmo que sejam quase invisíveis a quem passa apressado em busca de completar mais um dia, esse tempo sem melodia, nuances de flauta ou harmonia, somente com a rapidez estéril e incolor do time is money.

E é por isso que ele volta, o cantor migrante, anônimo, sedento pra mostrar ao que veio ao mundo, e ele sabe que é um caminho duro, ingrato, difícil, mas é um caminho sem volta ou arrependimento.A música o definiu, o modificou, o transformou, o salvou.Saindo todos os dias do distante bairro de Guaianazes e mesmo que precise arrumar outras ocupações pra gerir a vida, mesmo que a indiferença constante dos passantes esteja no cardápio do dia, ele vai voltar a estação com nome de santa, pedir sua proteção, cantar e tocar suas músicas e de outros como ele, porque é isso que o faz inteiro, forte, completo. E entoando os primeiros acordes da canção de Ednardo, nordestina lírica que é ao mesmo tempo uma resposta e um vaticínio, é algo que mostra todo o compromisso, toda a esperança, ele canta:
"Porque cantar parece com não morrer..é igual a não se esquecer..que a vida é que tem razão..."




Biografia:
De sampa, zona norte, mas a muito morando no centro...me formando em história num país sem memória..é isso, esse sou eu..
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